Insolvência em foco

A Fazenda Pública no projeto de reforma da lei 11.101/05

A Fazenda Pública no projeto de reforma da lei 11.101/05.

12/6/2018


Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira

A presença da Fazenda Pública no projeto de reforma da Lei de Recuperações e Falências tomou proporção inusitada. Há uma profunda alteração em prol do ente público. Vejamos algumas questões.

1. O projeto retira do juízo da recuperação judicial a competência para deliberar sobre bens penhorados no processo de execução fiscal, que prosseguirá normalmente, sem suspensão em decorrência da distribuição da recuperação judicial, nem arquivamento do processo, que está proibido. Sequer certidão de crédito por ser expedida pelo juiz da execução. Mais. As execuções já suspensas ou arquivadas poderão ser retomadas (art. 5º, §1º). E é permitida a constrição e alienação de bens e direitos no juízo da execução, vedada ao juízo da recuperação a avaliação. A penhora só pode ser desfeita se houver expressa concordância da Fazenda.

O crédito da Fazenda assume, pelo projeto, na recuperação judicial, caráter ultra preferencial, e, na prática, acima do crédito trabalhista, pois nada o detém no caminho da expropriação. Pela nova redação do art. 6º, a Fazenda foge do juiz da recuperação e há uma verdadeira blindagem da Fazenda.

É certo que tal regra também vale para os créditos garantidos por alienação fiduciária, por exemplo, com a seguinte diferença. Tal credor colaborou com a empresa, a quem disponibilizou recursos. O Fisco, que só tira recursos da empresa, receberá o mesmo tratamento.

E tem mais. Embora, no processo de recuperação judicial, o crédito tributário esteja excluído do processo, o inadimplemento do parcelamento, algo externo ao plano de recuperação, exigirá do administrador judicial o requerimento de falência (art. 22, II, "b"), embora a nova redação da lei 10.522, que o projeto propõe, preveja a "convolação automática da recuperação judicial em falência". O inadimplemento de dívida alheia ao processo de recuperação será causa de falência, ainda que o plano de recuperação judicial esteja sendo cumprido na íntegra. O exagero é manifesto.

Mas isso é pouco diante desta outra previsão. A Fazenda pode pedir a falência do devedor com base em prejuízo "de qualquer forma a livre concorrência ou a livre iniciativa". O pedido de falência passa a ser instrumento de controle das estruturas da concorrência. E, quando esse pedido for formulado, ao devedor não é permitido nem requerer, na contestação, a recuperação judicial. Sequer pode alegar pagamento, prescrição ou as defesas relacionadas ao crédito da Fazenda Pública. O direito à ampla defesa é suprimido. Qual será o conceito de livre iniciativa para fins de falência? Também possibilita o pedido de falência a falta de aviso à Fazenda sobre alienação ou oneração de bens, quando essa comunicação for exigência de lei. É o cabresto da Fazenda atuando impiedosamente.

2. Enquanto, de um lado, o projeto desvincula a Fazenda do processo de recuperação judicial, na falência, cria vantagens processuais e materiais. Com efeito, o projeto obriga o juiz a instaurar, de ofício, incidente de classificação de crédito público (art. 7º-A). Nessa inusitada figura, a Fazenda apresentará relação dos créditos inscritos na dívida ativa, sem que o juiz ou o administrador judicial possam se pronunciar sobre a existência do crédito. Só podem falar sobre cálculos e sobre a classificação, pois a competência para decidir sobre a existência, exigibilidade e valor é do juízo da execução fiscal. Parece que se pretendeu seguir o modelo do crédito trabalhista, cujo desenho na lei decorre de previsão constitucional e, certamente, é uma necessidade, enquanto que para o crédito da Fazenda trata-se de uma opção.

Esse incidente de classificação de crédito, de instauração obrigatória, é uma comodidade para a Fazenda, que não precisará promover habilitação de crédito. E se a fazenda perder o prazo, de 30 dias, para apresentar a relação dos créditos, poderá requerer o desarquivamento, e ao que tudo indica, a qualquer tempo. Está excluída a condenação em honorários advocatícios no incidente de classificação de crédito público.

A vocação dos processos concursais é a universalização. O projeto fragmenta em vez de concentrar, de sorte que informações necessárias à visão global do processo falimentar não estarão presentes nos autos do processo falimentar; terão de ser procuradas alhures.

O projeto altera a ordem de pagamentos. Novamente, a Fazenda é aquinhoada com mais vantagens. Além de derrogar diversas leis, como o Código Civil, com a extinção de créditos privilegiados, os créditos não tributários da Fazenda Pública passam a integrar a classe IV no rol do art. 83, à frente dos quirografários.

Institui-se direito de restituição relativamente a tributos passíveis de retenção na fonte, descontos de terceiro ou sub-rogação, e a valores recebidos pelos agentes arrecadadores e não recolhidos aos cofres públicos, o que é bastante amplo. Hoje, o pedido de restituição só existe para a contribuição previdenciária descontada do empregado e não recolhida aos cofres públicos.

Os credores quirografários, aqueles que fornecem à empresa produtos e serviços, ou dinheiro, serão altamente prejudicados, pois, com mais uma classe à frente, e na companhia dos credores privilegiados, terão ainda mais diluídos o quinhão que lhes poderia tocar. Isso sem falar que o produto a ser rateado já terá sido comido pela maior presença do Fisco no crédito por restituição.

3. Passa a ser incumbência do administrador judicial, na falência e na recuperação judicial, "zelar pela regularidade do passivo fiscal". A expressão "zelar pela regularidade" exigirá interpretação afinada com a função exercida pelo administrador judicial no processo de recuperação. Como o crédito da Fazenda não se submete ao processo de recuperação, essa atividade cometida ao administrador judicial não guarda nenhuma pertinência com o processo. É atividade extrarrecuperacional, em prol de quem não se submete ao processo de recuperação. O projeto coloca o juiz (com o incidente do art. 7º-A) e o administrador judicial (pedindo a falência com fundamento em inadimplemento de crédito público) trabalhando em prol da Fazenda Pública.

4. Para finalizar. Apostando na pendência estéril de processos (uma tradição brasileira), após o encerramento da falência do empresário individual, o projeto extingue as obrigações pelo pagamento total, pagamento de 50% do passivo quirografário, ou pelo transcurso do prazo de dois anos, caso não tenha ocorrido a prática de crime. Para salvaguardar os credores, cria-se uma ação destinada a revogar a extinção das obrigações. É importante conceder ao empresário que faliu uma segunda chance, especialmente ao empresário individual. E é importante que isso ocorra logo, em fomento ao empreendedorismo, de que nosso país tanto necessita. Mas o projeto atrapalha a vida do empreendedor brasileiro, pois o Fisco só extinguirá o crédito após o transcurso do prazo prescricional previsto na legislação de regência (parágrafo único acrescentado ao art. 157). Além de não ajudar, a Fazenda ainda atrapalha.

Em termos positivos, destaca-se a exigência de maior clareza na descrição das dívidas para com o Poder Público, o que já deve ser feito por ocasião da apresentação da petição inicial, e a previsão, no plano de recuperação, de considerar, na viabilidade econômica, o passivo fiscal. Há, também, uma tardia correção em relação aos impostos, algo a se louvar dentro do irracional sistema tributário brasileiro.

5. A verdade é que a Fazenda Pública capturou o projeto, e as vantagens a ela previstas são muito exageradas, e algumas delas darão margem a grande confusão na prática judiciária. Ainda que o projeto contenha, em relação aos demais aspectos (extrafazendários), bons avanços, o desequilíbrio em favor do crédito público é muito grande, e mais reforça o descompromisso do Estado com o destino da empresa em crise.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.