Insolvência em foco

O passo a passo de um processo de recuperação judicial

O passo a passo de um processo de recuperação judicial.

7/11/2017

Andre Roque e Luiz Dellore

Prezado leitor, este é o segundo texto da recém-criada coluna "Insolvência em foco" aqui no Migalhas1. A ideia deste espaço é contribuir para aqueles que atuam na área e estudam o tema, no que se refere à recuperação judicial, falência, insolvência civil e temas correlatos.

O fato é que a crise econômica que assola o país nos últimos anos atingiu em cheio a atividade empresarial e, como consequência, o número de recuperações judiciais e falências cresceu exponencialmente. E, assim, dois fenômenos puderam se verificar:

(i) novas questões, antes não enfrentadas, surgiram - de modo que vieram à tona problemas concretos que ainda não tinham sido tratados pela doutrina ou jurisprudência, trazendo dúvidas e controvérsias (e vários pontos seguem não pacificados);

(ii) muitos profissionais que não estavam acostumados a lidar com o tema passaram a atuar nessa área; assim, advogados, magistrados, promotores, contadores, administradores e outros passaram a atuar nesse contencioso recuperacional.

E em virtude desses dois fenômenos, para contribuir com o debate e reflexão, é que surge a presente coluna, que tem entre seus autores profissionais que atuam exatamente nessa área: tanto advogados (como os ora subscritores), como magistrados e administrador judicial. Os temas serão tanto de Direito Material como processual, permitindo uma ampla visão acerca da temática – e, por certo, sugestões de assuntos pelos leitores serão bem-vindas neste espaço.

E o texto de hoje desta coluna tratará especificamente de um aspecto processual: afinal, como tramita uma recuperação judicial? Em síntese, qual é o procedimento de uma RJ?

Vale lembrar que, no âmbito do novo CPC, existem dois processos: conhecimento e execução. E, no processo de conhecimento, existem dois procedimentos: comum e especial. Não há mais, no procedimento comum, a subdivisão entre os ritos sumário e ordinário2.

Para podermos estabelecer um parâmetro de comparação com a recuperação judicial, vejamos sinteticamente quais são as fases do procedimento comum, à luz do NCPC:

1) petição inicial
2) audiência de conciliação ou mediação
3) contestação
4) réplica
5) saneamento
6) audiência de instrução
7) alegações finais/memoriais
8) sentença 

É certo que o procedimento da recuperação judicial em nada se assemelha com o procedimento acima exposto. Trata-se de um procedimento especial; ou melhor, um procedimento especialíssimo – e isso, inclusive, traz algumas dificuldades na compatibilização entre as previsões do NCPC e a Lei de Recuperação e Falência (lei 11.101/2005)3.

Mas afinal, qual é o procedimento da recuperação judicial?

Apresentamos, a seguir, de forma simplificada, o passo a passo mais usual, sendo certo que é possível que existam variações. Assim, tem-se o seguinte em uma RJ4:

1) petição inicial, em que a empresa pleiteia a própria recuperação judicial e indica a relação de credores (art. 51 da lei 11.101/2005)5

2) deferimento da RJ pelo juiz (art. 52 da lei 11.101/2005), com:

a) nomeação de administrador judicial (AJ, que pode ser um advogado, contador, economista, administrador de empresas; seja pessoa física ou pessoa jurídica que atue na área da advocacia, contabilidade ou auditoria – art. 21 da lei 11.101/2005); e

b) a partir desse momento ocorre a suspensão, pelo prazo de 180 dias, dos processos contra a empresa em recuperação (o chamado stay period, previsto no art. 6º, caput e § 4º da lei 11.101/2005)

3) publicação de edital com a 1ª relação de credores (a partir da listagem apresentada pela recuperanda, conforme art. 52, § 1º da lei 11.101/2005)

4) apresentação, em 15 dias a partir da publicação do edital, perante o administrador judicial, de divergência (caso o credor entenda que os valores ou classe de crédito6 constantes do edital não estão corretos) ou habilitação (caso o crédito não tenha sequer constado da relação da recuperanda), sendo que não há sucumbência quanto a essas peças (art. 7º, § 1º da lei 11.101/2005)

5) publicação de edital com a 2ª relação de credores (art. 7º, § 2º da lei 11.101/2005), apresentada pelo AJ, trazendo sua resposta a respeito de cada uma das divergências ou habilitações apresentadas pelos credores

6) apresentação, em 10 dias a partir da publicação do 2º edital, perante o juiz, de impugnação (discussão quanto à presença, ausência, valor ou classe de um crédito constante da 2ª relação de credores), que será autuada em apartado e, após contraditório e eventual dilação probatória, terá decisão do juiz, nesse caso havendo a possibilidade de condenação nos ônus da sucumbência (art. 8º da lei 11.101/2005), sendo que da decisão que julgar a impugnação cabe agravo de instrumento (art. 17 da lei 11.101/2005)

7) após as decisões das impugnações pelo juiz, será publicada a 3ª e última relação de credores (o quadro geral de credores – QGC, conforme art. 18 da lei 11.101/2005)

8) em paralelo à apuração dos créditos (itens 4 a 7 acima), apresentação do plano de recuperação judicial (PRJ) pela recuperanda, no prazo de 60 dias contados da publicação do deferimento da RJ (art. 53 da lei 11.101/2005)

9) os credores terão o prazo de 30 dias para apresentar objeção ao PRJ, prazo esse contado a partir da publicação do 2º edital de credores (art. 55 da lei 11.101/2005)

10) caso haja a apresentação de alguma oposição, será designada a Assembleia Geral de Credores (AGC), para que se delibere acerca do PRJ, de modo a ser aprovado ou rejeitado, pelas diversas classes de credores (arts. 35, I, "a" e 56 da lei 11.101/2005) – a AGC não será realizada em juízo, não contará com a presença do juiz e será presidida pelo AJ

11) aprovado o PRJ na AGC, o juiz irá homologar o plano para conceder a RJ7, desde que não haja ilegalidades (art. 58 da lei 11.101/2005)8

12) homologado o plano, haverá a fiscalização de seu cumprimento pelo juízo da RJ, pelo prazo de 2 anos, findo o qual haverá a extinção da RJ e a empresa prosseguirá com sua atuação (art. 63 da lei 11.101/2005)9

Esse é, como já dito, o trâmite de uma RJ que não tenha nada de extraordinário, com sucesso na aprovação do PRJ e sem que haja conversão da RJ em falência. E mesmo assim é um procedimento complexo.

Considerando esse cenário, a atuação do advogado do credor submetido à RJ se dará especialmente nos seguintes momentos (sem prejuízo da suspensão das ações contra a recuperanda, por força do stay period, item 2.b acima):

a) após a publicação do 1º edital, apresentação de divergência ou habilitação (item 4 acima), a ser protocolada apenas perante o AJ (muitas vezes exclusivamente por meio eletrônico10), ou perante o AJ e também em juízo, a depender da determinação do juiz da causa – essencial, para este fim, que seja consultada a forma de apresentação dessas peças no próprio edital11;

b) após a publicação do 2º edital, apresentação de impugnação (item 6 acima), a ser protocolada em juízo;

c) após a apresentação do PRJ, apresentação de objeção ao plano (item 9 acima), a ser protocolada em juízo;

d) participação na AGC, notadamente para votar pela aprovação ou rejeição do PRJ ou, ainda, pela abstenção (item12 acima).

Graficamente, o procedimento básico da RJ pode ser resumido no seguinte diagrama:

O cotidiano forense mostra que, infelizmente, muitos profissionais que atuam nas recuperações não conhecem essa tramitação básica quanto à RJ, o que causa uma série de tumultos e dificultam o andamento de um procedimento que, invariavelmente, é complexo e apresenta uma série de incidentes.

Assim, o primeiro passo para que haja uma adequada recuperação judicial é, seguramente, que as fases procedimentais previstas na legislação sejam observadas – tantos pelos advogados como pelos juízes, promotores e administradores judiciais. E a presente coluna busca, exatamente, contribuir para isso.

__________

1 A primeira, de autoria de Daniel Carnio Costa, pode ser lida em aqui.

2 A respeito, conferir, com mais vagar, Fernando da Fonseca Gajardoni; Luiz Dellore; Andre Vasconcelos Roque e Zulmar Duarte de Oliveira Jr., Processo de conhecimento e cumprimento de sentença - Comentários ao CPC/2015, São Paulo: Método, 2016, p. 1/2.

3 Naturalmente, essas (in)compatibilidades serão tratadas em outros momentos desta coluna. Um exemplo do que se afirma foi objeto de preocupação de um dos autores deste texto ainda na vacatio do NCPC, a respeito da recorribilidade das decisões interlocutórias na recuperação judicial (e também na falência): Andre Vasconcelos Roque, Bernardo Barreto Baptista, O novo CPC e o agravo de instrumento na recuperação judicial e falência: por uma interpretação funcional.

4 Vale destacar que a lei 11.101/2005 não apresenta o procedimento da RJ de forma linear, mas sim com idas e vindas, o que dificulta um pouco a compreensão do procedimento recuperacional a partir da leitura da lei, sem levar em conta o que se verifica no cotidiano forense.

5 Tem sido relativamente frequente exigir da empresa recuperanda também a relação dos credores extraconcursais (não submetidos aos efeitos da RJ), a fim de que os credores concursais possam avaliar a totalidade da situação econômico-financeira da empresa e de suas probabilidades de soerguimento. O assunto será tratado oportunamente, em outro texto.

6 Os créditos são: classe I, trabalhista; classe II, credor real; classe III: quirografário e classe IV: microempresa e EPP (art. 41 da lei 11.101/2005). Além disso, como visto em nota anterior, há créditos que não se submetem à RJ, ou seja, que são extraconcursais (como a garantia fiduciária do art. 49, § 3º da lei 11.101/2005).

7 Não se confunde, portanto, a decisão que defere o processamento da RJ (passo 2 do procedimento) com aquela que concede a RJ, homologando o plano de recuperação judicial (passo 11 do procedimento).

8 Sobre os limites do controle de legalidade do PRJ pelo juiz, confira-se o anterior texto nesta coluna, referido na primeira nota de rodapé.

9 Eventual descumprimento do plano no prazo de 2 anos autoriza a conversão da RJ em falência (art. 61 da lei 11.101/2005); se o descumprimento se verificar após este período, o credor poderá se valer das vias comuns contra a devedora, quais sejam, a execução do PRJ ou mesmo o ajuizamento de requerimento de falência (art. 62 da lei 11.101/2005).

10 É o que ocorre perante as duas varas especializadas em RJ e Falência da cidade de São Paulo, sendo esse, seguramente, o meio mais efetivo e menos burocrático.

11 Infelizmente, tem sido comum no cotidiano forense, sobretudo por profissionais não acostumados a esse procedimento especial, a apresentação de divergências ou habilitações perante o juízo da recuperação judicial sem qualquer determinação do juiz nesse sentido, o que não encontra respaldo na lei. O art. 7º, § 1º da lei 11.101/2005 determina expressamente que essas peças sejam apresentadas ao administrador judicial.

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Colunistas

Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.