Introdução
A fixação de indenização civil na sentença penal condenatória é um tema que ganha cada vez mais relevância no direito contemporâneo, especialmente diante da complexidade dos delitos econômicos. A busca por reparação integral à vítima, aliada à demandada efetividade na prestação jurisdicional, impulsiona o debate sobre a integração das esferas penal e cível.
Nesse cenário, o direito comparado oferece diferentes abordagens para essa questão, destacando-se dois modelos mais expressivos: o sistema de adesão e o sistema de separação1.
O sistema de adesão, adotado em países como Itália, Alemanha e Portugal, permite que o juízo penal fixe a indenização civil, desde que requerida pela vítima, seus sucessores (partes civis) ou pelo Ministério Público, qual atua como substituto processual2.
Por outro lado, o sistema de separação, característico dos modelos anglo-americano e holandês, impede que a reparação civil seja fixada no processo penal. Esse modelo reflete uma visão mais tradicional, na qual as esferas penal e cível operam de forma independente, evitando a sobreposição de competências.
Disposição Legislativa
Antes da introdução do artigo 387, IV, no Código de Processo Penal, o ordenamento jurídico nacional seguia uma abordagem separatista. Ademais, atualmente é concebido o sistema de adesão (união), ainda que independentes a responsabilidade civil da criminal, conforme regra consagrada no art. 1.525 do Código Civil de 1916 e reproduzida no art. 935 do Código Civil de 2002.
Para além disso, o projeto do novo Código de Processo Penal, em tramitação no Congresso Nacional, já prevê a adesão facultativa da parte civil, aumentando a sinergia entre ambas esferas3.
A rigor, a lei 11.719/08 alterou o Código de Processo Penal, inovou e permitiu, por meio do art. 387, inciso IV, pretensão indenizatória cível na seara criminal, dispondo que o juiz ao proferir sentença penal condenatória, “fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”.
Referida disposição legal tende a acelerar e simplificar a reparação patrimonial da vítima, valendo-se da produção probatória do processo penal e a respectiva cognição judicial do crime – mesmo fato gerador da pretensão punitiva e da indenização civil – para implementar a satisfação patrimonial e a reprimenda penal, sem necessidade da deflagração da ação indenizatória e/ou do processo de liquidação.
Desafios na Fixação de Indenização em Crimes Econômicos
A fixação de indenização civil em crimes econômicos apresenta desafios específicos devido à complexidade das relações financeiras e patrimoniais envolvidas. Entretanto, os crimes econômicos, por sua essência, deixam rastros documentais como registros contábeis, transações bancárias e contratos, que devem ser utilizados para estimar os prejuízos causados.
Embora envolvam relações financeiras complexas, sendo frequentemente documentados de forma detalhada, tais documentos oferecem os elementos necessários para a quantificação dos danos, permitindo que o Estado-juiz estabeleça o valor mínimo de reparação com base em provas já disponíveis
O fenômeno da incidência múltipla, que permite que um mesmo fato jurídico tenha repercussões em várias esferas (penal, cível, administrativa, etc.4), reforça essa ideia. Nos crimes econômicos, além da pena criminal, é comum a imposição de sanções administrativas ou disciplinares, assim como a indenização cível pelas perdas patrimoniais das vítimas5. Essas sanções são complementares e muitas vezes já indicam os prejuízos causados, tornando a quantificação no processo penal mais simples e objetiva.
Diferente dos crimes patrimoniais clássicos, onde os danos tendem a ser mais evidentes e diretos, os crimes econômicos frequentemente resultam em danos difusos e indiretos, afetam múltiplas partes e têm repercussões econômicas prolongadas.
Entretanto, os registros financeiros e a documentação fornecem dados claros que regularmente permitem uma fixação objetiva da indenização. Assim, a complexidade desses delitos não impede que o valor mínimo seja determinado, já que a produção probatória durante a investigação costuma ser suficiente para a aferição dos prejuízos.
Quantificação do dano como Dever-poder do Magistrado
Embora o Código de Processo Penal não detalhe procedimentos específicos para a quantificação do valor indenizatório, a obrigação do magistrado de fixar um valor mínimo é clara.
A reparação cível é uma garantia constitucional das vítimas, e o art. 387, IV, do CPP foi introduzido justamente para antecipar essa reparação, garantindo acesso mais célere à justiça e evitando desnecessária movimentação da máquina judiciária, com a abertura de ações cíveis autônomas (ação civil ex delicto).
A fixação do quantum mínimo da reparação civil é um efeito secundário (ou anexo) da condenação penal e deve constar expressamente da sentença6. A quantificação dos danos, portanto, é um Dever-poder do juiz.
Quando a quantificação é possível, a omissão em estabelecer o quantum indenizatório pode ser questionada, pois compromete o direito da vítima à reparação célere e efetiva.
Repise-se que tratando-se de crimes econômicos, a quantificação do valor mínimo indenizatório não tende a exigir amplos incidentes probatórios. A própria natureza desses delitos, que frequentemente envolve transações financeiras documentadas e registros contábeis, fornece elementos suficientes para que o Estado-juiz possa aferir a extensão dos danos com base na prova já produzida durante a investigação criminal.
Assim, a complexidade desses crimes não impede a fixação de um valor mínimo, pois, em muitos casos, os prejuízos podem ser claramente inferidos a partir de documentos disponíveis, relatórios financeiros e perícias contábeis, dispensando a necessidade de uma investigação probatória adicional, tampouco processo autônomo.
Quando os danos podem ser quantificados, a omissão do magistrado em fixar o valor mínimo constitui violação ao seu dever legal, configurando vício na sentença. Da mesma forma, quando a quantificação não for possível, a falta de adequada fundamentação que justifique essa supressão também caracteriza vício qual compromete a integridade da sentença[vii].
Efetivando a Fixação de Indenização Cível em Crimes Econômicos
Embora a instituição do art. 387, IV do CPP tenha aperfeiçoado o ordenamento jurídico, a efetivação do dever do Estado-juiz de fixar um valor mínimo para reparação de danos em crimes econômicos exige uma mudança cultural profunda entre todos os envolvidos no processo penal, com destaque ao próprio ofendido e ao Ministério Público.
A natureza dos delitos econômicos, marcada pela documentação de transações e registros contábeis, geralmente oferece elementos claros para a quantificação dos danos. Portanto, a atuação do Ministério Público e do ofendido deve se concentrar na correta apresentação dessas provas, já disponíveis na maioria das vezes, sem necessidade de incidentes probatórios extensivos. O foco deve estar em aproveitar eficientemente as informações existentes, frequentemente presentes nos autos desde a investigação criminal.
Para que o Estado-juiz tenha os elementos necessários para fixar o valor mínimo de reparação, é crucial que o Ministério Público, ou o próprio ofendido, na qualidade de assistente de acusação, identifiquem e organizem adequadamente esses dados, principalmente aqueles relativos aos danos causados pelo agente e sofridos pela vítima. Tais elementos já estão muitas vezes disponíveis através de auditorias financeiras, perícias contábeis ou documentos fiscais.
A plena eficácia dessa norma requer uma transformação cultural abrangente, envolvendo todos os atores da persecução penal - desde a vítima, passando pelo delegado, defensor público, advogados, promotores, juízes, até desembargadores.
É essencial um aprimoramento na atuação técnica dos atores do processo penal, quais devem reconhecer a robustez das provas inerentes aos crimes econômicos, de modo que na maioria dos casos, as provas financeiras necessárias para a quantificação já foram produzidas no curso das investigações e devem ser usadas diretamente para a fixação da indenização
O artigo 387, IV, do CPP é uma ferramenta processual valiosa, representando uma garantia constitucional e um direito fundamental do ofendido, de modo que, a aplicação desse dispositivo deve ser cuidadosamente equilibrada com a observância dos direitos e garantias (também fundamentais) do réu.
Conclusão
A fixação de indenização cível em crimes econômicos representa uma das mais significativas alterações processuais penais. Embora o tema tenha sido negligenciado em alguns aspectos no rito atual, os desafios que surgem são predominantemente procedimentais e podem ser resolvidos por uma melhor compreensão e aproveitamento das provas financeiras já disponíveis nos autos.
Os desafios identificados pela doutrina e pela jurisprudência são, em suma maioria, de natureza procedimental e, ao que tudo indica, serão adequadamente abordados na esperada reforma global do Código de Processo Penal. Essa reforma demandará um estudo mais profundo sobre o papel da parte civil, do Ministério Público e do magistrado na adoção do sistema de adesão civil.
A lei 11.719/2008, embora tenha apresentado lacunas quanto à reparação mínima, sinalizou uma importante tendência ao aproximar as esferas penal e civil, promovendo avanços significativos em favor das vítimas. A reforma global do Código de Processo Penal aponta para a incorporação do sistema de adesão civil facultativa[viii], o que promete oferecer maior proteção às vítimas de crimes econômicos.
Em síntese, a instituição do art. 387, IV, do CPP representa um relevante avanço, mas sua efetividade depende de uma postura proativa dos envolvidos, principalmente do Ministério Público e do ofendido, quais devem reconhecer que a própria natureza dos crimes econômicos já fornece as provas necessárias para a reparação dos danos, simplificando o processo e evitando a morosidade tradicional.
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O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados.
1 TORNAGHI, Hélio. Comentários ao Código de Processo Penal. Rio de Janeiro: Forense, v. I, tomo II, 1956, p. 107-113; Idem, Instituições de Processo Penal. Rio de Janeiro: Forense, v. III, 1959, p. 432 e ss; ASSIS, Araken de. Eficácia civil da sentença penal. São Paulo: RT, 2ª Ed., 2000, p. 44; MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova reforma do Código de Processo Penal. São Paulo: Método, 2008, p. 238. Sobre a história romana, e a comparação entre os sistemas francês e os diversos modelos dos Ländern à época, veja-se: BINDING, Karl. Grundriss des deutschen Strafprozessrechts. Leipzig: Duncker & Humblot, 5ª Ed., 1904, p. 115-116.
2 No sistema italiano, discute-se se a parte civil é litisconsorte, terceiro interveniente ou se haveria conexão de causas, nesse sentido: LEONE, Giovanni. Lineamenti di Diritto Processuale Penale. Napoli: Dott. Eugenio Jovene, 1954, p. 117-118 e 121. Na Alemanha, VOLK, Klaus. Grundkurs StPO. München: C.H. Beck, 6ª Ed., 2008, p. 341; BEULKE, Werner. Strafprozessrecht. Heidelberg: C.F. Müller, 10ª Ed., 2008, p. 359 e ss.
3 CÂMARA, Alexandre Freitas. Efeitos civis e processuais da sentença condenatória criminal – reflexões sobre a Lei n. 11.719/2008, in RDPP, n. 56, junho-julho, 2009, p. 72; TORNAGHI, Hélio. Comentários ao Código de Processo Penal. Op.cit., p. 113-115; Idem, Instituições de Processo Penal. Op.cit., p. 439-440.
4 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 26ª Ed., v. II, 2004, p. 2; BURINI, Bruno Corrêa. Efeitos civis da sentença penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 36.
5 Em relação às vítimas de crimes econômicos é relevante destacar o expressivo e alarmante percentual de empresas brasileiras e mundiais vitimadas, veja-se: "Pouco menos da metade das organizações globais (46%) relatou ter sofrido alguma forma de fraude ou outro crime econômico nos últimos 24 meses, enquanto, no Brasil, o percentual passou de 46% em 2020 para 62% neste ano". (PWC. Pesquisa Global sobre Fraudes e Crimes Econômicos 2022. São Paulo: PricewaterhouseCoopers Brasil, 2022, p. 4).
6 BALTAZAR JR., José Paulo. A sentença penal de acordo com as leis de reforma, in NUCCI, Guilherme de Souza (Org.). Reformas do processo penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009, p. 283; BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A sentença penal como título executório civil, in Revista de Direito Penal, n. 4, out-dez, 1971, p. 46-47. Em sentido contrário, afirmando não ser efeito da condenação mas tão somente uma faculdade do magistrado, veja-se: RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 29ª Ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 581.
7 MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova reforma do Código de Processo Penal. Op.cit., p. 242; BALTAZAR JR., José Paulo. A sentença penal de acordo com as leis de reforma, Op.cit., p. 285.
8 MICHELS, Rosane. Indenização dos danos às vítimas na sentença criminal. In AJURIS, Porto Alegre, v. 45, n. 144, junho, 2018.