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A ADI 4.273/DF e a extinção da punibilidade dos crimes tributários: Uma análise sob a ótica da criminologia crítica

O interacionismo simbólico destaca que a realidade social é construída por interações e significações compartilhadas. Edwin Sutherland, ao estudar crimes de colarinho branco, argumenta que são produtos da estrutura social.

23/7/2024

Segundo o interacionismo simbólico, a realidade social é constituída por uma infinidade de interações entre os indivíduos, às quais um processo de tipificação confere um significado, que se afasta das situações concretas e continua a estender-se através da linguagem.1 Ou seja, a sociedade não é uma realidade que se possa conhecer sobre o plano objetivo, pois o sujeito como um ator dotado de subjetividade, não um mero receptor passivo dos estímulos ao seu redor, age conforme as significações socialmente construídas. Assim sendo, sob a ótica criminológica, o delito econômico, tal como qualquer outro delito, é produto da estrutura social em que se insere.

Dessa forma, Edwin Sutherland ao estudar os crimes de colarinho branco, afirmou que não há nada no campo estritamente individual que possa diferenciar o criminoso do não criminoso, pois ambos partem dos mesmos mecanismos humanos, apenas assumindo diferentes papéis conforme as influências que recebem. Logo, o próprio sistema é produzido por uma simbiose normalizada entre o lícito e o ilícito, produzindo um jogo cujas regras pressupõem uma quota alta e constante de práticas criminosas aceitas pelo sistema.

Nesse sentido, é inevitável o questionamento de que o afastamento da persecução penal estatal, pelo pagamento integral da dívida tributária, configura uma ofensa à uma Constituição pautada no princípio da igualdade, bem como a uma ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, principalmente, por estes se tratarem de delitos que são cometidos, em regra, pela classe social mais alta.

Em primeiro momento, cumpre destacar que o Plenário do STF concluiu, por unanimidade de votos, o julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 4.273/DF2, reconhecendo a constitucionalidade de dispositivos que autorizam a suspensão da investigação e o ajuizamento de ação penal em face de crimes contra a ordem tributária, enquanto o débito tributário for objeto de parcelamento tributário, bem como a extinção de sua punibilidade em caso de quitação integral. O julgamento em questão avaliou a constitucionalidade dos artigos 67 e 69 da lei 11.941/09 e do art. 9º, §§ 1º e 2º, da lei 10.684/03, nos quais de acordo com o ministro Nunes Marques, relator da ADI, prevalece o interesse estatal na arrecadação das receitas tributárias em detrimento da aplicação de sanção penal.

Nesse contexto, o instituto da extinção da punibilidade é justificado como um favor fiscal posto à disposição dos contribuintes que, por motivos eventuais e alheios à sua vontade, tornam-se inadimplentes para com o Estado durante determinado lapso de tempo. Uma medida excepcional que prestigia a liberdade, a propriedade e a livre iniciativa em cotejo com os postulados da proporcionalidade e da intervenção mínima do direito penal.

No entanto, para o autor Baratta, esse discurso omite os conflitos estruturais que envolvem o sistema jurídico-penal e oferece um olhar deformado da legitimidade penal3. Como exemplo, tem-se a disparidade entre as penas previstas para os crimes contra o patrimônio público e privado. O crime de roubo possui uma pena de quatro a dez anos de reclusão, enquanto o de sonegação fiscal, de seis meses a dois anos, concluindo que subtrair uma carteira mediante grave ameaça é mais gravoso do que sonegar milhões em impostos, ainda que o roubo de carteira apresente concretamente somente prejuízos materiais à vítima, enquanto a sonegação pode ceifar inúmeras vidas, ao subtrair recursos que seriam aplicados em políticas públicas.

Ou seja, sob o escopo do direito penal mínimo, aqueles que possuem poder político, econômico ou social, na maioria dos casos, permanecem impunes, quase que representando uma condição de inimputabilidade situacional, enquanto para classe proletária aplica-se o direito penal como a “defesa social”, cabendo o ônus da criminalidade, mesmo que os crimes cometidos pelas altas classes geram os maiores prejuízos ao país.

Nesse sentido, Juarez Cirino dos Santos registra que:

Na formação do capitalismo, a criminalidade é reestruturada (a nível de prática criminal, de definição legal e de repressão penal) pela posição de classe do autor: As massas populares (especialmente lumpens), circunscritas à criminalidade patrimonial, são submetidas a tribunais ordinários e a castigos rigorosos; a burguesia, circulando nos espaços da lei (silêncios, omissões e tolerâncias), move-se no mundo protegido da ‘ilegalidade dos direitos’ (fraudes, evasões fiscais, comércio irregular, etc., na gênese histórica da criminalidade de ‘colarinho branco’), com os privilégios de tribunais especiais, multas e transações, que fazem dessa criminalidade um investimento lucrativo. O sistema penal é erigido para ‘gerir diferencialmente’ a criminalidade (conforme sua origem social), mas sem suprimi-la. A nova ‘tecnologia do poder’ desloca o direito de punir da vingança do soberano para a ‘defesa social’ (entendida como ‘defesa das condições’ materiais e ideológicas da sociedade capitalista), com base na teoria do contrato social: A condição de membro do corpo social implica aceitação das normas sociais, e sua violação, a aceitação da punição.4

Logo, o sistema capitalista e os conflitos sociais econômicos desenvolveram sistemas penais que são reconhecidos pela desigualdade, bem como, por políticas criminais seletivas, que servem a interesses de classes dominantes, como, por exemplo, na impossibilidade de aplicação analógica da extinção de punibilidade prevista nos crimes tributários ao caso de consumação de furto, ratificadas pelos tribunais:

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA. PEDIDO DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELO PAGAMENTO DO DÉBITO ANTES DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. INVIABILIDADE. ULTRATIVIDADE DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL MAIS BENÉFICO. IMPOSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DA DECISÃO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A inexistência de argumentação apta a infirmar o julgamento monocrático conduz à manutenção da decisão agravada. 2. A jurisprudência desta Suprema Corte se alinha ao acórdão recorrido no sentido de que, em caso de furto de energia elétrica, “a reparação do dano após a consumação do crime, ainda que antes do recebimento da denúncia, confere ao paciente somente a atenuação da pena; não a extinção da punibilidade.” (HC 91.065, relator Eros Grau, Segunda Turma, DJe 15.08.2008) 3. Não há como acolher a pretensão da defesa no sentido de impor ao STJ a aplicação de entendimento jurisprudencial pretérito e mais benéfico ao acusado, que conferia ao crime de furto de energia o mesmo tratamento dado aos crimes tributários. 4. Ao contrário das produções normativas, que são regidas pelos princípios da legalidade e da extratividade da lei penal mais benigna, os atos interpretativos não vinculantes não possuem efeito ultra-ativo. Excepcionalmente, na hipótese em que a interpretação da norma se refere à configuração do fato típico, haveria justa expectativa na prevalência do entendimento jurisprudencial anterior, em observância aos princípios da confiança legítima, boa-fé e segurança jurídica. Todavia o caso trata de questão diversa. 5. Agravo regimental desprovido.5

APELAÇÃO CRIMINAL. ART. 155, §4º, II e IV, DO CÓDIGO PENAL. SENTENÇA CONDENATÓRIA. PRELIMINAR PELO OFERECIMENTO DE ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL – PEDIDO FORMULADO APÓS A PROLAÇÃO DA SENTENÇA. PRELIMINAR REJEITADA. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO DO RÉU PELA ATIPICIDADE DA CONDUTA, AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO E FRAGILIDADE DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE – MATERIALIDADE E AUTORIA DEVIDAMENTE COMPROVADAS. DEPOIMENTOS DOS FUNCIONÁRIOS DA COPEL E RELATÓRIOS COMPROVAM O DELITO. VERSÃO DO RÉU ISOLADA E NÃO DEMONSTRADA NOS AUTOS. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE ESTELIONATO. IMPOSSIBILIDADE. COMPROVADO NOS AUTOS, O COMETIMENTO DO DELITO DE FURTO DE ENERGIA DESCRITO NO ART. 155, §§ 3º E 4º, INCISO II, DO CÓDIGO PENAL. PLEITO DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE, ANTE O PAGAMENTO DA DÍVIDA. INVIÁVEL A APLICAÇÃO POR ANALOGIA DO INSTITUTO DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DOS CRIMES TRIBUTÁRIOS AOS CRIMES DE NATUREZA PATRIMONIAL. PLEITO PELA INAPLICABILIDADE DA CONTINUIDADE DELITIVA, DO ART. 71 DO CÓDIGO PENAL. POSSIBILIDADE - CRIME PERMANENTE COM UMA CONDUTA, QUE SE PROLONGA NO TEMPO. PEDIDO DE REDUÇÃO DO VALOR DA MULTA. INVIABILIDADE - SANÇÃO PENAL PREVISTA NO PRECEITO SECUNDÁRIO DO DELITO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.6

Dessa maneira, pela criminologia crítica muda-se o enfoque da constitucionalidade da extinção da punibilidade para o tratamento diferenciado oferecido aos delitos fiscais e a atividade punitiva do Estado concentrada nos estratos baixos economicamente. Isto é: Por que o direito penal configura-se mínimo quando o crime é praticado por classes altas, mas configura-se como a primeira e única via, quando praticado por classes desabonadas?

Sendo assim, como explica Baratta:

[...] o status social de delinquente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinquência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela sociedade como ‘delinquente’.7

Portanto, o dispositivo, mais do que uma ofensa aos princípios constitucionais regentes da ordem econômica, apresenta-se como a expressão máxima da seletividade penal nos três eixos de criminalização, segundo a qual o fenômeno da delinquência restringe-se aos extratos mais baixos da sociedade, economicamente e socialmente excluídos, enquanto, os delitos praticados pelas classes mais altas são acobertados pelo discurso da meritocracia e da livre iniciativa. 

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O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados.

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1 BARATTA, A. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal.Trad. de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan - Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n° 4373, Distrito Federal. Relator: Ministro Nunes Marques. Data da decisão: 12/09/2023.

3 BARATTA, A. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal.Trad. de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan - Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

4 SANTOS, J. C. dos. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível aqui.

6 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Processo: 0030624-42.2018.8.16.0014 (Acórdão). Relator: Humberto Gonçalves Brito. Data Julgamento: 22/06/2023. 3ª Câmara Criminal.

7 BARATTA, A. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal.Trad. de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan - Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

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Colunistas

Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Mariana Beatriz dos Santos Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito e Processo Penal Econômico - NUPPE UFPR.