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Voto de Qualidade: O Tribunal Federal da 4ª região perante a aplicação retroativa da lei 14689/23

O voto de qualidade retornará efetivamente ou será resumido a uma breve passagem nas decisões dos tribunais?

25/6/2024

Misabel Derzi, ao iniciar o X Congresso Internacional de Direito Tributário do Paraná, fez um comentário poético no qual aduziu que “O futuro não traz nenhuma dúvida, o passado é imprevisível e o futuro é o que fazemos no presente”1. Ao refletir sobre a aplicabilidade da retroatividade da sentença, é passível de questionamento sobre a previsibilidade do passado. Se neste contexto, está sendo aplicado um exercício arbitrário de poder das autoridades, se há uma generalidade das regras, se mesmo, não há uma contradição, e em como garantir o passado ou o direito adquirido. Mas como Carnelutti aponta “a sentença retroage para que a lei não o faça". E quando se trata de matéria penal, mesmo em casos que envolvam a administração pública com fins tributários, o princípio da legalidade, no sentido de a lei retroagir apenas para benefício do réu, faz sentido ter sua aplicabilidade.

Mas façamos um retrospecto daquilo que culmina, em 20 de novembro de 2023, pela lei 14.689/23, na questão do voto de qualidade do CARF, vulgo tribunal da prova. Está previsto no art. 15 da lei 14.689/2023 que “O disposto no § 9º-A do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, aplica-se inclusive aos casos já julgados pelo CARF e ainda pendentes de apreciação do mérito pelo Tribunal Regional Federal competente na data da publicação desta Lei.” Por conseguinte, o § 9º-A. aduz que “ficam excluídas as multas e cancelada a representação fiscal para os fins penais de que trata o art. 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, na hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade previsto no § 9º deste artigo.”. Ao passo que, dentro do contexto paritário do sistema, existe um número par de conselheiros nos colegiados do CARF, é possível ocorrer empate nos julgamentos. O artigo 25, §9º do Processo Administrativo Fiscal (PAF) resolve essa questão, atribuindo ao voto do presidente do colegiado (representante da Fazenda Nacional) o poder de decidir a sentença. Essa situação não gerava muitas controvérsias até 2015, porém, com reformulações no CARF, houve uma mudança abrupta na jurisprudência consolidada, com votos de qualidade a favor da Fazenda Nacional se tornando mais comuns, especialmente na Câmara Superior de Recursos Fiscais. O que gerou um descontentamento do fisco, levando à introdução do artigo 19-E pela Lei nº 13.988/2020, que determinava que empates no CARF seriam favoráveis ao contribuinte automaticamente.Porém, essa questão foi novamente alterada com a publicação da MP nº 1.160/2023, revogando o artigo 19-E e restabelecendo o voto de qualidade. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contestou essa medida através da ADI nº 7.347, argumentando que o tema deveria ser tratado por lei em sentido estrito.

Em consoante, a lei 14.689/23 foi promulgada, definindo que em caso de empate, que o voto de qualidade ainda prevalece. Ademais, embora a regra geral seja de irretroatividade das leis, existem situações específicas, como no direito tributário, e pensando no sentido de que parece haver uma natureza hibrida, de direito matéria e processual onde novas leis mais benéficas podem ser aplicadas retroativamente a fatos passados, conforme previsto no artigo 106, II do Código Tributário Nacional (CTN).

Dessa forma, mediante a ação retroativa, verifica-se consequências para a persecução penal, sendo elas o imediato cancelamento das representações fiscais para fins penais e o encerramento dos inquéritos policiais decorrentes destas representações. O exposto se origina da concepção do direito penal como ultima ratio, tornando-se necessário usufruir de elementos que fundamentem a investigação de possíveis crimes cometidos pelo contribuinte. Entretanto, se já há evidente dúvida do fisco sobre a existência do tributo, não haveria condição para propositura de investigação, como também o Senador Otto Alencar, em seu parecer, nos casos em que o voto de qualidade lhe for contrário, devem ser ao menos afastadas as penalidades tributárias.

Diante do exposto, torna-se relevante a definição representação fiscal para fins penais, ao passo que, esta consiste em um relatório elaborado pelo auditor fiscal para informar aos órgãos responsáveis da ocorrência de crimes tributários, como também de crimes conexos como uso de documento falso, crimes contra o sistema financeiro nacional, evasão de divisas, operações ilegais de câmbio, e lavagem de dinheiro. Ademais, autor Natanael Martins, teceu comentários sobre a extensão da retroatividade, o qual aduziu que o limite imposto à retroação dos efeitos aos casos somente até a segunda instância judicial, sem abranger as instâncias especiais do STJ e STF.

Ademais, um dos argumentos para não ensejar o voto de qualidade no processo administrativo fiscal, conforme entendimento trazido por Scaff2, é o vínculo intrínseco entre este e o processo penal, uma vez que ambos são vinculados ao princípio inquisitivo. No direito penal, a garantia de que, em caso de dúvida, aplica-se a máxima do in dubio pro reo deveria, por analogia, ser aplicada nos casos no CARF, em prol do contribuinte, à luz do art. 112 do CTN, pois a retomada do referido voto desestruturaria a maneira paritária e isonômica deste conselho.

O Tribunal Federal da 4ª Região entende pela possibilidade de aplicação retroativa da Lei 14.689/2023, fundamentando-se no art. 106, II, c, do Código Tributário Nacional, o qual prescreve que “A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: II - tratando-se de ato não definitivamente julgado: c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática”.

Ademais, entende-se que por mais que o art. 14 do Código de Processo Civil determine que “A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.”, aplica-se a lei superveniente a partir da premissa que havendo lei especial prevendo a retroatividade, deve esta prevalecer em relação a norma geral do CPC.

Consolidando-se pelas recentes jurisprudências do TRF-4. Confira-se:

“TRIBUTÁRIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. MULTA DE OFÍCIO APLICADA DE FORMA ISOLADA. ARTIGO 44, I, DA LEI 9.430/96. ARTIGO 9º DA LEI 10.426/02. VOTO DE QUALIDADE. BIS IN IDEM DE SANÇÕES. INOCORRÊNCIA. APLICAÇÃO DA LEI SUPERVENIENTE. LEI 14.689/23. VOTO DE QUALIDADE. CARF. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. A falta de retenção do imposto pela fonte pagadora acarreta a incidência da multa de 75%, prevista no artigo 9º da Lei 10.426/02, com a redação conferida pela Lei 11.488/07. 2. Não há bis in idem quando as sanções têm pressupostos fáticos e sujeitos passivos diversos.  3. O voto de qualidade, previsto para as decisões do CARF no art. 54 do respectivo Regimento Interno, não ofende o devido processo legal. 4. Aplicável o artigo 15 da Lei 14.689/2023 para cancelar a multa isolada, visto que o julgamento na esfera administrativa foi definido em favor da Fazenda Pública pelo voto de qualidade.  5. A aplicação da multa não decorreu de conduta irregular da União, mas de imposição da lei então vigente. O afastamento da multa decorreu de opção do legislador no caso específico do voto de qualidade, o que afasta a possibilidade de condenação da União nos ônus de sucumbência.”3

“PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. NOVEL LEI 14.689/2023. 1. Nos termos do art. 1022 do Código de Processo Civil, os embargos de declaração são cabíveis para esclarecer obscuridade, eliminar contradição, suprir omissão ou corrigir erro material. Na hipótese dos autos não há vício a ser sanado, pois as razões recursais denotam apenas inconformidade com o julgado, de modo que descabe sua reforma. 2. Diante da novel Lei 14.689/2023, deve ser afastada a multa aplicada no auto de infração, por expressa retroatividade da norma aos casos que foram decididos, na esfera administrativa, a favor da Fazenda Pública por voto de qualidade e ainda estavam pendentes de apreciação do mérito pelo Tribunal Regional Federal competente na data da publicação da lei. 3. Embora, no caso em apreço, os recursos tenham sido julgados por esta Turma pouco antes da publicação da Lei 14.689/2023, a retroatividade afigura-se possível pela oposição dos presentes embargos de declaração e, ainda, pela disposição do art. 106, II, c, do CTN. 4. O enfrentamento das questões suscitadas em grau recursal, assim como a análise da legislação aplicável, é suficiente para prequestionar junto às instâncias superiores os dispositivos que as fundamentam.”4

Em conformidade, mesmo que em matéria diversa, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais está aplicando o disposto na nova lei de forma retroativa:

“porquanto lei nova aplica-se a ato ou fato pretérito, no caso de ato não definitivamente julgado, quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente à época da prática da infração. Trata-se de retroatividade benigna.”5

Entretanto, o retorno do voto de qualidade está sendo alvo de divergências, ao passo que, atualmente, discute-se sua constitucionalidade nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.548 Distrito Federal, ajuizada pelo Partido Novo, o qual objetiva que seja declarado a inconstitucionalidade dos “artigos 1º e inciso II, e o artigo 17, ambos da lei 14.689, de 20 de setembro de 2023, os quais reinstituem o voto de qua6lidade pró-fisco no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF e revogam dispositivos apreciados pelo Congresso Nacional”6. Por conseguinte, a síntese da argumentação prévia se encontra no despacho do dia 23/04/2024, dos próprios autos.

Por fim, cabe a indagação, o voto de qualidade retornará efetivamente ou será resumido a uma breve passagem nas decisões dos tribunais.

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O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados de grupos.

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1 Misabel Abreu Machado Derzi, jurista brasileira, advogada tributarista, ex-procuradora-geral do Estado de Minas Gerais e do município de Belo Horizonte e professora titular da UFMG e Faculdades Milton Campos.

2 SCAFF, Fernando Facury. 'In dubio pro reo' também vale para o contribuinte. Conjur, São Paulo, jun. 2013. Acesso em: 13.06.2024 SCAFF, Fernando Facury. In Dubio pro Contribuinte e o Voto de Qualidade nos Julgamentos Administrativo-tributários. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n° 220, p. 21/38, jan/2014. p. 29

3 TRF4, AC 5002214-12.2019.4.04.7000, PRIMEIRA TURMA, Relator ANDREI PITTEN VELLOSO, juntado aos autos em 21/03/2024.

4 TRF4 5075634-80.2015.4.04.7100, PRIMEIRA TURMA, Relator ANDREI PITTEN VELLOSO, juntado aos autos em 29/02/2024.

5 CARF 10880.745725/2019-34, Relator EFIGENIO DE FREITAS JUNIOR, Acórdão:1201-006.208, Data de Publicação: 06/11/2023.

6 STF, ADI 7548/DF, Relator Min. EDSON FACHIN.

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Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Mariana Beatriz dos Santos Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito e Processo Penal Econômico - NUPPE UFPR.