Introdução
- O combate aos cartéis por esferas jurídicas diversas
O combate ao crime de cartel objetiva assegurar o direito à concorrência, isto é, o processo de rivalidade entre os agentes de mercado em termos de variáveis comercialmente relevantes, bem como o preço, a qualidade e a diversidade no oferecimento de produtos e serviços ao consumidor. Dessa forma, o espírito do cartel se manifesta ao inimizar o consumidor, esquivando-se da competição empresarial, por meio da fixação de preços ou condições de renda1.
Diante desse contexto, o Estado brasileiro busca mitigar tal prática ilícita, com fulcro nos princípios constitucionais da ordem econômica, previstos no art. 170 da CR/88 - por meio da tríplice responsabilização, ou seja, permitindo a punição do agente nas esferas administrativa, penal e civil. Neste trabalho, nos debruçaremos sobre o diálogo entre as duas primeiras esferas na persecução dos cartéis.
- Independência entre as instâncias administrativa e penal
Adota-se, doutrinariamente, a teoria unitária do poder punitivo estatal, segundo a qual o direito administrativo sancionador seria apenas uma forma derivada da aplicação do ius puniendi (poder punitivo estatal), de tal sorte que a diferença residente entre a sanção penal e a sanção administrativa diz respeito somente a uma opção legislativa2.
Inegável é, entretanto, que as garantias inerentes ao direito penal e ao direito processual penal não se aplicam, indistintamente, ao direito administrativo, não havendo que se falar em princípios gerais universais, uma vez que não há pura e simples transposição de princípios daqueles ramos do direito a este, nem tão pouco ao direito da concorrência3.
Assim sendo, o julgamento dos cartéis, na esfera administrativa, compete ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e, na esfera penal, a persecução criminal é de iniciativa exclusiva do Ministério Público, já que o tipo penal da prática de cartel (conforme dispõe a lei 8.137/1990) é de ação penal pública incondicionada.
Razão essa pela qual constata-se a independência entre tais esferas jurídicas; com exceção à normatividade constitucional, em especial os direitos fundamentais, cuja aplicação incide sobre todo sistema jurídico brasileiro garantindo, por exemplo, a liberdade individual e limitação do poder estatal.
Ademais, salienta-se que, segundo art. 35 da lei 12.529/2011 (Lei da Defesa da Concorrência): “A repressão das infrações da ordem econômica não exclui a punição de outros ilícitos previstos em lei”. Logo, exclui-se a possibilidade de caracterização de bis in idem na hipótese de haver concorrência punitiva entre as esferas do direito concorrencial, penal e civil4.
Assim, a independência das instâncias na persecução dos cartéis adotada pelo sistema jurídico-normativo brasileiro, implica autonomia na forma de instrução e julgamento das esferas administrativa e criminal. Fato esse, todavia, que não constitui motivo impeditivo à colaboração e ao diálogo entre tais esferas, muito pelo contrário.
Desenvolvimento
- Colaboração entre as esferas: o diálogo necessário à eficiência
A investigação e a produção do conjunto probatório podem ocorrer de forma concomitante ou não entre as diferentes instâncias. Evidentemente, cada esfera de responsabilização atua de forma especializada e possui seus próprios standards probatórios para análise e valoração do que for angariado ao longo do processo.
Entretanto, apesar da independência entre elas, vislumbra-se que a persecução do crime de cartel pode ser, eventualmente, aprimorada a partir da colaboração entre as esferas administrativa e criminal. Essa cooperação vem sendo aos poucos introduzida no Direito brasileiro, ainda que acompanhada de constantes discussões doutrinárias e de repercussão nos Tribunais.
Dessa forma, visando traçar um panorama geral acerca da temática, importa analisar algumas das interferências que vêm sendo adotadas pelas autoridades públicas para viabilizar o diálogo entre as esferas - obviamente de maneira pouco extensiva e muito distante da pretensão de esgotar o tema.
- Acordo de colaboração técnica
O primeiro instituto digno de análise é o acordo de colaboração técnica. Essa é uma forma de acordo que vem sendo celebrada entre o CADE e o Ministério Público com o objetivo de
(...) promover a cooperação técnica e operacional relacionada à defesa da concorrência, sem que decorra obrigação de repasse de recursos. Cada acordo assinado amplia a capacidade do CADE em detectar e inibir delitos concorrenciais e proporciona maior agilidade e efetividade, tanto nas ações de investigação como de repressão5.
A fim de elucidar as formas de interação entre as instâncias por meio desse mecanismo, tomemos como exemplo as cláusulas do Acordo de Cooperação Técnica nº 1, de 2020, do Processo nº 208700.006158/2019-266, que tem como partes o CADE e o MPF.
Nesse sentido, a cláusula primeira estabelece como finalidade do acordo a maior comunicação entre as instituições, mediante o desenvolvimento e aprimoramento de técnicas e procedimentos empregados na apuração das práticas de cartel (e outros delitos), além da troca de documentos entre o CADE e o MPF.
Ademais, a cláusula segunda determina que serão trocadas entre ambas as partes as informações e provas obtidas, seja no âmbito da apuração administrativa, seja da criminal, nos processos atinentes às investigações de cartel, desde que haja a devida observação ao sigilo dos dados repassados.
Apesar de recente, trata-se de instrumento de importantíssimo alcance nacional, eis que o CADE já o firmou com o Ministério Público Federal, o Ministério Público Militar, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Distrito Federal e diversos Ministérios Públicos estaduais7. Além disso, ainda que com objetivos distintos, mas também demonstrando a relevância desse acordo, no dia 03/04/2024, o CADE o celebrou com o STF, visando, entre outras questões, a aprimorar a troca de informações e documentos entre as duas instituições8.
- Prova emprestada e Interceptação telefônica
Outro instituto que viabiliza o diálogo entre as esferas é o da prova emprestada. “Entende-se por prova emprestada aquela que é produzida num processo para nele gerar efeitos, sendo depois transportada documentalmente para outro, visando a gerar efeitos em processo distinto”9.
Muito se discute na doutrina acerca da admissibilidade dessa transmutação de provas entre processos distintos, apesar de haver certo consenso quanto a sua possibilidade quando se trata de prova documental que não esteja resguardada por nenhum tipo de sigilo10. Assim, apesar da ausência de unanimidade, o Tribunal do CADE e os Tribunais Superiores consideram válida a sua utilização, se respeitadas as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório11.
Justamente nesse sentido, versa a Súmula 591 do STJ: “É permitida a prova emprestada no processo administrativo disciplinar, desde que devidamente autorizada pelo juízo competente e respeitados o contraditório e a ampla defesa” e, também, a jurisprudência assente do STF12.
Ainda a respeito da prova emprestada, há o grande dilema quanto à interceptação telefônica, sobre a possibilidade de transportá-la do processo penal à instância administrativa. Ou seja, a controvérsia do tema se dá, essencialmente, ante a gravidade da interceptação, que inflige o direito à intimidade do indivíduo, devendo ser deferida apenas em casos de extrema necessidade – motivo pelo qual é meio de obtenção de prova exclusivo do processo penal, sendo legítima tão somente quando presentes os requisitos estabelecidos na lei 9.296/1996.
Não obstante, o entendimento dos Tribunais vem sendo no sentido de admitir o compartilhamento da interceptação telefônica aos processos administrativos13. Ademais, exemplo disso ocorreu em caso no qual o CADE condenou as empresas Nacional Gás Butano Distribuidora, Revendedora de Gás na Paraíba e Frazão Distribuidora de Gás por formação de cartel no mercado de distribuição e revenda de gás liquefeito de petróleo (GLP) em estados do Nordeste. Para tanto, a instituição obteve as informações e provas produzidas nas investigações e nas ações penais realizadas pela Polícia Federal e pelo MPF de vários estados da região, nelas incluídas interceptações telefônicas14.
Nesse contexto, mesmo sendo admitida, é indispensável que a interceptação telefônica, ou qualquer outra prova emprestada, seja considerada válida e lícita para que possa fundamentar processo administrativo. Aliás, em caso muito recente, no qual a condenação pelo CADE havia se baseado em interceptação telefônica declarada ilícita pelo STJ, o STF fixou tese afirmando que: “São inadmissíveis, em processos administrativos de qualquer espécie, provas consideradas ilícitas pelo Poder Judiciário”15.
Considerações finais
Portanto, as instituições atuantes nas esferas administrativa e penal já vêm desenvolvendo mecanismos para viabilizar a cooperação na apuração do crime de cartel, mediante, principalmente, o compartilhamento de informações e documentos. Assim considerando a ampla gama de órgãos envolvidos na apuração desse delito, administrativamente ou criminalmente, e a complexa responsabilização por três facetas, há especial destaque ao intercâmbio de dados e de assistência mútua na promoção de uma resposta estatal satisfatóriaxvi.
Desse modo, apesar das particularidades de cada instância e da independência entre essas, é importante notar que há caminhos que possibilitam o diálogo, sem sacrifício de direitos e garantias fundamentais, de tal sorte a efetivar os princípios constitucionais da eficiência (art. 37, caput, da CR/88) e da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CR/88) – com a melhor disposição dos recursos públicos.
O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados de grupos de pesquisa parceiros.
__________
*O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados de grupos de pesquisa parceiros.
__________
1 MARTINEZ, Ana Paula. Repressão a Cartéis: interface entre direito administrativo e direito penal. Editora Singular, 2022.
2 ALVES, Waldir. Relação entre Direito Administrativo Sancionador, Direito Penal Econômico e Direito Concorrencial. Revista Científica do CPJM, v. 2, n. 07, p. 26-58, 2023.
3 Ibid.
4 Ibid.
5 CADE condena cartel no mercado de distribuição e revenda de gás de cozinha no Nordeste. Governo Federal: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 17 de ago. de 2022. Disponível aqui. Acesso em: 04 de abr. de 2024.
6 BRASIL. Acordos com o Ministério Público. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 04 de abr. de 2024.
7 Cumpre informar que os acordos de colaboração técnica firmados com essas instituições pode ser conferido aqui.
8 STF e Cade celebram acordo para compartilhamento de informações e realização de ações conjuntas. Supremo Tribunal Federal. Brasília, 03 de abr. de 2024. Disponível aqui. Acesso em: 04 de abr. de 2024.
9 GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 54-63.
10 Nessa toada: LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: SaraivaJur, 2023, E-book, p. 184.
11 ALVES, W. op. cit.
12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE n. 1.423.610 AgR, relator Ministro Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em 19/6/2023, DJe de 27/6/2023.
13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RMS n. 28.774, relator Ministro Marco Aurélio, relator para acórdão Ministro Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 22/9/2015, DJe de 25/8/2016.
14 Acesso aqui.
15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE n. 1.316.369, relator Ministro Edson Fachin, relator para acórdão Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 8/12/2022, DJe de 22/3/2023.
16 ALVES, W. op. cit.