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Impenhorabilidade da verba alimentar nas medidas cautelares patrimoniais no processo penal

O mais adequado é que sejam excluídas do alcance do Sisbajud conta-salário e conta-corrente criadas especificamente para o recebimento de vencimentos, salários, remunerações, aposenta-dorias, pensões etc.

26/12/2023

A deflagração de operações no país voltadas à apuração de crimes econômicos gerou uma abrupta valorização dos efeitos patrimoniais da condenação, tais como o perdimento de bens e a obrigação de indenizar o dano causado pela prática criminosa (art. 91, I, II, “b”, CP). Por conseguinte, vê-se crescente a aplicação de medidas cautelares para assegurar a efetividade de tais efeitos durante o transcurso do processo penal.

O Código de Processo Penal prevê as medidas de sequestro (arts. 125 a 132), o qual recai sobre bens adquiridos com os proventos da infração – ou, caso não encontrados ou se localizem no exterior, sobre bens ou valores equivalentes (art. 91, §§ 1.º e 2.º, CP) –; e a especialização da hipoteca legal e o arresto (arts. 134 a 137), os quais recaem sobre bens de origem lícita.

Embora a lei processual penal tenha previsto expressamente essas espécies de medidas assecuratórias, tem-se observado na prática a determinação de “bloqueio” e “indisponibilidade” da integralidade do patrimônio do indivíduo sujeito à persecução penal1. Afora a evidente violação à legalidade pela aplicação de medidas indeterminadas – cuja denominação é confundida com os próprios efeitos delas decorrentes –, essa prática tem conduzido à indisponibilidade de absolutamente todo o valor depositado em conta(s) bancária(s) do(s) investigado(s) ou acusado(s) – inclusive verbas de natureza alimentar.

Vale dizer, determina-se a constrição de todos os valores do(s) imputado(s) depositados em instituições financeiras até o limite estimado para a perda do provento do crime ou a reparação do dano. Com isso, é possível que a medida cautelar venha a atingir vencimentos, remunerações, salários, pensões, proventos da aposentadoria, honorários etc.

Nessa hipótese, se a medida decretada for o sequestro, cujo objeto são bens sobre os quais recaem “indícios veementes da proveniência ilícita” (art. 126, CPP), a quantia correspondente a verba alimentar deve ser levantada com fundamento na sua origem manifestamente lícita, sem nem ser necessário opor a impenhorabilidade.

Por seu turno, se a medida decretada for o arresto (a especialização da hipoteca legal não poderia ser, porque não atinge valores), então seria possível requerer o imediato levantamento dos rendimentos de natureza alimentar com fundamento em sua impenhorabilidade.

Isso porque, conforme previsão expressa no art. 137 do CPP, o arresto somente pode incidir sobre bens móveis que compõem o patrimônio lícito do acusado suscetíveis de penhora. Não estão sujeitos à penhora bens elencados na vedação do art. 833 do CPC, dentre eles, “os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal” (art. 833, IV, CPC). A parte final do § 2.º do art. 833 do CPC, no entanto, autoriza a penhora de verba de natureza alimentar que exceda a cinquenta salários-mínimos.

A razão para se restringir a penhora dos rendimentos alimentares é elementar, na medida que visa a garantir ao acusado um patrimônio mínimo para que ele e sua família sobrevivam com dignidade. Inclusive, o Código de Processo Penal estabelece expressamente a possibilidade de que o juiz arbitre, a partir das rendas de bens móveis suscetíveis de penhora, recursos destinados à “manutenção do indiciado e de sua família” (art. 137, §2.º, CPP).

Não obstante, é necessário ponderar que o Superior Tribunal de Justiça tem mitigado a aplicação da referida regra de impenhorabilidade, admitindo-se o seu afastamento em duas hipóteses: (a) “quando os valores depositados sob o título de remuneração ou salário perdem sua natureza alimentar por não terem sido efetivamente empregados no espaço de tempo situado entre um e outro depósito mensal”; e (b) quando o valor percebido “excede o teto remuneratório constitucional2.

O posicionamento merece crítica, pois restringe direito fundamental por inovação jurisprudencial. O legislador estabeleceu expressamente o rol de bens impenhoráveis e fez um prévio juízo de ponderação entre os interesses envolvidos, optando por excluir da proteção da verba alimentar exclusivamente o que excede a cinquenta salários-mínimos (além da prestação de alimentos, que é matéria fora do processo penal).

Embora esse limite seja inegavelmente alto, na medida que representa muito mais do que a remuneração da maioria dos brasileiros, essa circunstância, por si só, não justifica que simplesmente se despreze a literalidade da disposição legal, a despeito do prévio exercício de controle de constitucionalidade da norma em questão.

Seja como for, a lei processual penal é clara: em hipótese alguma, as medidas assecuratórias podem atingir verbas de natureza alimentar do investigado ou do acusado, ainda que sob os limites legal e jurisprudencial acima referidos. Trata-se de regra de ordem pública, cognoscível de ofício pelo juiz.

Portanto, o mais adequado é que sejam excluídas do alcance do Sisbajud3 conta-salário e conta-corrente criadas especificamente para o recebimento de vencimentos, salários, remunerações, aposentadorias, pensões etc. Assim se evita que verbas dessa natureza fiquem constritas ainda que temporariamente, o que já pode causar prejuízo à manutenção do acusado e de sua família.

No entanto, caso tais valores sejam atingidos, deve ser garantido o imediato levantamento das medidas assecuratórias, mediante arguição em simples petição perante o juízo. Em caso de indeferimento, é cabível a impetração de mandado de segurança, eis que a violação ao direito líquido e certo poderá ser demonstrada mediante prova pré-constituída. Embora o Código de Processo Penal possibilite a oposição de embargos do acusado, inviável que valores dessa natureza sigam constritos até o trânsito em julgado na ação penal, (art. 130, I e parágrafo único, CPP), sob pena de se comprometer a própria subsistência do acusado e de sua família.

O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados de grupos de pesquisa parceiros

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1 Para maiores considerações quanto a esse fenômeno, ver: LUCCHESI, Guilherme Brenner. Medidas assecuratórias patrimoniais: a decretação do “bloqueio” de bens e outras disformidades. In: SANTORO, Antônio Eduardo Ramires. MALAN, Diogo Rudge. MADURO, Flávio Mirza (orgs.). Desafiando 80 anos de processo penal autoritário. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021.

2 “Os salários e as remunerações são impenhoráveis, nos termos do art. 833, inciso IV, do Código de Processo Civil. Semelhante inviolabilidade funda-se, por certo, na necessidade de resguardar a dignidade do devedor - e do acusado submetido a medida constritiva -, mediante a preservação do mínimo existencial para si e sua família. Esta Corte Superior, entretanto, tem reiteradamente entendido que a impenhorabilidade salarial ou remuneratória não é absoluta - mesmo porque não existem direitos absolutos -, sendo lícito o seu afastamento em determinadas hipóteses, dentre as quais se inclui aquela em que os valores depositados sob o título de remuneração ou salário perdem sua natureza alimentar por não terem sido efetivamente empregados no espaço de tempo situado entre um e outro depósito mensal. Admite-se, igualmente, o excepcionamento da regra de impenhorabilidade quanto aos valores que excederem o teto remuneratório constitucional.” [STJ, Corte Especial, AgRg na CauInomCrim 6/DF, julgado em 04 dez. 2019].

3 Sisbajud é o “Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário”, por meio do qual são feitas as transmissões das ordens de indisponibilidade, de seu cancelamento e de determinação de penhora, sendo gerido pela autoridade supervisora do sistema financeiro nacional.

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Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Mariana Beatriz dos Santos Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito e Processo Penal Econômico - NUPPE UFPR.