O crime de insider trading, conhecido no Brasil como “uso de informação privilegiada”, encontra-se no rol dos chamados Crimes contra o Mercado de Capitais, os quais podem ser identificados como subespécie dos delitos contra o Sistema Financeiro Nacional – classificação essa que possibilita situar a conduta penalmente relevante diante do contexto social, político e econômico vivenciado na atualidade.
A tutela penal de condutas lesivas a bens jurídicos no âmbito do mercado de capitais encontra seu fundamento na progressiva interdependência econômica vigente na sociedade atual, fruto de fenômenos globalizantes. Com efeito, é inviável tentar discutir a economia de alguma nação sem contabilizar as altas e baixas de sua Bolsa de Valores, por exemplo, seja no que diz respeito a recursos públicos, seja particulares. É importante notar que tal movimento das economias nacionais podem ser influenciados por cada um dos indivíduos que optar por realizar investimentos no mercado de capitais, em maior ou menor medida.
Nesse contexto, a velocidade da comunicação nacional e internacional, possibilitada pela evolução da tecnologia nas últimas duas décadas, constitui fator determinante na forma como são comercializados valores mobiliários entre investidores – operação essa protegida no tipo penal em análise no presente artigo.
O delito de Uso de Informação Privilegiada encontra previsão legal no artigo 27-D da lei 6.385/1976, tendo sido introduzido no ordenamento jurídico brasileiro em 2001 e atualizado em 20171, sendo que a sua redação atual dispõe o seguinte:
Art. 27-D. Utilizar informação relevante de que tenha conhecimento, ainda não divulgada ao mercado, que seja capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiros, de valores mobiliários:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime.
§ 1o Incorre na mesma pena quem repassa informação sigilosa relativa a fato relevante a que tenha tido acesso em razão de cargo ou posição que ocupe em emissor de valores mobiliários ou em razão de relação comercial, profissional ou de confiança com o emissor § 2o A pena é aumentada em 1/3 (um terço) se o agente comete o crime previsto no caput deste artigo valendo-se de informação relevante de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo.
Da leitura do texto legal, conclui-se que o tipo objetiva proteger a assimetria excessiva de informações entre investidores, o que teria o potencial de lesar a livre concorrência na realização de investimentos. Inclusive, é interessante notar que existem discussões, por parte de alguns grupos de investidores atuantes com frequência no mercado de capitais, sobre a verdadeira necessidade de sequer existir tal tutela jurídica – argumenta-se que a prática seria importante ao fomento do mercado e à sua natural dinamicidade, conforme estudado por CAVALI2.
Embora tal discussão seja relevante à luz da Política Criminal, não se pode ignorar que o delito já existe e merece ser observado, discutido e, especialmente, repensado, a fim de que seus efeitos processuais sejam ordenados pelas garantias judiciais concedidas aos acusados. Portanto, objetiva-se, de forma singela, enfrentar alguns dos impasses já constatados no cenário atual, sem a pretensão de, necessariamente, solucioná-los.
Em primeiro lugar, é importante tecer algumas considerações acerca dos elementos subjetivos do tipo, especialmente no que diz respeito à afirmação de que o delito possui dolo genérico e especial fim de agir, o qual seria o de obtenção de vantagem indevida – entendimento defendido por BITENCOURT e BREDA3 em conjunto com boa parte da doutrina. Ora, o crime é formal e se consuma a partir do momento em que se realiza a negociação, ainda que esta não proporcione os resultados positivos objetivados pelo agente4. No mínimo, parece excessivamente abstrato supor que tal negociação ocorreria sem a intenção de obtenção de vantagem – afinal, a participação no mercado de capitais pressupõe a intenção do investidor de obter lucro.
Ainda assim, argumenta-se5 que seria imprescindível a vontade de obtenção de lucro indevido, isto é, além do lícito, de modo a lesar a livre concorrência e a (relativa) equivalência de oportunidades. No entanto, ainda que tal posicionamento seja importante para o estudo do tipo, é necessário pensar nos problemas processuais que dele resultam, em especial na complicada viabilidade de se comprovar tal diferença por meio da produção probatória, tanto na construção da tese acusatória quanto da tese defensiva.
Isto é, há muito já foi abandonada a tentativa de se extrair a “Verdade” do intelecto do acusado através do processo penal. Teoria da Ação Significativa parece a mais adequada ao estudo da ação penalmente relevante, na medida em que, em síntese, a descreve como a construção de significados linguísticos a partir de elementos probatórios concretos, sem a preocupação de se investigar a “Ação” em seu sentido ontológico.
A partir desse pensamento, é possível concluir que será impossível descobrir exatamente os pensamentos do agente no momento em que praticou a conduta, visto que tal elemento jamais poderá ser observado objetivamente. Ou seja, a ação penalmente relevante deixa de ser um acontecimento e torna-se um fato sujeito à interpretação diante das regras e normas do sistema. A interpretação, por sua vez, será possibilitada a partir das circunstâncias que concretizam aquele fato com base em uma expressão de vontade6.
Contudo, isso nos leva a considerar o que seria essa expressão de vontade. Ora, aduzem BUSATO e CAVAGNARI que a ação “é algo que se compreende como expressão de sentido, portanto, a identificação da ação depende de indicadores externos que coincidam com o sentido de uma atuação voluntária. (...) Daí, observa-se que os resultados obtidos na prática – que objetivam perceber e compreender a existência ou não do tipo de ação como expressão de um sentido de determinado tipo – são mais efetivos que os obtidos pela tentativa de definir a ação através de um conceito.”7
Assim, é possível compreender, em termos práticos, o problema sobre a exigência do especial fim de agir, visto que será completamente inviável buscar comprovar a diferença entre a intenção de A) negociar e obter vantagem lícita e a de B) negociar e obter vantagem ilícita.
Aliás, tal raciocínio nos conduz à segunda dificuldade prática encontrada na efetiva tutela penal da conduta descrita, que diz respeito à produção de prova suficiente para a instauração de uma Ação Penal. Seria necessário demonstrar, em suma, que o agente tinha conhecimento da informação, sabendo da sua especial relevância (I) e que realizou tal negociação valendo-se da referida informação privilegiada (II).
Nota-se que ambos os elementos são essencialmente pertencentes à psique do agente, sendo possível imaginar que a prova poderia ser produzida a partir de depoimento testemunhal ou de interceptação telefônica, desde que o acusado tivesse previamente verbalizado ou descrito ter posse da informação e, em virtude disso, ter realizado a negociação. Ainda assim, parece improvável acreditar que o Ministério Público ou a Autoridade Policial teriam como acessar tal informação sem a existência prévia de outra investigação ou sem o registro de ocorrência de um delito por parte de uma testemunha.
Embora seja possível imaginar tais cenários de forma abstrata, não se pode acreditar que tais hipóteses seriam suficientes ou estariam presentes em todos os casos de insider trading. Um dado importante que, a princípio, parece comprovar essa hipótese, consiste no fato de que a primeira sentença condenatória desse delito foi proferida em 2016, ainda que a sua redação original seja de 20018. Ora, não se pode acreditar que tais casos foram os únicos em que o crime foi praticado desde então. Esse número indica a dificuldade de produção probatória para a comprovação do delito, que exigiria quase que uma onipresença orwelliana do Estado na observação de seus cidadãos a cada movimento que executam. Em suma, o segundo problema aqui em estudo materializa-se a partir da dificuldade de serem comprovadas algumas elementares do tipo em questão: a posse da informação privilegiada, sabendo-a privilegiada, associado ao seu emprego na obtenção de vantagem indevida.
Por fim, chega-se ao terceiro problema aqui colocado em pauta, relacionado ao processo de inserção do delito no ordenamento jurídico. Antes mesmo da tipificação penal da conduta, existia a regulação administrativa do mercado de capitais exercida pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) independentemente da persecução penal da conduta. Tanto é que a lei 6.385/1976 originou a CVM e, somente em 2001, tratou de transformar em conduta penalmente relevante aquela que já era prevista como ilícita no âmbito administrativo.
Por tal razão, é possível observar uma intensa transposição de valores e princípios que integram o Direito Administrativo ao delito em estudo, mas que vão de encontro com boa parte da estrutura do Processo Penal, especialmente no que diz respeito à produção probatória. Exemplo disso é a previsão de certos cargos contra os quais existiria uma “presunção” automática de posse de informação privilegiada, facilitando, assim, seu processamento administrativo.9
Tal exemplo demonstra exatamente a afronta aqui apontada – afinal, não se pode pensar em presunção alguma contra o acusado no Processo Penal, ainda que isso faça sentido sob a lógica administrativa.
Em outras palavras, o ilícito administrativo necessita de um standard probatório inferior ao que se exige no Processo Penal para a acusação e a condenação do acusado em razão das normas que organizam o Processo Administrativo. Isso torna perfeitamente possível a existência de um delito administrativo com a redação do insider trading sem que ocorra qualquer contradição com o ordenamento jurídico.
Contudo, tal não é o caso quando se transpõe um delito criado nesse contexto para a esfera penal, na medida em que, desde a sua análise abstrata, parece quase impossível a comprovação da conduta por meio de provas consistentes sem que sejam cometidas arbitrariedades contra o acusado.
Isso permite afirmar que, na redação atual, o delito assemelha-se a um natimorto, que surgiu já com a expectativa de não surtir efeitos consistentes na sociedade, sendo incapaz de proteger os bens jurídicos que abstratamente encontram-se tutelados no texto legal.
Poder-se-ia argumentar sobre as poucas condenações já ocorridas pelo delito de Uso de Informação Privilegiada, mas tal fato somente reforça a tese da afronta contra os princípios do Direito Penal. Ou seja: esse diminuto número parece indicar certa seletividade punitiva em relação ao delito, que se restringe a casos específicos e, em grande medida, com grande repercussão midiática.
Relembra-se que a persecução penal não poderia, em tese, ser motivada por casos de grande repercussão local ou nacional, com ampla quantidade de sujeitos com seus bens jurídicos lesados, mas deveria direcionar-se às condutas com os elementos objetivos e subjetivos preenchidos. Contudo, tal não tem sido a tendência dos últimos anos, e com o delito de insider trading não seria diferente.
Por todas as razões aqui apontadas, entende-se que a tutela penal da realidade por meio da legislação referida possui pouca ou nenhuma efetividade à luz dos fundamentos teóricos mais essenciais ao Processo Penal. Além disso, a redação atual do delito exige do Ministério Público e da defesa, eventualmente no “jogo” da ação penal, habilidades quase sobrenaturais para a produção da prova, seja em relação aos elementos objetivos, seja em relação aos elementos subjetivos, em especial o dolo.
Tais entraves resultam, em boa medida, da “administrativização” do Direito Penal no que diz respeito a essa conduta. No ponto, a despeito da discussão quanto à (i)rrelevância da proteção do bem jurídico por meio desse delito a encargo da Política Criminal, é necessário repensar a viabilidade prática de se permitir que a redação atual do delito continue a surtir efeitos – ou, por outro lado, que continue impossibilitando os efeitos desejados por uma persecução penal eficiente.
Afinal, ainda que o bem jurídico seja relevante, nem sempre o que se vê como negativo na sociedade deve figurar como alvo do Direito Penal – como poderiam argumentar alguns investidores. Todavia, a proteção aos bens jurídicos mais relevantes do ordenamento jurídico pátrio não deve ser deixada à mercê da produção probatória; sua tutela deve ser construída à luz das garantias fundamentais que sustentam o Estado Democrático de Direito.
O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados de grupos de pesquisa parceiros.
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1 ESMANHOTTO, Maria Victoria da Fonseca. Proteção do mercado de capitais no Brasil: Sobreposição de Instâncias Administrativa e Penal. Londrina, PR: Thoth, 2023, p. 104.
2 CAVALI, Marcelo Costenaro. Insider trading: repressão administrativa e penal do uso indevido de informação privilegiada. São Paulo: Quartier Latin, 2022. p. 42.
3 BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Crimes contra o sistema financeiro nacional e contra o mercado de capitais. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 413.
4 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Econômico, v. 1. São Paulo: Saraiva Educação, 2016. p. 195-197.
5 EIZIRK, Nelson et al. Mercado de capitais: regime jurídico. 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 722.
6 BUSATO, Paulo César. CAVAGNARI, Rodrigo. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba, v. 9, n. 16, p. 147-180, jan./jun. 2017.
7 Ibid.
8 EX-DIRETOR da Sadia é o primeiro condenado no Brasil por insider trading. Revista Consultor Jurídico, 22 de fevereiro de 2016. Acesso em: 17 de julho de 2023.
9 SODRÉ, Antonio Pedro. VEIGA, Thomas Fernandes da. A reforma sobre as presunções relativas sobre insider trading. Migalhas, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 16 de julho de 2023.