“Crime e dinheiro são indissociáveis nas razões de existir, na reprovação e repercussão social, na investigação e na prova, na justiça e na impunidade.”1 Com essa frase, Néfi Cordeiro resume problemáticas que norteiam as buscas por estratégias de combate a delitos de cunho econômico: a localização do patrimônio, as técnicas de constrição cautelar e a amplitude do confisco final do “dinheiro sujo”.
Este breve artigo analisa especificamente a sistemática das medidas assecuratórias no processo penal brasileiro à luz das inovações trazidas na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92) com o advento da lei 14.230/21, sobretudo quanto à exigência da demonstração do periculum in mora e do contraditório do acusado/investigado.
A ratio essendi da discussão é simples: persiste na jurisprudência o entendimento de que o periculum in mora é presumido para o sequestro de bens no processo penal, especialmente quando há suspeitas de crime contra a administração pública ou de lavagem de capitais2.
Tal raciocínio, que parece ter origem no autoritário decreto-lei 3.240/413, editado antes mesmo do Código de Processo Penal de 1941 ainda vigente, continua sendo reproduzido pelos Tribunais como uma “fórmula mágica”, um “amuleto” citado para dar fundamento àquilo que, dogmaticamente, não possui fundamento.4
Embora a inadmissibilidade desse posicionamento tenha sido constantemente denunciada pela doutrina5, a ausência de reforma nas disposições processuais penais sobre o tema, associada à chancela pelas Cortes Superiores, acabou por estender esse cenário, tornando-se cada vez mais comum a decretação de sequestro de bens como providência automática do surgimento de investigações criminais, sobretudo no contexto das midiáticas “operações”.
Mudanças legislativas em outras searas do direito sancionador revelam não somente a fragilidade dogmática desse posicionamento, mas sua incoerência sistêmica.
A lei 14.230/21 trouxe alterações substanciais na esfera da improbidade administrativa, reconhecendo-se expressamente o caráter precipuamente repressivo e sancionatório dessa ação. Não por outra razão, seu distanciamento das ações civis públicas tem como propósito assegurar garantias aos acusados a partir da incidência de princípios comuns às sanções penais e administrativas. Exatamente por esse motivo, foi repensada a dinâmica sancionatória para a decretação da medida de indisponibilidade de bens.
O parágrafo 3º, inserido no art. 16 da LIA, condiciona expressamente o deferimento do pedido de indisponibilidade de bens à demonstração, não só dos elementos indiciários de ocorrência dos atos ímprobos descritos na petição inicial (fumus boni iuris), mas do perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo (periculum in mora).
A novidade legislativa se concentra, portanto, no entendimento de que só o fato do ajuizamento da ação de improbidade não é suficiente para justificar, automaticamente, a indisponibilidade de bens do investigado, uma vez que esse raciocínio contrastaria com os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e da presunção de inocência.
Com o novo regime da LIA, resta expressamente superado o posicionamento jurisprudencial fixado no Tema 701/STJ,6 que passou a admitir, tal qual a sistemática do decreto-lei 3.240/41, a medida de indisponibilidade bens como tutela de evidência, em razão de um periculum in mora implícito.
Segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, não seria necessário demonstrar o risco de dano irreparável, sendo este presumido em razão dos indícios da prática de improbidade administrativa, da gravidade inerente ao ato e da necessidade de garantir o ressarcimento do patrimônio público em caso de condenação.
No cenário atual, a partir da redação do parágrafo 4º do art. 16, acrescido pela lei 14.230/21, rechaça-se em absoluto a ideia de presunção da urgência para a decretação da medida cautelar de indisponibilidade de bens, sendo necessária a efetiva demonstração, no caso concreto, de atos de dilapidação patrimonial por parte do investigado. Tal dispositivo também inova ao prever a decretação liminar da providência constritiva como hipótese excepcional, garantindo-se, em regra, o contraditório do réu (art. 16, §3.º, LIA).
Diante dessas inovações, imperioso é que se dê um passo atrás para se reconhecer que há, aqui, mais um dogma inquestionável adotado pela jurisprudência: a ideia de absoluta independência entre as instâncias.
Muito embora esse argumento seja repetido como um verdadeiro mantra7 quando se trata da relação entre sistemas reconhecidamente sancionatórios, já não se ignora que a manifestação do poder punitivo estatal se extravasa por distintas órbitas jurídicas, sendo, hoje, incontroverso que existe uma zona de encontro entre o direito penal e o direito administrativo sancionador, especialmente na seara da improbidade administrativa.
Essa relação improbidade-crime pode ser observada, na prática, pela correspondência entre condutas previstas como atos de improbidade administrativa e como delitos contra a administração pública. Nesses casos, a razão para um movimento transversal de comunicabilidade entre instâncias é tornar mais coerente a dinâmica sancionatória da atividade estatal8, diante da expansão do poder punitivo pela proliferação de normas repressivas para além dos crimes em espécie.
Invocar a existência de um Direito Sancionador não pode servir, nesse cenário, apenas como elemento de retórica, mas para construir uma sistemática processual dotada de racionalidade e, sobretudo, de coerência política.
Trata-se, portanto, de adotar um discernimento que “contemple a ideia de unidade do ordenamento jurídico, estruturando-se uma relação não de identidade, mas de coordenação entre os diferentes ramos que incidem na formação do ilícito e de sua sanção”9, como defende Helena Regina Lobo da Costa.
A partir dessas reflexões, nada mais justificaria, sob um olhar sistêmico do direito processual punitivo em sentido lato, que apenas o direito processual penal, destinado a frear as mais sensíveis restrições de direitos fundamentais, prescindiria do pressuposto básico de imposição de qualquer medida cautelar.10 Precisa-se, enfim, ir além.
Ainda em 2008, Pierpaolo Bottini ressaltava que as liminares e as decisões de antecipação de tutela substituíram, em número e em importância, as sentenças: “parece que todos os atos relevantes da vida processual foram deslocados para o início do litígio, e as decisões definitivas se tornaram apenas um desfecho sem interesse.11
De fato, basta vivenciar a rotina das persecuções em torno de crimes econômicos para se observar que relatórios preliminares de auditoria, notas técnicas de controladoria e informações básicas de polícia judiciária servem, já no início das investigações, à decretação alargada de sequestro de bens de investigados, antes mesmo de ser consolidada a hipótese criminal em torno do caso.
Como visto, tal cenário é estimulado não apenas pelo rebaixamento do standard probatório que traduziria o fumus comissi delicti, mas especialmente pela inobservância do periculum in mora, refletida sob a alegação de que ele, em casos penais, é presumido.
As inovações introduzidas na Lei de Improbidade Administrativa, no entanto, impõem a mudança desse raciocínio não somente pela sua incompatibilidade com a própria razão de ser das medidas cautelares, mas também para fins de coerência sistêmica.
Nesse cenário, algumas propostas são cabíveis.
De lege ferenda, propõe-se a consolidação de uma teoria una do processo judicial punitivo, sobretudo de um processo cautelar punitivo, este último ainda carente de sustentáculos não apenas legislativo, mas doutrinário. Afinal, possivelmente em razão do “ranço cognitivista”12 que dominou as escolas processuais brasileiras, pouco ainda se refletiu sobre as bases do processo cautelar e a sua possível autonomia em relação ao processo punitivo de conhecimento.
De lege lata, não se vê outra solução senão exigir dos Tribunais que procedam ao overruling13 dos precedentes hoje adotados, devendo-se ter em mente que a presunção de inocência, como ressalta André Nicolitt,14 serve como verdadeiro mecanismo de limitação teleológica à aplicação das medidas cautelares, impedindo seu desvirtuamento para qualquer que seja o fim.
Retomando-se a citação que introduziu o presente artigo, urge reconhecer que, por mais que seja essencial pensar em mecanismos seguros de prevenção e repressão dos delitos econômicos, sobretudo os que vulneram a res publica, não se pode atender a tais fins a partir da atribuição de efetividade perniciosa15 à persecução penal, dissociada de sua razão de ser.
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1 CORDEIRO, Néfi. Apresentação. In: VIEIRA, Roberto D’Oliveira. Confisco alargado de bens: análise de direito comparado. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 11.
2 A análise foi direcionada ao TRF-4: LIMA, Gabriel Henrique Halama de; NUNES, Pedro Henrique. Da (im) prescindibilidade do periculum in mora nas medidas cautelares patrimoniais decretadas em crimes financeiros: uma análise a partir da jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Revista da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, ano 13, v.2., n. 31, p. 99-116, 2022. Verifica-se, contudo, que o STJ vem se posicionando no mesmo sentido. A título de exemplo, confira-se: AgRg no REsp n. 1.621.943/SP, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 11/12/2018, DJe 17/12/2018.
3 Nas palavras de Pinto Ferreira “toda a legislação do Estado Novo se orientou contra as liberdades públicas” (FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 58.)
4 A expressão é de: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. v.1. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 171.
5 Além do trabalho citado, pode-se mencionar, a título exemplificativo, as seguintes reflexões trazidas pelo prof. Lucchesi: LUCCHESI, Guilherme Brenner. Por uma teoria das medidas cautelares patrimoniais no processo penal. Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, Curitiba, 8 de abr. de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 01 jul. 2023; LUCCHESI, Guilherme Brenner; ZONTA, Ivan Navarro. Sequestro dos proventos do crime: limites à solidariedade na decretação de medidas assecuratórias. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 6, n. 2, p. 735-764, mai./ago. 2020.
6 Tema 701/STJ: É possível a decretação da indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro.
7 Adriano Teixeira, Heloísa Estellita e Marcelo Cavali apontam que o argumento de independência entre as instâncias é sempre “sacado da manga e usado indiscriminadamente”, figurando como uma “fórmula mágica” para “varrer para debaixo do tapete problemas de sensível complexidade”: TEIXEIRA, Adriano; ESTELLITA, Heloisa; CAVALI, Marcelo. Ne bis in idem e o acúmulo de sanções penais e administrativas. Revista Jota, 1 ago. 2018. Disponível em: Acesso em: 28 jun. 2023.
8 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo sancionador [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2022, rb. 4.2.1.2.
9 COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito penal econômico e direito administrativo sancionador: ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. 2013. Tese (Livre Docência) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 235.
10 Há mais de seis décadas, Hélio Tornaghi também apregoava: pode, é certo, haver providências inadiáveis sem caráter de cautela, mas a recíproca não é verdadeira: não há motivos para providências assecuratórias onde não exista necessidade imediata e se possa, sem perigo, esperar as definitivas. (TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal. v.1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 207.)
11 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Medidas cautelares: projeto de lei 111/2008. MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis et. al. As reformas no processo penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: RT, 2008, p. 454.
12 Sobre o tema, em breve reflexão: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Sentença cautelar, cognição e coisa julgada: reflexões em homenagem à memória de Ovídio Baptista. Disponível em: https://www.leonardocarneirodacunha.com.br/publicacoes/sentenca-cautelar-cognicao-e-coisa-julgada-reflexoes-em-homenagem-a-memoria-de-ovidio-baptista/. Acesso: 03 jul. 2023.
13 Como ressalta Lucas Buril, a técnica de superação do precedente (overruling) consiste justamente na substituição de uma ratio decidendi por outra. (MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 311).
14 NICOLITT, André Luiz. Processo penal cautelar: prisão e demais medidas cautelares [livro eletrônico]. São Paulo: RT, 2015.
15 A expressão é de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, e reproduzido em diversos estudos sobre a necessidade de se compreender o formalismo-valorativo que deve nortear o direito processual democrático: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. Revista de processo. São Paulo: RT, ano 31, n. 137, jul. 2006, p. 7-31.
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O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados de grupos de pesquisa parceiros.
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*Vinícius Costa Rocha é advogado. Mestrando em Jurisdição e Processos Constitucionais pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Cofundador e Diretor de Ensino da Liga de Ciências Criminais da UFPE (UFPECrim).
*Alice Aragão Magalhães é advogada. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Cofundadora e Diretora de Ensino da Liga de Ciências Criminais da UFPE (UFPECrim).