Informação privilegiada

Breves apontamentos sobre a responsabilização penal das pessoas jurídicas nos delitos contra a ordem tributária

A proposta aqui sintetizada é de responsabilização penal da pessoa jurídica por meio de sistema de autorresponsabilidade.

27/6/2023

Em 1906, o escritor Upton Sinclair1 denunciou na obra "A Selva" as desumanas condições de trabalho nas empresas do setor frigorífico nos Estados Unidos. Por meio da história de Jurgis Rudkus, imigrante lituano que se muda com a sua família em busca de uma vida melhor, Sinclair descreveu cenário de empresas exploravam cruelmente seus trabalhadores em busca do lucro, numa realidade permeada por acidentes de trabalho e salários baixos.

Na época de Sinclair, os graves males que empresas podiam causar à população já eram visíveis. Na sociedade globalizada atual, algumas das principais agressões à coletividade envolvem pessoas jurídicas e atentam contra bens jurídicos como a ordem tributária. Assim como a obra de Sinclair levou a uma maior regulação da atividade empresarial2, casos recentes como o da Enron3 e dos desastres de Mariana (2015)4 e Brumadinho (2019)5 convidam a repensar a questão da (ir)responsabilidade penal das pessoas jurídicas, em contexto no qual o ente coletivo já pode figurar como vítima, mas apenas muito excepcionalmente como autor.

Como afirma Laura Zuñiga Rodriguez, a empresa é um dos principais agentes geradores de riscos para bens jurídicos fundamentais, causando danos socialmente relevantes nos seus mais diversos processos de atuação: 1) na etapa de produção, 2) nos resultados produzidos pela atividade empresarial e 3) na poluição com dejetos industriais.6

Nesse cenário, pertinente tecer breves considerações sobre a responsabilização penal da pessoa jurídica por delitos contra a ordem tributária, a partir das contribuições da Concepção Significativa da Ação, desenvolvida por Tomás Salvador Vives Antón7.

A proposta aqui sintetizada é de responsabilização penal da pessoa jurídica por meio de um sistema de autorresponsabilidade, o qual, segundo Paulo César Busato8, é assim chamado porque permite a imputação da pessoa jurídica de forma completamente independente da imputação atribuída à pessoa física. Um modelo verdadeiro de autorresponsabilidade penal da pessoa jurídica poderia solucionar casos em que a cadeia hierárquica de comando e a pulverização de tarefas dificulta a identificação de pessoas físicas como autoras de determinados delitos. Esse modelo não impede, por outro lado, eventual concurso entre a pessoa física e a jurídica, nos casos em que seja possível individualizar condutas de ambos.9

Vives Antón10 examina a ação a partir de uma interpretação contextual e linguística, de modo que ela é compreendida como uma atribuição de sentido que deve ser interpretada em seu contexto de realização. Abandona-se a ideia de que a ação seja algo que ocorre no mundo físico, abdicando-se de buscar parâmetros psicofísicos para avaliar se uma ação existe ou não.  Por esse motivo, afirma-se que a ação “não deriva das intenções que os sujeitos que atuam pretendem expressar, senão do significado que socialmente se atribui ao que fazem.”11 Em suma, Vives Antón propõe a superação do paradigma ontológico representado pelas teorias clássicas do delito por meio da compreensão da ação como a realização de um tipo de ação.

Partindo da Concepção Significativa da Ação, a pessoa jurídica é vista como fonte de significado, vez que é exigível que ela atue de acordo com as normas jurídicas. Se as condutas das pessoas jurídicas possuem um significado valorado socialmente, essas condutas são ações, e se essas ações possuírem natureza contrária ao ordenamento jurídico penal, podem situar a pessoa jurídica como autora de delitos.

Juan Carlos Carbonell Mateu12 afirma que a ação da pessoa jurídica deve ser entendida não como um fazer, mas como um sentido comunicativo. Em sentido semelhante, Busato13 afirma que “o significado de uma palavra – no nosso caso, as palavras que compõem os tipos penais – não é determinado por um objeto jurídico ou material ou por uma entidade que os executa (seja física ou jurídica), mas simplesmente por seu uso na linguagem comum14. Exemplificativamente, hoje é possível afirmar, com sentido jurídico, que “a empresa X falsificou seus balanços patrimoniais”. Desse modo, em contexto em que esse uso linguístico é compartilhado por práticas estáveis, é possível atribuir tais condutas a um ente coletivo.

A partir dessas considerações, podemos vislumbrar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas nos delitos contra a Ordem Tributária, em contexto em que indivíduos atuam como engrenagens coordenadas que promovem ação identificável como sendo própria da pessoa jurídica. Várias decisões e ações individuais de pessoas físicas formam um atuar próprio que só é compreendido em sua totalidade pela somatória de todas as ações individuais.

Esse tipo de atuar é visível no campo dos crimes tributários.

Antigamente, os delitos tributários eram previstos no Código Penal, a exemplo da falsidade de papeis públicos (art. 293, CP). Em segundo momento, alguns delitos foram realocados para o campo do Direito Tributário,15 com a edição da Lei nº 4.131/62, que tratou da regulamentação da aplicação do capital estrangeiro e remessas de valores para o exterior. No art. 17 dessa lei16, havia a determinação para pessoas físicas e jurídicas declararem à Superintendência da Moeda e do Crédito os valores e bens que possuíssem no exterior, enquanto no art. 1817 havia a previsão de que a inobservância levaria os valores e depósitos no exterior a serem considerados como produto de enriquecimento ilícito, podendo ser objeto de persecução penal. Outros passos foram dados rumo à consolidação de uma tipificação penal dos delitos contra a ordem tributária, como a Lei nº 4.729/65, conhecida como Lei de Sonegação Fiscal, até o advento da Lei nº 8.137/90, que definiu os crimes contra a ordem tributária, contra as relações de consumo e contra a ordem econômica.18

Na Lei nº 8.137/90, os tipos penais de sonegação fiscal foram divididos em dois dispositivos: no art. 1º, o crime material de supressão ou redução efetiva de tributos por condutas ardilosas e/ou fraudulentas; no art. 2º, o crime formal, de omissão ou falsificação de informações ao fisco, ou ainda a omissão de pagamento de tributos retidos.

No art. 1º, há condutas que podem ser razoavelmente atribuídas a pessoas jurídicas por meio da linguagem comum, como a conduta de “suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório...”. São condutas que podemos conceber como cometidas pela pessoa jurídica ao afirmarmos, por exemplo, que “a empresa X pagou menos impostos do que devia”.

Outras condutas passíveis de serem atribuídas ao ente coletivo são as constantes no inciso I: “omitir informação que deve ser prestada, ou ainda prestar declarações falsas às autoridades”, condutas de meio análogo à falsidade ideológica do art. 299 do Código Penal, e cuja omissão se refere a informação relevante para a autoridade tributária e com poder de suprimir ou reduzir o pagamento do tributo.19 Razoável conceber mediante a linguagem comum que “a empresa Y omitiu informações em seus balancetes para pagar menos tributos”.

No caso, empregados atuam como longa manus, tendo suas ações inseridas no âmbito hierárquico das atividades da empresa. Assim como no Direito do Trabalho não se processa o funcionário do Departamento de RH que demite um trabalhador sem justa causa, e sim a pessoa jurídica patronal, a lógica aqui seria punir não o funcionário que omitiu informações ao fisco, atuando a mando da empresa e para benefício desta, mas a própria pessoa jurídica.

Por último, no inciso V, a conduta de “negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente à venda de mercadoria ou prestação de serviço” se refere à negativa de fornecimento de documento comprobatório de operação contábil ou o fornecimento em desacordo com a legislação como meios da supressão ou da redução do tributo, conforme o caput do art. 1º.20 Também aqui é possível conceber a conduta da pessoa jurídica se considerado que o funcionário do departamento financeiro que comete tais condutas, obedecendo ordens e em benefício da empresa, não é o agente que verdadeiramente cometeu o tipo de ação.

No art. 2º, há outras condutas teoricamente atribuíveis ao ente coletivo, por exemplo, “fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo”.

Esses são só alguns exemplos de como a teoria da concepção significativa da ação poderia ser aplicada para operacionalizar uma forma de responsabilização penal da pessoa jurídica. Mas essa temática não é pacífica, havendo aqueles que defendem que a pessoa jurídica não é passível de responsabilização, como Claus Roxin e Hans-Heinrich Jescheck21 na doutrina estrangeira, e Juarez Cirino dos Santos22, René Dotti23 e Luiz Régis Prado na doutrina nacional. Há ainda aqueles que sugerem a responsabilização de forma indireta, com base em um modelo de heterorresponsabilidade, como Carlos Gomes, Jara Diez ou por meio de um sistema de imputação exclusivo para a pessoa jurídica, como proposto por David Baigún.24

Com estes breves delineamentos, indica-se a teoria da Concepção Significativa como meio de viabilizar a responsabilização penal das pessoas jurídicas, especialmente em âmbitos como o dos delitos contra a ordem tributária. Nesse contexto, cogita-se um sistema autêntico de autoresponsabilidade penal no qual a pessoa jurídica será imputável quanto à conduta que pode ser atribuída diretamente a ela, com respeito ao princípio da culpabilidade e ao mesmo tempo evitando a impunidade de grandes corporações que possam causar danos mais lesivos para a coletividade do que ações ainda limitadas ao paradigma de condutas humanas individuais. 

 O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados de grupos de pesquisa parceiros. 

__________

1 SINCLAIR, Upton. The Jungle. New York: The Jungle Publishing Co, 2004

2 A obra de Upton Sinclair levou à promulgação do Federal Meat Inspection Act, em 30 de Junho de 1906, estabelecendo normas sanitárias para a produção de carne destinada ao consumo humano e mecanismos de fiscalização da indústria frigorífica americana.

3 A Enron, atuando em conjunto com a grande empresa de auditoria Arthur Andersen (à época considerada uma das maiores empresas de contabilidade do mundo), declarou rendimentos inexistentes com a intenção de ocultar prejuízos econômicos significativos que havia sofrido, mantendo-se como uma empresa aparentemente rentável aos olhos dos investidores. Ver: DIMENTO, Joseph F.C.; GEIS, Gilbert. Corporate criminal liability in the United States. In: TULLY, Stephen. Research handbook on corporate legal responsibility. Gloucestershire: Edward El-gas, 2005. p.167-169.

4 Sobre uma análise jurídico-penal da tragédia de Mariana/MG recomenda-se a leitura de: BUSATO, Paulo César; ARRAES, Rhayssam Poubel de Alencar (Org.). Análise jurídico-penal da tragédia de Mariana: o caso Samarco. 1. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2022.

5 Sugere-se a leitura da precisa análise do caso de Brumadinho/MG feita por Paulo César Busato em: BUSATO, Paulo César. O Leviatã de Brumadinho. Boletim Ibccrim, ano 27, n. 316, p. 7-8, mar. 2019.

6 ZUÑIGA RODRIGUES, Laura. Modelos de imputación penal para sancionar la criminalidad de empresa en el CP español de 1995. In: Revista Peruana de Ciencias Penales:Lima, 1999. p.961-996.

7 Ex-vice-presidente do Tribunal Constitucional Espanhol e professor catedrático da Universidade de Valência (Espanha). Sobre Vives Anton, afirma Carlos Martínez-Buján Pérez:en último término Vives realiza uma lectura de Kant através de Wittgenstein (o viceversa), porque, partiendo de la concepción del Derecho como um orden externo de convivência, el fin que guia su construccíon es el prevalecimiento del Derecho y eleje de esa construción es la acción com um significado público (externo). Sobre ella versa una ley general (porque todos los ciudadanos prestan su consentimento) y se assume la nítida separación entre Derecho y Moral (moral-virtude).” MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho penal econômico y de la empresa: Parte General. 2. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011. p.40.

8 BUSATO, Paulo César. Tres Tesis sobre la responsabilidad penal de personas jurídicas. Valência. Tirant Lo Blanch, 2019. p.88.

9 BUSATO, Paulo César. Tres Tesis sobre la responsabilidad penal de personas jurídicas. Valência. Tirant Lo Blanch, 2019. p.88

10 A proposta desenvolvida por Vives Antón tem por base o direito como uma ordem de convivência humana e como o produto de um processo de comunicação de sentido estabelecido em um modelo hermenêutico pragmático.

11 BUSATO, Paulo César. La tentativa del delito – Análisis a partir del concepto significativo de la acción. Curitiba. Juruá, 2011. p.36.

12 CARBONELL MATEU, Juan Carlos. Aproximación de la dogmática de la responsabilidad penal de las personas jurídicas. In Constitución, Derechos Fundamentales y Sistema Penal. Semblanzas y estúdios com el motivo del setenta aniversario del Profesor Tomás Salvador Vives Antón. Tomo I.J.C.Carbonell Mateu, J.L. González Cussac e E. Orts Berenguer- orgs., Valência: Tirant lo Blanch, 2009.

13 BUSATO, Paulo César. Tres Tesis sobre la responsabilidad penal de personas jurídicas. Valência. Tirant Lo Blanch, 2019. p. 96.

14 Ou seja, o sentido de uma palavra é dado pelo seu uso na linguagem. BAKER, Gordon; HACKER, Peter Michael Stephan. Wittgenstein: Understanding and Meaning. Volume I of An Analytical Commentary on the Philosophical Investigations. Part I: Essays. 2. ed. Blackwell Publishing, 2005. p.137-145.

15 HARADA, Kiyoshi; MUSUMECCI FILHO, Leonardo; POLIDO, Gustavo Moreno. Crimes contra a ordem tributária. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p.149.

16 Art 17 da Lei nº 4.131/62: “As pessoas físicas e jurídicas, domiciliadas ou com sede no Brasil, ficam obrigadas a declarar á (sic) Superintendência da Moeda e do Crédito, na forma que for estabelecida pelo respectivo Conselho, os bens e valores que possuírem no exterior, inclusive depósitos bancários, excetuados, no caso de estrangeiros, os que possuíam ao entrar no Brasil.”

17 Art. 18 da Lei nº 4.131/62:A inobservância do preceito do artigo anterior importará em que os valores e depósitos bancários no exterior sejam considerados produto de enriquecimento ilícito e como tais objeto de processo criminal, para que sejam restituídos ou compensados com bens ou valores existentes no Brasil, os quais poderão ser seqüestrados pela Fazenda Pública, na medida em que sejam suficientes para tanto.”

18 ARAÚJO, Maria Pinhão Coelho. Crimes tributários e previdenciários. In: SOUZA, Luciano Anderson de; ARAÚJO, Maria Pinhão Coelho. Direito Penal Econômico: parte geral e leis penais especiais. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 317.

19 ARAÚJO, Maria Pinhão Coelho. Direito Penal Econômico: parte geral e leis penais especiais. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p.329.

20 ARAÚJO, Maria Pinhão Coelho. Direito Penal Econômico: parte geral e leis penais especiais. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p.331.

21 Ver respectivamente em: ROXIN, Claus. Derecho penal: Parte General. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña. Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Editorial Civitas. 1999. p. 258-259; e JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho penal: Parte general. Trad. José Luiz Manzanares Samaniego. 4. ed. Granada: Editorial Comares. 1993. p.205.

22 SANTOS, Juarez dos. Direito Penal: parte geral. 9. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch. 2020. p. 693.

23 DOTTI, René Ariel; PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

24 Ver respectivamente em: BAIGÚN, David. La tipicidad em el sistema de la responsabilidad penal de las personas jurídicas, denominado doble imputación. Córdoba: Córdoba, 1995. GOMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. A responsabilidade penal da pessoa jurídica: teoria do crime para pessoas jurídicas. São Paulo: Atlas, 2015.

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Colunistas

Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Mariana Beatriz dos Santos Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito e Processo Penal Econômico - NUPPE UFPR.