Informação privilegiada

Insider trading: A repercussão dos crimes contra o mercado de capitais no ordenamento jurídico brasileiro

Não restam dúvidas de que o mercado de capitais, por toda a sua abrangência, é merecedor de tutela penal.

16/5/2023

Em um novo painel econômico-tecnológico global, marcado pela globalização, desenvolvimento tecnológico e a livre circulação do capital, manifesta-se uma evolução no contexto da tutela penal. Nesse cenário, cresce no Direito Penal a temática dos crimes relacionados ao mercado de capitais, contemporâneos ao surgimento e amadurecimento dos “crimes de colarinho branco”, assim cunhados pelo sociólogo Edwin Sutherland em 19401. Não restam dúvidas de que o mercado de capitais, por toda a sua abrangência, é merecedor de tutela penal. Essa explosão na nova conjuntura tecnológica e econômica (em 2021, foi ultrapassado o marco de 10 mil criptoativos em circulação2) acaba por expor investidores, acionistas e empresários aos mais diversos riscos, que muitas vezes acabam por configurar atos que devem ser objeto de intervenção penal.

O mercado de capitais ou de valores mobiliários consiste em um sistema financeiro, pelo qual se realiza a intermediação para captação de recursos por meio de emissão de títulos3. Os investidores, então, adquirem tais títulos, sob forma de ações ou debêntures, no intuito de obter lucros por meio destes ativos. É por meio do mercado de capitais que grandes recursos são movimentados para as mais diversas áreas, permitindo-se uma ampliação na magnitude da composição de ativos e a reunião de montantes de menor significância, o que, assim, origina um conglomerado de elevada importância4.

Não obstante, a extensão das operações promovidas e a possibilidade de manipulação de dados geram um ambiente propício a práticas desleais dentro do mercado de capitais, as quais envolvem o uso inadequado e ilícito de informações privilegiadas. Relevante, portanto, tratar da prática do chamado "insider trading”, crime que decorre do princípio empresarial de sigilo, um dos importantes deveres de lealdade exigidos dos administradores de uma companhia aberta.

A primeira menção no ordenamento brasileiro ao uso de informações privilegiadas com o objetivo de obtenção de benefício financeiro foi disposta pela Lei nº 6.385/76, a qual dispõe acerca do mercado de valores mobiliários, isto é, dos títulos negociados no mercado e fiscalizados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Os valores mobiliários são instrumentos para captação de recursos, abrangendo diversas modalidades, tais como as ações, as debêntures, os bônus de subscrição e as partes beneficiárias. O artigo 27-D dessa Lei tipifica a conduta de “utilizar informação relevante de que tenha conhecimento, ainda não divulgada ao mercado, que seja capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiros, de valores mobiliários.”

No dispositivo legal, destaca-se a palavra relevante. A CVM descreve como relevante qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável: (i) na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta ou a eles referenciados; (ii) na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários; (iii) na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles referenciados5.

As penas aplicáveis à prática de insider trading são de reclusão, de 1 a 5 anos, e de multa de até 3 vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime. A concepção da prática de insider trading não é nova no ordenamento jurídico. No entanto, foi com a edição da lei 10.303/2001, em seu capítulo acerca “dos crimes contra o mercado de capitais”, que a prática foi tipificada como crime e tornou-se objeto de intervenção penal específica. Anteriormente, a conduta poderia apenas ser reconhecida como estelionato, nos termos do art. 171 do Código Penal. Mais recentemente, a Lei n.º 13.506/2017 alterou o tipo penal de insider trading, ampliando o sujeito ativo para abranger qualquer pessoa que obteve acesso à informação relevante. Assim, desde 2017, pune-se os insiders primário e secundário, sendo este o que não possui obrigação legal de resguardar sigilo em razão de cargo, e aquele o que obteve a informação sigilosa em razão de sua função6.

De forma sintética, o insider trading consiste no uso de informações privilegiadas para negociar ações de uma empresa. Tais informações podem incluir dados confidenciais da companhia, abrangendo desde seu desempenho financeiro, projetos de desenvolvimento de produtos, acordos de fusões e aquisições, entre outros. Na brilhante conceituação de Scalzilli e Spinelli, tem-se o insider trading como: “a utilização de informação relevante capaz de afetar a negociação de valores mobiliários antes de ser ela divulgada aos demais investidores, por pessoa que a tenha obtido, normalmente, por força de relação profissional mantida com a companhia.”7

Nessa perspectiva, compreende-se que é essencial que as transações no âmbito do mercado de capitais ocorram de maneira transparente, de forma a assegurar a segurança e confiança dos investidores no sistema financeiro. O uso indevido das informações privilegiadas confronta diretamente esse princípio, de forma que, além de ameaçar a confiança dos investidores, atua como um verdadeiro instrumento de distorção do mercado, porque afeta artificialmente o preço das ações e consequentemente distorce a oferta e a demanda desses ativos. Além disso, gera uma injusta vantagem aos detentores dessa informação, desnaturalizando o jogo característico do mercado de valores mobiliários8.

Comumente se confunde o crime de insider trading com outro crime contra o mercado de capitais conhecido como front running, uma vez que ambos são tipificados no artigo 27-D da lei 6.385/76. A grande diferença entre tais crimes está no sujeito ativo: o front running é praticado exclusivamente por um corretor ou intermediário financeiro, que utiliza uma informação interna para benefício próprio. Isso ocorre frequentemente em casos em que o operador de mercado recebe uma ordem expressiva de compra ou venda de muitas ações de alguma companhia e, visando obter benefício próprio, “sai na frente” e realiza suas operações antes de seu cliente9.

Tal prática ganhou bastante notoriedade em setembro de 2020, pelo caso do ex-operador de mesa do Credit Suisse em Nova York, Luiz Gustavo Mori. Em resumo, Mori foi acusado de usar a sua avó de 90 anos como laranja para lucrar com as operações na Bolsa brasileira entre junho de 2012 e abril de 2014, e acabou condenado à multa de 500 mil reais pela CVM. O esquema chamou atenção pelo grau de sofisticação da suposta investidora idosa que realizava operações de day trade altamente lucrativas, resultando na distribuição de R$ 1,84 milhão entre os envolvidos10.

A prática de insider trading difere também do spoofing, outro crime contra o mercado de capitais que é realizado majoritariamente por grandes investidores. Esses, objetivando manipular o preço dos ativos, utilizam ferramentas de inteligência artificial para negociação, disparando inúmeras ordens de compra e venda ao mesmo tempo; realizam essas sucessivas ofertas falsas sem intenção real de fechar negócios, de modo a influenciar outros investidores e, assim, obter vantagem por meio de fraude11.

Outro crime contra o mercado de capitais que obteve grande relevância recentemente foi o chamado pump and dump, esquema fraudulento que visa a manipular o investidor por meio de recomendações e informações falsas, a fim de causar oscilação no preço de uma ação ou ativo. Esse tipo criminal ganhou grande impacto midiático quando o CEO da Tesla, Elon Musk, fez uma série de tweets sobre a criptomoeda Dogecoin, fato que trouxe grande visibilidade e alavancou o preço do ativo. Em vista disso, foi aberta uma investigação de pump and dump pelo SEC (Securities and Exchange Commission), a CVM americana12.

Sobre o tema do presente artigo, emblemático caso a ser utilizado como referência é o ocorrido com a Americanas S.A (AMER3), em janeiro de 2023. Conhecido nacionalmente após escândalo que implicou em prejuízo de 20 bilhões, o caso trouxe temas do mercado financeiro à tona nos mais diversos âmbitos acadêmicos e profissionais. Na perspectiva do insider trading, serve também como matéria de casuística para este breve estudo.

Em matéria publicada em 13 de janeiro de 2023, apurou-se que diretores da Americanas venderam mais de R$ 200 milhões em ações da empresa no 2º semestre de 202213. Pouco tempo depois, em 27 de janeiro de 2023, a CVM instaurou inquérito administrativo, conduzido pela Superintendência de Processos Sancionadores (SPS), para investigar possível uso de informação privilegiada. Objetiva-se, dessa maneira, averiguar possíveis irregularidades para esclarecer o motivo de os diretores terem vendido as ações da empresa e, assim, verificar se houve negociações de ações com base em informações privilegiadas14.

Nesse diapasão, o Ministério Público Federal figura como importante chave para a investigação de eventual prática ilegal. Dentre as suas atribuições, cabe ao MPF apurar a responsabilização penal dos envolvidos na prática de insider trading. O órgão, no caso em exemplo, instaurou procedimento em janeiro de 2023, cujo foco é verificar se sócios majoritários da empresa detinham algum conhecimento anterior à venda e se a realizaram previamente ao anúncio do rombo15.

Dessa maneira, se comprovada a fraude, poderá haver responsabilização dos executivos, principalmente daqueles responsáveis pelas finanças da varejista. Restando confirmada a prática, poderão se deparar com responsabilização não só no âmbito administrativo, como também no civil e possivelmente no penal. Contudo, caso o inquérito aberto pela CVM considere a prática criminosa, tal decisão poderá ser revista pelo Poder Judiciário.

Em suma, diante de um claro avanço tecnológico que, de certo modo, ampliou as ocorrências criminais dentro do mercado de capitais, a possibilidade de intervenção penal por meio da incriminação de condutas envolvendo o mercado de capitais — nesse caso especificamente o delito de insider trading — justifica-se sobretudo por visar garantir a integridade e a transparência do mercado, bem como proteger os investidores e o sistema financeiro como um todo.

O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados de grupos de pesquisa parceiros. 

__________

1 SUTHERLAND, Edwin H. White collar criminality. American Sociological Review, s.l. v. 5, n.1, p. 01-12, fev. 1940.

2 Número de criptomoedas em circulação explode em 2021 e passa de 10.000. Exame, 10 de agosto de 2021. Disponível aqui.

3 DOS SANTOS, Josué Vieira. Mercado de Capitais. Revista de Contabilidade do Mestrado em Ciências Contábeis da UERJ, v. 6, n. 2, 2001. p. 39

4 FERREIRA, Renata Rodrigues de Abreu. Insider Trading: a repressão penal do uso de informação privilegiada no mercado de valores mobiliários. Coimbra, 2014, p. 11.

5 SANTA CRUZ, André. Manual de Direito Empresarial. 12 ed. São Paulo: Jus podivm, 2022, p. 510.

6 SANTA CRUZ, André. Manual de Direito Empresarial. 12 ed. São Paulo: Jus podivm, 2022, p. 510.

7 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe. A Racionalidade Econômica do Combate ao Insider Trading: Assimetria de Informação e Dano ao Mercado. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, n. 147, ano XLVI, jul.-set. 2007. p. 43

8 CHARÃO, Anderson Pereira. RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. A (In)Eficiência da Punição do Insider Trading à Luz da Análise Econômica do Direito e da Jurisprudência da Comissão de Valores Mobiliários. EALR, v. 10, n. 1, p.142-157, jan-abr., 2019. p. 02.

9 Crimes da Bolsa: Entenda o que é front running, insider trading, spoofing e o pump and dump. Suno notícias, 2020. Disponível aqui.

10 Ibid.

11 Ibid.

12 De Doge a Bitcoin: entenda o que é Pump e Dump, que Musk foi acusado de fazer. CNN Brasil, 2021. Disponível aqui.

13 Executivos da Americanas venderam quase R$ 212 milhões em ações da empresa no 2º semestre de 2022. G1 Globo, 2023. Disponível aqui.

14 MPF vai apurar se diretores da Americanas venderam ações antes do anúncio do rombo. CNN Brasil, 2023. Disponível aqui.

15 Ibid.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Mariana Beatriz dos Santos Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito e Processo Penal Econômico - NUPPE UFPR.