A política criminal brasileira e as alterações legislativas penais sofrem pela falta de coerência e pela ausência de objetivos definidos1. A criação desenfreada de novos dispositivos na legislação penal, assim como a banalização do Direito Penal, acaba por resultar na impunidade, exatamente o oposto do resultado objetivado.
Exemplos desse problema estão nas propostas de alterações legislativas do crime de corrupção do projeto de lei 2.489/20112, do projeto de lei 5.900/20133 e do Projeto de Dez Medidas contra a Corrupção4, de iniciativa do Ministério Público Federal. Todos os mencionados projetos têm em comum a proposta de incluir os crimes de corrupção ativa e passiva no rol dos crimes hediondos. Ademais, os referidos PLs partem de um pressuposto comum da política criminal brasileira: que a causa do problema da corrupção no Brasil é a impunidade.
Conforme relatado, no projeto do MPF, "a corrupção é hoje, portanto, um crime de alto benefício e baixo risco, o que pode incentivar sua prática". Ainda, no Brasil, encontram-se diversos trabalhos, jornalísticos ou jurídicos, de opinião ou científicos, reproduzindo tal visão, citando, inclusive, o país como "paraíso da impunidade crônica dos crimes do colarinho branco5".
Este breve artigo busca trazer uma nova luz para o tema, de forma a questionar a real efetividade da política criminal brasileira, que foca prioritariamente no uso instrumental do Direito Penal e, consequentemente, no recrudescimento de penas e na restrição de garantias como forma de combate à corrupção e à criminalidade em geral.
Inicialmente, questiona-se a base científica e empírica para tal política. Vislumbra-se que pouquíssimos trabalhos sobre as causas da corrupção no Brasil utilizam dados empíricos para embasar suas conclusões. Ou, ainda, quando baseiam-se em dados estatísticos, ignoram hipóteses rivais que podem influenciar diretamente nas causas do problema. Desta forma, carecem tais trabalhos de qualquer confiabilidade6, de forma que não poderiam ser utilizados para embasar a implementação de políticas públicas.
Na mesma linha, verifica-se um problema de urgência nas propostas e na política criminal brasileira. Como forma de combate, busca-se implementar condições mais rigorosas, porém resultando na utilização emergencial do Direito Penal, implementando políticas com pouca ou nenhuma efetividade comprovada. Dessa forma, a impunidade torna-se a "causa mágica7" da corrupção e da criminalidade, demandando, assim, respostas urgentes8 para combater a suposta causa do problema.
Da mesma forma, o problema do combate à corrupção gera o clamor público pela necessidade de reformas legislativas que atingem o combate à criminalidade em geral, de modo que o cerceamento das garantias penais e processuais estendem-se ao processamento de todos os tipos penais. Assim, faz-se necessário analisar os resultados da política atual de combate à corrupção por uma ótica mais ampla.
Neste segundo momento, insta salientar que, para que um comportamento seja punido criminalmente – leia-se: seja penalmente relevante –, deve possuir uma ofensividade substancial ao bem jurídico que está sendo tutelado9. Por conseguinte, não será toda e qualquer conduta que deverá compor o objeto inserido no escopo focal do direito criminal, que possui natureza de ultima ratio. Portanto, é necessária uma análise de ótica quantitativa e qualitativa da ofensa10.
Apesar disso, o sistema jurídico criminal brasileiro, embora extremamente abrangente, segue no caminho da incessante inserção/positivação de novos tipos penais, bem como do agravamento das penas atribuídas às condutas já existentes. De forma exemplificativa, cita-se a recente alteração legislativa trazida pela Lei 13.964/2019, popularmente conhecida como Pacote Anticrime, que aumentou de 30 para 40 anos o tempo máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade.
A referida mudança acontece na realidade de um Poder Judiciário altamente sobrecarregado, com demandas crescentes. Segundo dados do relatório anual do Conselho Nacional de Justiça de 2022, o ano de 2021 terminou com 77,3 milhões de processos em tramitação11, retornando a uma tendência de aumento do acervo.
Isso posto, conclui-se que o favoritismo de tal política legislativa de caráter populista e punitivista12 não contribui – em sentido diverso do que aparenta – com a persecução criminal. Pelo contrário, são criadas novas demandas para um sistema que, atualmente, não é capaz de lidar com os casos já existentes. Sobre isso, também consoante dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça, a população carcerária brasileira é de 790.427 presos condenados, além dos mais de 400.000 indivíduos que se encontram segregados preventivamente13, colocando o país entre aqueles com os maiores contingentes carcerários do mundo.
Para além disso, a falsa sensação de resposta legislativa que a população experimenta ao ver a criação de um novo tipo penal sendo noticiada, atendendo aos clamores punitivistas da sociedade, resulta no acréscimo da impunidade. Explica-se: o sistema – conforme demonstrado, já abarrotado – tem um acréscimo de atribuição, que naturalmente não será correspondido por um acréscimo comparável de eficiência/produtividade. Isto faz com que ocorra um retorno ao status quo, ou seja, à sensação coletiva de impunidade, resultando novamente no anseio pela inclusão de novos tipos penais e recrudescimento de penas, findando em um círculo vicioso que se retroalimenta14.
Portanto, é possível concluir que a própria política de combate à impunidade acaba por gerá-la, fazendo-se necessário refletir, de forma crítica, sobre medidas mais efetivas e concretas para o problema. Importa ressaltar, ainda, que aqui não se visa exaurir ou trazer qualquer forma de solução para esse problema, mas apenas abrir o caminho para que sejam exploradas outras vias possíveis, para além do uso emergencial e da banalização do Direito Penal.
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1 FALAVIGNO, Chiavelli Facenda. Racionalidade Legislativa Penal: a Contribuição da Academia e do Judiciário. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, nº 82, p. 131-150, julho/setembro de 2021.
2 BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei 2.489 de 2011. Acrescenta dispositivo na lei 8.072, de 25 de julho de 1990 inserindo a prática da corrupção como crime hediondo. Brasília, DF: Congresso Nacional, 2011. Disponível aqui. Acesso em: 09 fev. 2023.
3 BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei nº 5.900/2013. Altera o art. 1º da lei 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), para prever os delitos de peculato, concussão, excesso de exação, corrupção passiva e corrupção ativa, além de homicídio simples e suas formas qualificadas, como crimes hediondos; e altera os arts. 312, 316, 317 e 333 do decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para aumentar a pena dos delitos neles previstos.Brasília, DF: Congresso Nacional, 2013. Disponível aqui. Acesso em: 09 fev. 2023.
4 Disponível aqui. Acesso em: 09 fev. 2023.
5 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Corrupção, falta de transparência e a certeza da impunidade: o anel de Giges brasileiro. MPPR, 11 de out. de 2017. Disponível aqui. Acesso em: 09 fev. 2023.
6 EPSTEIN, Lee. KING, Gary. Pesquisa empírica em direito: as regras de inferência. São Paulo: Direito GV, 2013.
7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2018, p. 201.
8 LAUFER, Daniel. O Delito de Corrupção: Críticas e Propostas de Ordem Dogmática e Político Criminal. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, p. 271, 2016.
9 "Vimos que há certos entes pelos quais o legislador se interessa, expressando este interesse em uma norma jurídica, o que faz com que sejam considerados juridicamente como bens (bens jurídicos), e que quando o legislador penal que tutelar esta norma, punindo a sua violação com uma pena, os bens jurídico passam a ser considerados bens jurídicos penalmente tutelados." ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Volume 1 - Parte Geral. Revista dos Tribunais, 2011, p. 402.
10 "O princípio da lesividade proíbe a cominação, a aplicação e a execução de penas e de medidas de segurança em casos de lesões ir relevantes contra bens jurídicos protegidos na lei penal. Em outras palavras, o princípio da lesividade tem por objeto o bem jurídico determinante da criminalização, em dupla dimensão: do ponto de vista qualitativo, tem por objeto a natureza do bem jurídico lesio nado; do ponto de vista quantitativo, tem por objeto a extensão da lesão do bem jurídico." DOS SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal - Parte Geral. 6 ed. ICPC, 2014, p. 26.
11 Conselho Nacional de Justic¸a. Justic¸a em nu'meros 2022. Brasília, 2022. p. 104. Online. Disponível aqui. Acesso no dia 09/02/2023.
12 Lembrando a clássica afirmação de Alberto BINDER sobre o 'fetichismo normativista', sabemos todos que não basta mudar a lei, é preciso mudar ‘cabeças’, mudar cultura e mentalidade, esse é o maior desafio. LOPES JR., Aury; DE PINHO, Ana Claudia Bastos; DA ROSA, Alexandre. Pacote anticrime: um ano depois – análise da ineficácia das principais medidas penais e processuais implantadas pela lei 13.964/2019. Expressa, 2021, p. 25.
13 Conselho Nacional de Justiça. Painel Estatístico do Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU). Brasília, 2022. Online. Disponível aqui. Acesso no dia 09/02/2023.
14 LOPES JR., Aury. Aula magna de Direito Penal e Processo Penal. A Crise do Processo Penal. ABDCONST. Curitiba, 2018. Disponível aqui. Acesso no dia 09/02/2023.