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Do combate à corrupção aos problemas da política criminal brasileira

A criação desenfreada de novos dispositivos na legislação penal, assim como a banalização do Direito Penal, acaba por resultar na impunidade, exatamente o oposto do resultado objetivado.

14/2/2023

A política criminal brasileira e as alterações legislativas penais sofrem pela falta de coerência e pela ausência de objetivos definidos1. A criação desenfreada de novos dispositivos na legislação penal, assim como a banalização do Direito Penal, acaba por resultar na impunidade, exatamente o oposto do resultado objetivado.

Exemplos desse problema estão nas propostas de alterações legislativas do crime de corrupção do projeto de lei 2.489/20112, do projeto de lei 5.900/20133 e do Projeto de Dez Medidas contra a Corrupção4, de iniciativa do Ministério Público Federal. Todos os mencionados projetos têm em comum a proposta de incluir os crimes de corrupção ativa e passiva no rol dos crimes hediondos. Ademais, os referidos PLs partem de um pressuposto comum da política criminal brasileira: que a causa do problema da corrupção no Brasil é a impunidade.

Conforme relatado, no projeto do MPF, "a corrupção é hoje, portanto, um crime de alto benefício e baixo risco, o que pode incentivar sua prática". Ainda, no Brasil, encontram-se diversos trabalhos, jornalísticos ou jurídicos, de opinião ou científicos, reproduzindo tal visão, citando, inclusive, o país como "paraíso da impunidade crônica dos crimes do colarinho branco5".

Este breve artigo busca trazer uma nova luz para o tema, de forma a questionar a real efetividade da política criminal brasileira, que foca prioritariamente no uso instrumental do Direito Penal e, consequentemente, no recrudescimento de penas e na restrição de garantias como forma de combate à corrupção e à criminalidade em geral.

Inicialmente, questiona-se a base científica e empírica para tal política. Vislumbra-se que pouquíssimos trabalhos sobre as causas da corrupção no Brasil utilizam dados empíricos para embasar suas conclusões. Ou, ainda, quando baseiam-se em dados estatísticos, ignoram hipóteses rivais que podem influenciar diretamente nas causas do problema. Desta forma, carecem tais trabalhos de qualquer confiabilidade6, de forma que não poderiam ser utilizados para embasar a implementação de políticas públicas.

Na mesma linha, verifica-se um problema de urgência nas propostas e na política criminal brasileira. Como forma de combate, busca-se implementar condições mais rigorosas, porém resultando na utilização emergencial do Direito Penal, implementando políticas com pouca ou nenhuma efetividade comprovada. Dessa forma, a impunidade torna-se a "causa mágica7" da corrupção e da criminalidade, demandando, assim, respostas urgentes8 para combater a suposta causa do problema.

Da mesma forma, o problema do combate à corrupção gera o clamor público pela necessidade de reformas legislativas que atingem o combate à criminalidade em geral, de modo que o cerceamento das garantias penais e processuais estendem-se ao processamento de todos os tipos penais. Assim, faz-se necessário analisar os resultados da política atual de combate à corrupção por uma ótica mais ampla.

Neste segundo momento, insta salientar que, para que um comportamento seja punido criminalmente – leia-se: seja penalmente relevante –, deve possuir uma ofensividade substancial ao bem jurídico que está sendo tutelado9. Por conseguinte, não será toda e qualquer conduta que deverá compor o objeto inserido no escopo focal do direito criminal, que possui natureza de ultima ratio. Portanto, é necessária uma análise de ótica quantitativa e qualitativa da ofensa10.

Apesar disso, o sistema jurídico criminal brasileiro, embora extremamente abrangente, segue no caminho da incessante inserção/positivação de novos tipos penais, bem como do agravamento das penas atribuídas às condutas já existentes. De forma exemplificativa, cita-se a recente alteração legislativa trazida pela Lei 13.964/2019, popularmente conhecida como Pacote Anticrime, que aumentou de 30 para 40 anos o tempo máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade.

A referida mudança acontece na realidade de um Poder Judiciário altamente sobrecarregado, com demandas crescentes. Segundo dados do relatório anual do Conselho Nacional de Justiça de 2022, o ano de 2021 terminou com 77,3 milhões de processos em tramitação11, retornando a uma tendência de aumento do acervo.

Isso posto, conclui-se que o favoritismo de tal política legislativa de caráter populista e punitivista12 não contribui – em sentido diverso do que aparenta – com a persecução criminal. Pelo contrário, são criadas novas demandas para um sistema que, atualmente, não é capaz de lidar com os casos já existentes. Sobre isso, também consoante dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça, a população carcerária brasileira é de 790.427 presos condenados, além dos mais de 400.000 indivíduos que se encontram segregados preventivamente13, colocando o país entre aqueles com os maiores contingentes carcerários do mundo.

Para além disso, a falsa sensação de resposta legislativa que a população experimenta ao ver a criação de um novo tipo penal sendo noticiada, atendendo aos clamores punitivistas da sociedade, resulta no acréscimo da impunidade. Explica-se: o sistema – conforme demonstrado, já abarrotado – tem um acréscimo de atribuição, que naturalmente não será correspondido por um acréscimo comparável de eficiência/produtividade. Isto faz com que ocorra um retorno ao status quo, ou seja, à sensação coletiva de impunidade, resultando novamente no anseio pela inclusão de novos tipos penais e recrudescimento de penas, findando em um círculo vicioso que se retroalimenta14. 

Portanto, é possível concluir que a própria política de combate à impunidade acaba por gerá-la, fazendo-se necessário refletir, de forma crítica, sobre medidas mais efetivas e concretas para o problema. Importa ressaltar, ainda, que aqui não se visa exaurir ou trazer qualquer forma de solução para esse problema, mas apenas abrir o caminho para que sejam exploradas outras vias possíveis, para além do uso emergencial e da banalização do Direito Penal.

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1 FALAVIGNO, Chiavelli Facenda. Racionalidade Legislativa Penal: a Contribuição da Academia e do Judiciário. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, nº 82, p. 131-150, julho/setembro de 2021.

2 BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei 2.489 de 2011. Acrescenta dispositivo na lei 8.072, de 25 de julho de 1990 inserindo a prática da corrupção como crime hediondo. Brasília, DF: Congresso Nacional, 2011. Disponível aqui. Acesso em: 09 fev. 2023.

3 BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei nº 5.900/2013. Altera o art. 1º da lei 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), para prever os delitos de peculato, concussão, excesso de exação, corrupção passiva e corrupção ativa, além de homicídio simples e suas formas qualificadas, como crimes hediondos; e altera os arts. 312, 316, 317 e 333 do decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para aumentar a pena dos delitos neles previstos.Brasília, DF: Congresso Nacional, 2013. Disponível aqui. Acesso em: 09 fev. 2023.

4 Disponível aqui. Acesso em: 09 fev. 2023.

5 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Corrupção, falta de transparência e a certeza da impunidade: o anel de Giges brasileiro. MPPR, 11 de out. de 2017. Disponível aqui. Acesso em: 09 fev. 2023.

6 EPSTEIN, Lee. KING, Gary. Pesquisa empírica em direito: as regras de inferência. São Paulo: Direito GV, 2013.

7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2018, p. 201.

8 LAUFER, Daniel. O Delito de Corrupção: Críticas e Propostas de Ordem Dogmática e Político Criminal. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, p. 271, 2016.

9 "Vimos que há certos entes pelos quais o legislador se interessa, expressando este interesse em uma norma jurídica, o que faz com que sejam considerados juridicamente como bens (bens jurídicos), e que quando o legislador penal que tutelar esta norma, punindo a sua violação com uma pena, os bens jurídico passam a ser considerados bens jurídicos penalmente tutelados."  ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Volume 1 - Parte Geral. Revista dos Tribunais, 2011, p. 402.

10 "O princípio da lesividade proíbe a cominação, a aplicação e a execução de penas e de medidas de segurança em casos de lesões ir relevantes contra bens jurídicos protegidos na lei penal. Em outras palavras, o princípio da lesividade tem por objeto o bem jurídico determinante da criminalização, em dupla dimensão: do ponto de vista qualitativo, tem por objeto a natureza do bem jurídico lesio nado; do ponto de vista quantitativo, tem por objeto a extensão da lesão do bem jurídico." DOS SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal - Parte Geral. 6 ed. ICPC, 2014, p. 26.

11 Conselho Nacional de Justic¸a. Justic¸a em nu'meros 2022. Brasília, 2022. p. 104. Online. Disponível aqui. Acesso no dia 09/02/2023.

12 Lembrando a clássica afirmação de Alberto BINDER sobre o 'fetichismo normativista', sabemos todos que não basta mudar a lei, é preciso mudar ‘cabeças’, mudar cultura e mentalidade, esse é o maior desafio. LOPES JR., Aury; DE PINHO, Ana Claudia Bastos; DA ROSA, Alexandre. Pacote anticrime: um ano depois – análise da ineficácia das principais medidas penais e processuais implantadas pela lei 13.964/2019. Expressa, 2021, p. 25.

13 Conselho Nacional de Justiça. Painel Estatístico do Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU). Brasília, 2022. Online. Disponível aqui. Acesso no dia 09/02/2023.

14 LOPES JR., Aury. Aula magna de Direito Penal e Processo Penal. A Crise do Processo Penal. ABDCONST. Curitiba, 2018. Disponível aqui. Acesso no dia 09/02/2023.

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Colunistas

Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Mariana Beatriz dos Santos Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito e Processo Penal Econômico - NUPPE UFPR.