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Repercussões criminais do Marco Regulatório dos Ativos Virtuais – Parte 2

Os autores analisam a competência para julgamento dos tipos penais tratados, o possível afastamento da incidência do tipo penal de negociação de títulos ou valores mobiliários sem registro na autoridade competente quanto a ativos virtuais.

24/1/2023

Como visto na primeira parte deste estudo, a lei 14.478/2022, Marco Regulatório dos Criptoativos, operou inovações importantes no campo do Direito penal no tocante a delitos envolvendo ativos virtuais. Na Parte 1, trouxemos considerações iniciais sobre o Marco Regulatório dos Criptoativos (1), as primeiras impressões quanto às consequências criminais da alteração (2), a análise do crime de fraude com ativos virtuais (3) e as consequências da caracterização das operadoras de ativos virtuais como instituições financeiras (4).

Agora, para completar nossas impressões, analisamos a competência para julgamento dos tipos penais tratados acima (5), o possível afastamento da incidência do tipo penal de negociação de títulos ou valores mobiliários sem registro na autoridade competente quanto a ativos virtuais (6), as alterações operadas na Lei de Lavagem de Dinheiro (7) e apresentamos nossas considerações finais quanto ao assunto (7).

5. Competência para julgamento

Além do conflito aparente de normas entre o principal tipo penal criado pelo Marco Regulatório dos Ativos Virtuais (art. 171-A, CP) e o principal crime contra o Sistema Financeiro Nacional (gestão fraudulenta), a Lei deu azo a importante questionamento quanto à própria competência para julgamento dos crimes.

A Constituição estabelece especificamente no inciso VI de seu art. 109 a competência da Justiça Federal para o julgamento dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Isso se soma à competência para julgar delitos que afetem bens, serviços ou interesses da União (inciso IV). No caso da gestão fraudulenta, portanto, não há maiores dúvidas em relação à competência federal.

Por outro lado, como o art. 171-A do Código Penal, ainda que afete potencialmente um sem-número de investidores, não afeta bem, interesse ou serviço da União, tampouco se caracteriza propriamente como crime contra o Sistema Financeiro Nacional, não se cogitaria de plano competência federal para o seu julgamento. Tratar-se-ia, portanto, de crime de competência estadual.

Surge aí o problema nodal: seria possível deixar à interpretação dos órgãos responsáveis pela persecução penal a resolução do conflito aparente de normas? Nesse caso, a depender da conclusão quanto ao crime prevalente, há risco de se permitir a escolha do foro processante (forum shopping) e até mesmo a competência para se investigar e processar o delito — se da Polícia Civil e do Ministério Público do Estado ou da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Melhor seria se o legislador tivesse optado por apenas uma incriminação que estabelecer o conflito, de difícil resolução, salvo pela casuística.

6. Crime de negociação de títulos ou valores mobiliários sem registro na autoridade competente: possível afastamento da incidência

Ainda no tocante aos tipos penais previstos na lei 7.492/1986, há outra indicação que merece destaque. Até então, como já indicado acima, um dos tipos penais invocados como incidente sobre a atividade das operadoras de criptoativos era o crime do inciso II do art. 7.º da lei 7.492/19861. A interpretação que defendia a incidência nesses casos partia da premissa de que a atividade das operadoras de criptomoedas, ou ao menos partes específicas de suas atividades, estariam sujeitas a controle e registro junto à Comissão de Valores Mobiliários.

A sujeição das operações de criptoativos a registro e controle pela CVM já consistia em ponto controvertido antes mesmo do advento do Marco dos Ativos Virtuais. Já houve, inclusive, decisão da 3.ª Seção do STJ — composta por ambas as Turmas com competência criminal — no sentido de que criptomoedas não estavam sujeitas às atividades de controle do Banco Central ou da CVM.2

A despeito disso, pelo menos um caso nacional de fraudes envolvendo criptomoedas resultou em condenações pela prática desse delito.3

Agora, a lei 14.478/2022, pelo inciso IV de seu art. 3.º, estabelece que os ativos virtuais não se confundem com valores mobiliários, o que confirma o entendimento já adotado pelo STJ de que as criptomoedas não se sujeitam a registro e controle pela CVM. Embora se possa sustentar que a diferenciação entre criptoativos e valores mobiliários se dá a partir do marco regulatório, pode-se também afirmar que a lei 14.478 apenas veio a confirmar, nesse ponto, o que já vigia antes do diploma.

Há novo reforço, portanto, para arguição de não incidência do tipo penal do inciso II do art. 7.º da lei 7.492/1986 quanto a operações de criptoativos, na medida em que esses, até então, não estiveram sujeitos a registro e regulação, refutando a interpretação de que algumas das operações de oferta de criptomoedas estariam sujeitas a registro pela CVM. Resta ver como os tribunais resolverão a questão do ponto de vista temporal, em especial nos casos em que já houve condenações por esse dispositivo incriminador.

7. Alterações na Lei de Lavagem de Dinheiro

Por fim, a lei 14.478/2002 trouxe em seu art. 12 algumas alterações significativas nas disposições da Lei de Lavagem de Dinheiro — lei 9.613/1998.

A primeira e mais evidente é a previsão de aumento de pena — de 1/3 a 2/3 — quando o crime de lavagem for cometido por meio da utilização de ativo virtual. As penas já elevadas do crime de lavagem — três a dez anos de reclusão — passam agora ao mínimo de 4 (quatro) e máximo de mais de 16 (dezesseis) anos em casos envolvendo criptoativos.

Essa alteração não parece necessária. As penas do tipo já eram suficientemente elevadas e já seria possível levar em conta a utilização de ativos virtuais no estabelecimento da pena concreta, conforme as circunstâncias do delito (art. 59, CP).

No mais, outras alterações passam a submeter os operadores de ativos virtuais — sejam pessoas físicas ou jurídicas — às obrigações dos arts. 10 e 11 da Lei de Lavagem de Dinheiro, que estabelecem, basicamente, (i) a identificação de clientes e manutenção de registros de transações que ultrapassem limites fixados por autoridade competente e (ii) a comunicação às autoridades públicas de operações que possam constituir indícios da prática de crimes e aquelas que ultrapassem limites previstos pela autoridade competente.

A obrigatoriedade de manutenção de registros de clientes e operações pelas operadoras de ativos virtuais parece providência plenamente condizente com a própria disciplina legal e regulatória agora inaugurada no país quanto a esse tipo de operações, bem como uma ferramenta útil como forma de coibir e investigar a ocorrência de lavagem por meio de criptomoedas.

8. Considerações finais

Do que se viu, as alterações de natureza criminal trazidas no Marco Regulatório dos Ativos Virtuais aparentemente ensejarão consequências jurídico-penais superiores ao que o reduzido número de dispositivos alterados pode sugerir. Essas consequências começarão a ser vistas na prática e com maior clareza depois de 20 de junho de 2023 (encerramento da vacatio legis de 180 dias prevista no art. 14), visto que as disposições incriminadoras descritas somente poderão incidir sobre as condutas ocorridas após a vigência da Lei.

A criação de um novo tipo penal específico e a abertura de uma ampla possibilidade de incriminação pelos dispositivos da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional — para além do conflito de normas identificado, que dependerá do posicionamento a ser adotado pelos Tribunais Superiores — colocarão as operadoras de ativos virtuais em pleno alcance da atividade de persecução penal de forma muito mais intensa do que se via até então. Isso conjugará uma maior atuação do aparato repressivo do Estado a uma maior rede de segurança aos usuários e ao mercado econômico nacional. Deve-se almejar relação de equilíbrio que, idealmente, permita a livre e competitiva atividade financeira com a proteção àqueles que a ela se sujeitam em posição de vulnerabilidade.

Aos profissionais da área criminal — advogados, delegados de polícia, membros do Ministério Público e magistrados —, será necessário cuidado na aplicação dos dispositivos novos e alterados pela lei 14.478/2022, não podendo o profissional deixar de tentar acompanhar a velocidade das transformações do cenário de operações financeiras virtuais e suas repercussões na seara criminal.

__________

1 "Art. 7.º Emitir, oferecer ou negociar, de qualquer modo, títulos ou valores mobiliários: [...] II - sem registro prévio de emissão junto à autoridade competente, em condições divergentes das constantes do registro ou irregularmente registrados; [...] Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa."

2 "A operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da lei 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da lei 6.385/1976." (STJ. 3.ª Seção. CC n.º 161.123/SP. Rel. Ministro Sebastião Reis Junior. j. 28 nov. 2018. DJe 5 dez. 2018).

3 KRÜGER, Ana; VIANNA, José. ‘Rei do Bitcoin’ é condenado por estelionato e crimes contra o sistema financeiro. Portal G1. 12 abr. 2022. Disponível aqui.

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Colunistas

Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Mariana Beatriz dos Santos Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito e Processo Penal Econômico - NUPPE UFPR.