O cenário de enfrentamento mundial da criminalidade organizada, delineado a partir do fim do século XX, tem como marco estratégico o rastreamento de valores decorrentes de práticas delitivas (“follow the money”)1. Nesse contexto, o Grupo de Ação Financeira (GAFI) e suas recomendações desempenham papel fundamental na harmonização das políticas de prevenção e repressão da lavagem de dinheiro e de outros delitos afins no âmbito da criminalidade econômica.
No Brasil, a instituição do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) deu-se precisamente para atender a Recomendação n.º 29 do GAFI, que orienta os seus países-membros a criarem unidades de inteligência financeira (UIF) voltadas ao tratamento de informações capazes de identificar bens e valores de proveniência aparentemente ilícita e repassá-las aos órgãos de persecução para a instauração dos procedimentos cabíveis.
Em síntese, o COAF funciona como um intermediário técnico entre os sujeitos elencados no art. 9.º da lei 9.613/98 – ex. instituições financeiras, cartórios, joalherias etc. – e as autoridades responsáveis pela persecução penal2. Salienta-se que a UIF não tem acesso direto a dados financeiros das pessoas que são alvo das comunicações suspeitas; apenas as recebe, examina e dissemina na forma de Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) para subsidiar a Polícia e/ou o Ministério Público a tomarem as medidas investigatórias pertinentes.
De acordo com a lei 9.613/98, as comunicações reportadas classificam-se em operações em espécie e operações suspeitas. As primeiras são efetuadas uma vez constatada a situação objetiva descrita nas normas emitidas pelos órgãos reguladores, sem abrir margem para análise de mérito por parte do setor responsável por comunicá-la3 (ex. saque em espécie de valor acima de R$ 50.000,00). As segundas exigem que os setores obrigados realizem um filtro mais subjetivo a fim de averiguar a suspeita4, de acordo com critérios emanados da lei e de regulamentos aplicáveis.
As comunicações encaminhadas pelos sujeitos obrigados são recebidas pela UIF via Sistema de Controle de Atividades Financeiras (SISCOAF). Como etapa inicial, são divididas pelo sistema em comunicações diferidas e não diferidas. As comunicações são diferidas quando não apresentam, em princípio, riscos potenciais de prática de lavagem de ativos, sendo direcionadas ao banco de dados para consulta e cruzamento com informações posteriores, sem seguir para as próximas etapas do processo de averiguação. Por sua vez, as comunicações não diferidas são encaminhadas para análise individualizada5 e, se o risco calculado for “médio” ou “alto”, passam a compor um procedimento eletrônico chamado “caso”6. Nessa etapa, o RIF é produzido.
A elaboração do RIF encontra fundamento legal no art. 15 da lei 9.613/98, que dispõe: “o COAF comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática ou de qualquer outro ilícito”. Esse dispositivo faz referência ao chamado “RIF espontâneo”, enviado de ofício às autoridades competentes por iniciativa do COAF. Mas também se admite o “RIF de intercâmbio”, elaborado a pedido dessas autoridades, que solicitam os dados ao COAF no âmbito de uma investigação7. Em ambos os casos, as informações são reunidas em documento único, protegido por sigilo legal, do qual a autoridade destinatária passa a ser responsável pela preservação8 (cf. Lei Complementar n.º 105/2001).
Esse fluxo de dados de inteligência aos órgãos de persecução penal traz reflexões importantes no tocante à utilização do RIF no processo penal. Conforme exposto, nem todas as comunicações reportadas pelos setores obrigados ao COAF resultarão em um RIF, o que demonstra o emprego de um exame criterioso antes de disseminá-las às autoridades competentes.
Isso não significa, porém, que toda vez que o COAF emitir um RIF diante de uma situação suspeita, estará comunicando às autoridades a efetiva ocorrência de um crime9. Mesmo porque o âmbito de atuação da UIF não inclui o emprego de diligências voltadas à apuração de responsabilidade. A sua atividade deve se limitar à elaboração de um relatório meramente descritivo sobre o conteúdo das informações reportadas, que não envolvem atos investigatórios e tampouco apontam a subsunção dos fatos a tipos penais.
Nesse sentido, de acordo com o próprio COAF10, as informações que integram um RIF “são eminentemente de inteligência financeira” e, portanto, “não são provas de ilícitos, mas constituem indícios que devem ser adequadamente investigados pelas autoridades competentes”. Ou seja, o RIF pode servir como auxílio à persecução penal, mas de nenhum modo desonera as autoridades responsáveis de produzir provas do suposto delito.
A lei 9.613/98 nada prevê acerca da possibilidade do uso dos dados processados pelo COAF no processo penal. No plano infralegal, a Recomendação de Caráter Geral 04/17, do Conselho Nacional do Ministério Público11, define o “RIF espontâneo” como uma “notícia de fato”, ao passo que o “RIF de intercâmbio” é qualificado como “ato de investigação”. Oportuno recordar que não se exige autorização judicial para o compartilhamento do RIF entre o COAF e o MP, conforme entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema n.º 99012.
Portanto, diante da admissibilidade da utilização do relatório de inteligência financeira para fins penais (independentemente de autorização judicial), é preciso que se estabeleça sob que condições o RIF deve ser recepcionado no processo penal. Isso porque apesar de se lhe atribuir a natureza jurídica de “notícia de fato” ou de “ato de investigação” – que, segundo o próprio COAF, “deve ser adequadamente investigado pelas autoridades competentes” –, as informações reportadas pela UIF vêm sendo utilizadas pelos órgãos de persecução penal como elementos suficientes por si sós para iniciar investigações, propor medidas interventivas e fundamentar o recebimento da denúncia13.
Assim, mostra-se necessário o debate acerca da possibilidade ou não de se fundamentar decisões judiciais no âmbito do processo penal exclusivamente com base no RIF encaminhado pelo COAF. Pesquisa realizada sobre o uso da inteligência financeira nos Tribunais brasileiros14 demonstra que a jurisprudência não é pacífica quanto à viabilidade da utilização das informações do RIF para obtenção de providências judiciais e quanto à dispensabilidade de diligências por meio de técnicas tradicionais de investigação antes da formalização do procedimento investigatório criminal (PIC) e da aplicação de medidas cautelares.
O primeiro precedente indicado sobre a matéria é o Habeas Corpus 191.378/DF, em que o Superior Tribunal de Justiça afastou a possibilidade de uso do RIF como elemento único a amparar quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico, declarando a nulidade das provas obtidas na investigação. Em seu voto, o relator Ministro Sebastião Reis Junior ressaltou que “o único fundamento dos pedidos de quebra foi o relatório do COAF, não tendo ocorrido referência a nenhuma outra investigação em andamento ou mesmo à impossibilidade de se investigar os fatos descritos no relatório do COAF por outros meios”15.
Ao longo dos anos, porém, notou-se uma mudança de entendimento no STJ, que passou a admitir o RIF não só para iniciar uma investigação, mas inclusive para subsidiar por si só a autorização de quebra de sigilo bancário. Nesse sentido, em voto-vista no julgamento do Habeas Corpus 349.945, o Ministro Rogério Schietti Cruz consignou que “o relatório produzido pelo COAF subsidia e justifica eventual pedido de quebra de sigilo bancário e fiscal”16.
No julgamento do Recurso em Habeas Corpus 45.207, o STJ decidiu que o Relatório do COAF seria suficiente para amparar o oferecimento da denúncia, conferindo ao RIF tratamento de peça de informação, de modo a atestar a presença de justa causa para a instauração da ação penal17. Em face desta decisão, a defesa impetrou Habeas Corpus perante o Supremo Tribunal Federal, sendo que o relator, Ministro Luís Roberto Barroso, afastou a ocorrência de ilegalidade no recebimento da peça acusatória e denegou a ordem18.
No âmbito dos Tribunais Regionais Federais, a pesquisa indica uma tendência em se admitir o RIF para a abertura de inquérito, para a realização de busca e apreensão, e inclusive para justificar a manutenção de prisão preventiva19. Especificamente quanto a este último ponto, destaca-se que o relatório produzido pelo COAF foi utilizado como fundamento pelo Tribunal Regional Federal da 5.ª Região para manter a prisão dos investigados no julgamento do Habeas Corpus 08043072620164050000, decidindo-se que as movimentações financeiras apontadas pelo COAF apresentavam “consideráveis indicativos do envolvimento, no campo da autoria ou da participação”20.
A partir do exposto, nota-se que os Tribunais pátrios recentemente têm conferido ao RIF força probatória incompatível com a natureza jurídica que lhe é atribuída pelo próprio COAF, inclusive. Informações de inteligência financeira que, a priori, visam apenas a alertar os agentes de persecução para movimentações atípicas vêm sendo admitidas como subsídio suficiente à adoção de métodos invasivos de investigação — ex. quebra de sigilo telefônico e busca e apreensão – e à decretação de medidas cautelares reais e pessoais. Isso a despeito da exigência de qualquer complementação por meio de diligências realizadas no âmbito penal pelas autoridades competentes.
A importância do compartilhamento de informações pelo COAF para a persecução penal da lavagem de ativos e de outros delitos do âmbito da criminalidade econômica é inegável. Não obstante, esta breve exposição propôs-se a chamar atenção para a absoluta indefinição acerca da natureza jurídica do RIF, cuja valoração no processo penal – apesar do seu inafastável conteúdo de inteligência financeira – tem irrefletidamente recebido status equiparado a “prova”, em substituição aos métodos de produção probatória próprios de investigação criminal.
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*Maria Victoria Costa Nogari é graduada em Direito pela UFPR. Associada ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.
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1 BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro [livro eletrônico]: aspectos penais e processuais penais. 3. ed. São Paulo: RT, 2019. p. 9.
2 CAVALCANTI, José Robalinho. O sistema nacional antilavagem de dinheiro e seus atores. In: DE CARLI, Carla Veríssimo; MENDONÇA, Andrey Borges de [et. al] (coords). Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico. 2013. p. 145.
3 COMPLOIER, Mylene. O papel da atividade de inteligência financeira na prevenção e repressão aos crimes praticados por organizações criminosas. Tese de Doutorado Político e Econômico, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2019. p. 57.
4 COMPLOIER, Mylene. O papel da atividade de inteligência financeira na prevenção e repressão aos crimes praticados por organizações criminosas. Tese de Doutorado Político e Econômico, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2019. p. 57.
5 COAF. Relatório de Atividades Coaf 2021. Disponível em: https://www.gov.br/coaf/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/RACoaf2021publica20220311.pdf. Acesso em 02 nov. 2022. p. 16.
6 COAF. Relatório de Atividades Coaf 2021. Disponível em: https://www.gov.br/coaf/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/RACoaf2021publica20220311.pdf. Acesso em 02 nov. 2022. p. 16.
7 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de lavagem de dinheiro. 4 ed. São Paulo: Atlas. 2018. p. 278.
8 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de lavagem de dinheiro. 4 ed. São Paulo: Atlas. 2018. p. 267.
9 COMPLOIER, Mylene. O papel da atividade de inteligência financeira na prevenção e repressão aos crimes praticados por organizações criminosas. Tese de Doutorado Político e Econômico, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2019. p. 50.
10 COAF. Relatório de Atividades Coaf 2021. Disponível em: https://www.gov.br/coaf/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/RACoaf2021publica20220311.pdf. Acesso em 02 nov. 2022. p. 23.
11 Art. 1.º da Recomendação de Caráter Geral n.º 04, do Conselho Nacional do MP, de 7 de agosto de 2017.
12 Como síntese do julgamento, o STF firmou a tese de que: “[é] constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal, para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional.” [STF, Plenário, Recurso Extraordinário n.º 1.055.941, rel. Min. Dias Toffoli, j. 04/12/2019 (Tema n.º 990)].
13 COMPLOIER, Mylene. O papel da atividade de inteligência financeira na prevenção e repressão aos crimes praticados por organizações criminosas. Tese de Doutorado Político e Econômico, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2019. p. 71.
14 Neste artigo, utilizou-se os resultados de pesquisa jurisprudencial obtidos por SUXBERGER, Antonio; PASIANI, Rochelle Pastana. O papel da inteligência financeira na persecução dos crimes de lavagem de dinheiro e ilícitos relacionados. 2017. Disponível em: https://heinonline.org/. Acesso em: 02 nov. 2022.
15 STJ, 6.ª T., HC 191.378/DF, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, j. 15/9/2011.
16 STJ, 6.ª T., HC 349.945/PE, relator Ministro Nefi Cordeiro, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, j. 6/12/2016.
17 STJ, 6.ª T., RHC n. 45.207/PA, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, j. 26/8/2014.
18 STF, HC 126.826/PA, relator Ministro Luís Roberto Barroso, j. 03/03/2015.
19 SUXBERGER, Antonio; PASIANI, Rochelle Pastana. O papel da inteligência financeira na persecução dos crimes de lavagem de dinheiro e ilícitos relacionados. 2017. Disponível em: https://heinonline.org/. Acesso em: 02 nov. 2022.
20 TRF-5, 2.ª T., HC n.º 08043072620164050000, relator Desembargador Federal Ivan Lira de Carvalho (convocado), j. 20/07/2016.