Não obstante a existência de críticas aos acordos que evitam o trâmite regular do processo penal, por se entender que há a renúncia a direitos fundamentais, a justiça negocial se faz presente e deve ser considerada1. No Brasil, com grande influência do sistema de justiça norte-americano2, uma de suas manifestações é o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), introduzido pela lei 13.964/19 (“Pacote Anticrime”) no art. 28-A, do CPP.
A justiça negocial é um direito do acusado, quando este tem interesse e cumpre os requisitos previstos em lei. À vista disso, o presente artigo tem como objetivo apontar breves considerações sobre o ANPP como direito subjetivo do acusado3, como também apontar a utilização do overcharging4 (isto é, o uso estratégico do excesso acusatório) para afastar a possibilidade de oferecimento do ANPP aos acusados, principalmente em delitos econômicos.
O Ministério Público deverá propor o ANPP, desde que preenchidos os requisitos do art. 28-A, do CPP. A norma, da forma como foi redigida, possibilita interpretações acerca de uma susposta faculdade concedida ao Parquet no oferecimento do acordo ao acusado. Nesse contexto, o princípio da obrigatoriedade/disponibilidade ganha grandes contornos, vez que “a disponibilidade da ação penal, no ambiente continental, constitui-se novidade em face da inserção de mecanismos de ‘barganha’”5.
Há uma tendência de o Ministério Público interpretar o oferecimento do ANPP como uma flexibilização ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. Contudo, na realidade, “o ANPP é um locus de não incidência do exercício da ação expressamente previsto em lei”6. Assim, em casos de não oferecimento do acordo quando preenchidos os requisitos legais, deve o Poder Judiciário intervir, eis que está na condição de garantidor dos direitos e garantias fundamentais7 e, ao se deparar com violações, tem por dever agir ativamente8.
Em outros termos, uma vez preenchidos os requisitos pelo acusado, este passa a ter o direito subjetivo à celebração do acordo. Isso porque, os agentes públicos estão vinculados ao princípio da legalidade (art. 5º, II, da CF), afinal não estão autorizados a ofertar ou negar o acordo, com base em critérios pessoais e subjetivos, e sim com base no preenchimento das exigências legais. De tal sorte, em caso de possibilidade de oferecimento, a proposta deve ser feita, de modo que sua oferta não pode ser concebida como um exercício de discricionariedade do Ministério Público9.
Pelo exposto, parte-se da premissa de que, preenchidos os requisitos, o acusado tem direito ao acordo. Contudo, nos delitos do direito penal econômico — principalmente nos megaprocessos10 —, observa-se um excesso acusatório, em que são imputados vários crimes ao investigado, cuja condenação, com o desenrolar do processo, mostra-se completamente insustentável, resultando na absolvição de diversos delitos e, quando não, verifica-se que a pluralidade de imputações, em verdade, corresponde ao mesmo fato.
Para além dos graves efeitos causados ao acusado por ter uma pluralidade de fatos imputados contra si, com o advento do ANPP, nota-se que o excesso acusatório – e sua admissibilidade – muito em razão de não se ter um efetivo controle da admissibilidade da denúncia11 — acaba por suprimir do imputado o direito ao oferecimento do acordo.
Nota-se no cotidiano forense a prática de imputações genéricas, em que o Ministério Público denuncia o indivíduo pela prática de vários delitos (v.g, corrupção ativa, lavagem de dinheiro, organização criminosa, entre outros), sem, ao menos, expor os fatos de forma clara, delimitar a ação de cada fato, ou seja, apresentar a imputação delitiva à luz da legalidade. Nesse contexto, o direito de ser bem acusado é violado, vez que o sujeito se vê em meio a um mar de imputações genéricas.
Tal cenário pode significar uma estratégia empregada pelo órgão acusatório para uma negativa de oferecimento da negociação por meio transverso. Explica-se: em algumas recusas na propositura do ANPP, o Parquet argumenta que o acusado não faz jus, pois o limite de pena mínima de 4 anos fora ultrapassado, vez que com a soma das penas — pelo concurso previsto no art. 69 do CP — o requisito não é preenchido. No entanto, com o transcurso do processo, as acusações excessivas são rechaçadas e o crime que se mantém possibilitaria a celebração do ANPP desde o início, caso o enquadramento fosse adequado.
Por força do devido processo penal, deve-se preponderar o direito a uma boa (e legal) acusação, isto é, todo acusado tem o direito de ter contra si uma imputação que não desvie de suas finalidades, que não tenha excessos. O poder-dever que é dado ao Ministério Público deve ser exercido em observância à legalidade, diante do que a acusação inflada, como estratégia persecutória (overcharging), é inadmissível.
Ademais, referida prática acaba por incorrer em cerceamento ao direito de defesa do acusado pois, como defende CHOUKR, “a acusação, no quadro constitucional-convencional deve propiciar à pessoa acusada a possibilidade de exercer de maneira plena o direito ao contraditório e à ampla defesa”12. Trata-se de um doping processual, uma vez que “o doping manipula o dispositivo do processo penal, inserindo material ou método em desconformidade com as práticas democráticas”13.
Sobre a temática, em recente julgado, ao se debruçar sobre a questão, o STF afirmou a impossibilidade dessa manipulação acusatória, afastando a prática do overcharging. Reconheceu a Corte que “inúmeros casos demonstraram o uso de táticas de overcharging, por meio da qual se busca agregar fatos, crimes, e fundamentos claramente desvinculados do objeto do processo ou das provas dos autos para fins de obtenção de uma vantagem processual indevida”14.
Outrossim, quanto aos casos em que o reconhecimento do excesso acusatório ocorre após o recebimento da denúncia, segundo VASCONCELLOS15 “se houver anulação da sentença, provimento parcial e desclassificação de modo a tornar cabível o ANPP, o imputado não pode ser prejudicado pelo erro ou abuso na acusação formalizada inicial (overcharging)”. Nesse sentido, o STF16 já decidiu pela remessa dos autos ao órgão superior do MP, após indeferimento do pleito pelo Juízo de 1.º grau, para que fosse (re)analisada a possibilidade de oferecimento do ANPP, visto que nesse caso, em alegações finais, o membro do MP se manifestou pela aplicação da causa de diminuição da pena, cenário que — com a readequação do enquadramento acusatório após a denúncia — tornaria possível a negociação (nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP). Manifestou a Corte que “a possibilidade de negociação do acordo de não persecução penal em relação a ações penais propostas, mas ainda não sentenciadas, traduz mecanismo para redução das instruções penais e prolongamento de ações criminais em curso, o que se coaduna com a lógica de aprimoramento da eficiência do sistema de justiça criminal”.
À vista do exposto, é certo que o ANPP, desde que preenchidos os requisitos legais, é um direito subjetivo do acusado, apesar do atual entendimento do STJ17 e do STF18, e, nesse âmbito, o overcharging enquanto estratégia acusatória para manipular o oferecimento do acordo, por meio de denúncias genéricas, deve ser sempre controlado pelo Poder Judiciário no momento da admissibilidade da denúncia. Além disso, quando, em sentença ou em sede recursal, houver o reconhecimento de um excesso acusatório, a nosso sentir, a solução apresentada por VASCONCELLOS — e também pelo STF no julgado supracitado — de se oportunizar a posteriori o oferecimento da proposta parece ser a mais compatível com o devido processo legal. Desse modo, resguarda-se o direito à boa acusação como direito fundamental e, ao mesmo tempo, impõe-se uma barreira a esse cenário de denúncias carregadas a fim de inviabilizar o oferecimento do ANPP.
1 MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei Anticrime: a (re)forma penal e a aproximação de um sistema acusatório? – 1.ed. – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022, p. 56.
2 ROSA, Alexandre Morais da; LOPES JR., Aury; DE PINHO, Ana Claudia Bastos. Pacote Anticrime: um ano depois. Expressa, 2021. p. 15.
3 MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei Anticrime: a (re)forma penal e a aproximação de um sistema acusatório? – 1.ed. – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022. p. 74.
4 MELO E SILVA, Philipe Benoni. Overcharging prosecution e limites para imputação criminal. Migalhas, 04 de agosto de 2021. Disponível aqui. Acesso no dia 3/9/22.
5 ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. – 6.ed. ver., atual. e ampl. Florianópolis: EMais, 2020, p. 578.
6 MENDES, Tiago Bunning; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei Anticrime: a (re)forma penal e a aproximação de um sistema acusatório? – 1.ed. – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022, p. 75.
7 TJSP, RESE 2021.0000959667. Rel. Des. Marcos Alexandre Coelho Zilli, j. 26 de nov. de 2021, fls. 10 do recurso.
8 LUCCHESI, Guilherme Brenner; DE OLIVEIRA, Marlus. Sobre a Discricionariedade do Ministério Público no ANPP e o seu controle jurisdicional: uma proposta pela legalidade. Boletim IBCRIM, v. 29, n. 344, p. 26–28, jul., 2021.
10 MALAN, Diogo. Megaprocessos e direito de defesa. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 159, p. 45-67, set. 2019.
11 TOFFIC SIMANTOB, Fábio. Overcharging e o Direito de ser bem acusado. Youtube, 16 de julho de 2020. Disponível aqui. Acesso no dia: 01 de setembro de 2022.
12 CHOUKR, Fauzi Hassan. Iniciação ao processo penal. – 2.ed – Florianópolis [SC]: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 343.
13 ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. – 6.ed. ver., atual. e ampl. Florianópolis: EMais, 2020, p. 540.