Informação privilegiada

Criptoativos como objeto do delito de lavagem de dinheiro

O advento de novas tecnologias que modernizam as relações em sociedade relaciona-se diretamente com a disciplina do Direito Penal Econômico, cujo objeto de estudo inclui os crimes econômicos, financeiros e tributários.

16/8/2022

O advento de novas tecnologias que modernizam as relações em sociedade relaciona-se diretamente com a disciplina do Direito Penal Econômico, cujo objeto de estudo inclui os crimes econômicos, financeiros e tributários. Do impacto de novas expressões de valores ou formas de transações comerciais, como os criptoativos, decorre o dever de compreender em que medida a norma penal abarca esses fenômenos econômicos. Assim se deu com a introdução dos ativos virtuais nas transações privadas, os quais revolucionaram o paradigma das relações econômicas entendidas pelo Direito Penal Econômico como fundadas em moedas e fiscalização estatal.

Os criptoativos surgiram com o propósito de reduzir custos de transação, facilitar a circulação de valores e elevar a discrição dos negócios, vez que prescindem de intermediários centralizadores para sua operacionalização e são ativos não pertencentes a uma soberania estatal – por isso é inadequada a utilização do termo moeda virtual ou criptomoeda.1 Devido à sua relevância pública, o principal criptoativo é a Bitcoin, criada em 2009 por Satoshi Nakamoto.

A popularização do uso dos criptoativos com sua grande circulação fez surgir administradoras desses ativos, as denominadas exchanges, cuja atuação é semelhante às casas de câmbio. Por consequência, cresceu a preocupação em torno da criminalidade financeira neste ambiente, consoante pontuam Bello e Saavedra.2

O desafio que os criptoativos representam se traduz em suas principais características, que vão na contramão da tendência mundial de desenvolvimento e aperfeiçoamento das leis de combate à criminalidade financeira e das políticas de compliance.

Pode-se pontuar três principais características aos criptoativos. A primeira delas é a descentralização, pois independem de controle das transações realizadas por uma figura central, como um banco ou uma entidade estatal. É a razão pela qual os custos são menores que transações com moeda corrente estatal.3 A segunda é a pseudoanonimidade, que se refere à desnecessidade de comprovação da identidade por documentos oficiais para abrir a conta em que os ativos serão movimentados (denominada wallet), bastando o acesso a um computador e ao sistema de transações, que é a blockchain no caso da Bitcoin4. O prefixo “pseudo” remete ao falso senso comum de que as movimentações com criptoativos são completamente anônimas. Na verdade, a blockchain é um sistema que registra todas as transações realizadas, as quais são averiguadas por diversas pessoas inseridas no sistema (os mineradores) e disponibilizadas publicamente.5  A última característica é a globalidade dos criptoativos, porquanto a movimentação desses ativos pode ser feita sem limites territoriais, de horário ou de valores, bastando a rede mundial de computadores.6

As características acima elencadas contrastam com o disposto na lei 9.613/98, na medida que os criptoativos possuem em sua essência uma maior preservação da anonimidade, enquanto a Lei de Lavagem é produto de uma política criminal que busca elevar a transparência dos negócios oriundos de relações patrimoniais. Nas palavras de Bello e Saavedra, a lei 9.613/98 é "a principal fonte de deveres de compliance relacionados à prevenção ao branqueamento de capitais, de onde se extrai o dever que maior relação guarda com as criptomoedas, qual seja, o dever de identificação dos efetivos beneficiários das transações".7

Enquadrar as transações envolvendo criptoativos, em especial quando se desenvolvem independentemente das exchanges nas prescrições da Lei Antilavagem é tarefa árdua, uma vez que os ativos virtuais não se enquadram no conceito de moeda pelo ordenamento brasileiro e a territorialidade dos eventuais crimes imputáveis é extremamente conflituosa.

Por estas razões – adiante densificadas – cria-se terreno fértil para realização de ilícitos penais financeiros por meio dos criptoativos. Afinal, suas características atendem aos interesses de indivíduos que objetivam ocultação e dissimulação de valores, e são transações sobre as quais a incidência da norma proibitiva ainda é incerta, embora não seja razoável pressupor que toda movimentação de criptoativos seja ilícita.

O primeiro óbice à imputação do delito de lavagem de dinheiro em movimentações de criptoativos é a não consideração pelo ordenamento brasileiro de que esses ativos sejam moedas propriamente ditas para fins penais. Segundo Bello e Saavedra, para o direito brasileiro, cujo fundamento da legalidade em matéria penal é de ordem constitucional, abranger no significado de moeda os criptoativos independentes de sistemas financeiros estatais recairia em analogia in malam partem.8

Entretanto, o Comunicado n.º 25.306 de 19/02/2014, emitido pelo Banco Central do Brasil, traz a definição de "moedas virtuais" e seus riscos, e consigna, em seu item 7, a possibilidade de investigação criminal de pessoas que usem esses ativos para atividades ilícitas.9 Outrossim, a Instrução Normativa n.º 1.888/2019 da Receita Federal conceitua, em seu art. 5.º, os termos "criptoativos", para se referir às "moedas virtuais" (como a Bitcoin); e "exchange", a qual representa a pessoa jurídica que oferece serviços referentes a operações realizadas com criptoativos.10

À vista disso, parte da doutrina admite a possibilidade de os criptoativos serem objeto do delito de lavagem de dinheiro. A razão indicada parece simples: o tipo penal da lavagem de dinheiro abrange “bens, direitos e valores”, no que se incluem os criptoativos, pois estes são passíveis de individualização e domínio de propriedade por um sujeito.11

A I.N. 1.888/2019 define criptoativo como "representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta"12, estabelecendo diversos deveres de coleta de informações às exchanges de criptoativos. Isso demonstra a criação de um microssistema regulatório, ainda que incipiente, que direciona o controle das transações realizadas e a possibilidade de persecução penal, isto é, o reconhecimento dos criptoativos como objeto do delito de lavagem e as exchanges como pessoa jurídica obrigada aos deveres transparência e informação.

Em relação às características essenciais dos criptoativos, perfaz-se uma situação que vai de encontro à legislação antilavagem, para a qual a restrição ao anonimato e a obrigação de registros das transações são impositivas. Em que pese haja transcrição das trocas comerciais inseridas na blockchain, a rastreabilidade do usuário físico detentor das chaves criptografadas é precária, ante a possibilidade de uma pessoa deter inúmeras contas. Assim, sustenta-se que a aplicação da Lei de Lavagem aos criptoativos esvazia a própria estrutura desse sistema de negócios virtuais.

Não é razoável concluir pela inaplicabilidade da Lei nº 9.613/98 por contrariar as características inerentes aos criptoativos, pois as condutas ilícitas continuam passíveis de serem praticadas nesse sistema. Exige-se, por isso mesmo, a adequada regulamentação da situação, identificando as condutas lícitas e ilícitas, pois a dificuldade de compreender as transações virtuais não é justificativa para afastar a incidência da lei.

Entendendo-se que a lavagem de dinheiro é conduta compatível com a nova tecnologia das criptomoedas, exige-se, em contrapartida, estudos aprofundados quanto ao mecanismo de funcionamento desses sistemas, preferencialmente de ordem internacional devido à característica de globalidade dos criptoativos. O conhecimento do ambiente virtual e sua regulação podem auxiliar nas investigações de ilicitudes.

A regulação interna brasileira parece avançar no que tange às exchanges, pelas quais é possível rastrear os detentores dos ativos por meio de sua “clientela”. Além disso, o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI) emitiu recomendações que pautam o desincentivo das transações diretas pelos usuários (peer-to-peer) e a regulação direcionada aos desenvolvedores de softwares para que sejam criadas aberturas à vigilância pelo Estado.13

Todas essas iniciativas regulatórias perpassam o importante debate acerca da vigilância estatal sobre as pessoas, não podendo, todavia, recair na presunção de que a busca pelo anonimato e a proteção de dados pessoais seja sempre em razão de uma atividade ilícita. A regulação direta dos indivíduos é sempre um caminho tortuoso e requer uma especialização dos órgãos envolvidos para que as iniciativas regulatórias não tenham o efeito contrário: o fortalecimento de sistemas ainda mais anônimos e a migração dos usuários para eles.14

Por fim, outro problema relevante refere-se à territorialidade do crime de lavagem de dinheiro envolvendo os criptoativos. Nesse ambiente, o conflito de competência positivo e negativo é bastante provável dada a internacionalização das transações.

Do conflito negativo de competência pode resultar a impunidade de infrações penais quando a movimentação do ativo envolver dois países, o que frequentemente ocorre. A exemplo, se o local do envio do comando adotar a “teoria do resultado” e o local em que se concretiza o comando adotar a "teoria da ação", não haverá poder de jurisdição para processar a conduta.15 O Brasil, ao adotar a "teoria da ubiquidade", possui jurisdição para processar crimes em locais onde ocorreu a ação ou onde ocorreu o resultado. Assim, é possível que haja persecução penal pelas autoridades nacionais se a conduta humana que emite o comando dos verbos nucleares do delito de lavagem ocorreu no Brasil, bem como se aqui ocorreu a dissimulação, a ocultação ou a integração desses valores. Evita-se, portanto, o inconveniente conflito de jurisdição negativo citado acima.16

Por sua vez, do conflito positivo de jurisdições decorre o problema da litispendência internacional, diante da qual se invoca o ne bis in idem. É de se destacar, no entanto, que o Código Penal Brasileiro admite essa possibilidade e busca remediar o problema da dupla incriminação pelo disposto em seu artigo 8.º17. O entendimento é de que há possibilidade de processamento em territórios diferentes, em respeito à soberania dos Estados, porém a condenação por jurisdição estrangeira deve ser contabilizada como atenuação de pena.18

Conclui-se que o surgimento dos criptoativos tem causa na busca por maior discrição das transações financeiras, criando-se um sistema dotado de descentralização, pseudoanonimidade e globalidade. Essas características inerentes aos criptoativos parecem, à primeira vista, incompatíveis com a Lei Antilavagem e suas políticas de compliance. No entanto, e mesmo que não tenha a definição de "moeda" propriamente dita, entende-se ser possível enquadrar os criptoativos como objeto do tipo penal de lavagem de dinheiro no Brasil, de modo que as inciativas regulatórias e o estudo sobre o tema são importantes para auxiliar na identificação de transações ilícitas e consequente persecução penal dessas condutas.

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1 FELICIANO, Yuri Rangel Sales. Bitcoin e o trilema penal econômico: a (im)prescindibilidade de uma regulação internacional. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, São Paulo, ano 1, vol. 2, p. 155-185, abr.-jun., 2020.

2 BELLO, Douglas Sena; SAAVEDRA, Giovani Agostini. A necessária reflexão acerca da expansão legislativa do compliance decorrente da relação de criptomoedas como os bitcoins e a lavagem de dinheiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 147, p. 251-272, set. 2018.

3 ASSIS, Amanda Paparoto. Criptomoeda e direito penal econômico: uma análise à luz do crime de lavagem de dinheiro. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, São Paulo, ano 1, vol. 3, p. 65-82, jul.-set. 2020. p. 68.

4 Ibid.

5 MORAES, Felipe Américo. Bitcoin e lavagem de dinheiro: quando uma transação configura crime. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022. p. 170-171.

6 ASSIS, Amanda Paparoto. Criptomoeda e direito penal econômico: uma análise à luz do crime de lavagem de dinheiro. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, São Paulo, ano 1, vol. 3, p. 65-82, jul.-set. 2020. p. 69

7 BELLO, Douglas Sena; SAAVEDRA, Giovani Agostini. A necessária reflexão acerca da expansão legislativa do compliance decorrente da relação de criptomoedas como os bitcoins e a lavagem de dinheiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 147, p. 251-272, set. 2018.

8 BELLO, Douglas Sena; SAAVEDRA, Giovani Agostini. A necessária reflexão acerca da expansão legislativa do compliance decorrente da relação de criptomoedas como os bitcoins e a lavagem de dinheiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 147, p. 251-272, set. 2018.

9 BANCO CENTRAL DO BRASIL. Comunicado 25.306, de 19 de fevereiro de 2014. Esclarece sobre os riscos decorrentes da aquisição das chamadas "moedas virtuais" ou "moedas criptografadas" e da realização de transações com elas. Disponível aqui. Acesso em: 23.06.2022.

10 RECEITA FEDERAL. INSTRUÇÃO NORMATIVA RFB Nº 1888, DE 03 DE MAIO DE 2019. Institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB). Publicado(a) no DOU de 07/05/2019, seção 1, página 14. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=100592. Acesso em: 29.06.2022.

11 MORAES, Felipe Américo. Bitcoin e lavagem de dinheiro: quando uma transação configura crime. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022. p. 170-171.

12 Ibid.

13 Ibid.

14 Ibid.

15 Ibid.

16 Ibid.

17 Art. 8º A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas.

18 MORAES, Felipe Américo. Bitcoin e lavagem de dinheiro: quando uma transação configura crime. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022. p. 170-171.

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Colunistas

Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Mariana Beatriz dos Santos Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito e Processo Penal Econômico - NUPPE UFPR.