Informação privilegiada

Simultaneidade entre os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro: um breve cotejo entre a AP 470 e o HC 165.036

Simultaneidade entre os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro: um breve cotejo entre a AP 470 e o HC 165.036

15/2/2022

O debate acerca da possibilidade de concurso entre os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro é frequente e dotado de extrema relevância, especialmente nos casos em que os atos de ocultação e dissimulação da origem ilícita do produto do crime antecedente são empregados concomitantemente ao repasse da vantagem indevida ao seu beneficiário.

Neste cenário, cabe realizar um cotejo analítico do decidido pelo Supremo Tribunal Federal acerca da matéria na Ação Penal  470/MG e no Habeas Corpus 165.036/PR, dois importantes precedentes que defrontaram a (des)necessidade de aplicação do princípio da consunção entre os crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro. A partir das especificidades dos casos concretos que deram ensejo às referidas ações e dos argumentos utilizados pelos Ministros para formarem o seu convencimento, busca-se analisar se houve uma mudança no entendimento anteriormente consolidado pela Corte, ou se as circunstâncias envolvendo os casos eram realmente distintas.

No âmbito da AP 470/MG, o então deputado federal João Paulo Cunha (PT/SP) havia sido condenado pelo crime de lavagem de dinheiro, o qual teria se configurado — segundo a versão apresentada pelo Ministério Público Federal — em razão do modo como foram efetuados os repasses dos valores originados no crime de corrupção, consistente na perpetração de fraude para que os dados relativos aos verdadeiros beneficiários dos cheques sacados no Banco Rural não fossem repassados aos órgãos oficiais de fiscalização. Além de se utilizar dessa estrutura, João Paulo Cunha enviou sua esposa para receber os valores em seu lugar, supostamente com a intenção de encobrimento da operação.

Irresignado com a condenação, o réu opôs embargos infringentes, postulando a prevalência dos votos vencidos que o absolveram da prática do referido crime.

Por ocasião do julgamento dos Sextos Embargos Infringentes na AP 4701, a principal controvérsia a ser esclarecida dizia respeito a definir se a utilização de interposta pessoa para receber valores pagos a título de propina seria, por si só, suficiente para caracterizar também o crime de lavagem de dinheiro.

Ao final, o Tribunal, por maioria, acolheu os embargos infringentes para absolver o embargante do crime de lavagem de dinheiro, nos termos do voto do ministro Roberto Barroso, estabelecendo um importante precedente no que diz respeito a duas questões principais, que serão objeto de análise mais detida a seguir.

Em primeiro lugar, fixou-se o entendimento acerca da possibilidade da criminalização da autolavagem, desde que existentes atos de ocultação autônomos e posteriores à prática do crime antecedente.

Nesse sentido, destacou o ministro Roberto Barroso que "o recebimento por modo clandestino e capaz de ocultar o destinatário da propina, além de esperado, integra a própria materialidade da corrupção passiva, não constituindo, portanto, ação distinta e autônoma da lavagem de dinheiro"2.

Estabelecida essa primeira premissa, o Plenário da Corte decidiu, ainda, que o recebimento de propina constitui o marco consumativo do delito de corrupção passiva, na modalidade objetiva “receber”, sendo indiferente que o crime seja praticado com elemento de dissimulação.

Sobre esse ponto, o ministro Roberto Barroso, ao rememorar que o tipo da corrupção passiva é misto alternativo, podendo ser praticado nas modalidades de aceitação, solicitação ou recebimento da vantagem indevida, considerou que não seria possível vislumbrar no recebimento do benefício ilícito um ato posterior ao delito de corrupção, tendo em vista que a denúncia descreveu as condutas de corrupção praticadas pelo réu nas modalidades de "aceitar" e "receber"3.

No mesmo sentido foram os fundamentos apresentados pela ministra Rosa Weber, de que o recebimento da vantagem indevida pelo réu naquele caso, mesmo que por intermédio de sua esposa, foi ato consumativo do crime de corrupção passiva. A ministra destacou, ainda, que o fato de o repasse dos valores ter se operado às escuras "nada mais é do que elemento ínsito ao delito de corrupção passiva, pois (...) quem recebe vantagem indevida em razão do cargo não o faz à luz do sol, mas sim às escondidas"4.

Com relação à circunstância de o recebimento da vantagem indevida ter se operado por meio de interposta pessoa, o ministro Teori Zavaski apontou que a utilização de um terceiro para o recebimento dos valores não seria meio idôneo para caracterizar a ação de "ocultar" reclamada pelo tipo da lavagem de dinheiro, o qual exige, além disso, "a existência de um contexto capaz de evidenciar que o agente realizou tal ação com a finalidade específica de emprestar aparência de licitude aos valores"5.

O entendimento ora fixado pelo Supremo Tribunal Federal acerca da consunção entre os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro foi reiterado pela Corte em vários outros casos posteriores6, sendo um marco decisório sobre a matéria.

Contudo, mesmo com esta aparente consolidação jurisprudencial, a 2.ª Turma do STF foi chamada a se manifestar no HC nº 165.036/PR7, ocasião em que os ministros foram novamente defrontados com questões similares àquelas anteriormente tratadas no "caso Mensalão".

O Habeas Corpus tinha como paciente o então deputado federal Eduardo Consentino da Cunha (PMDB/RJ), o qual fora condenado pela prática dos delitos de corrupção passiva, lavagem de bens e evasão de divisas, porquanto teria recebido vantagem indevida na negociação da aquisição, pela Petrobrás, dos direitos de participação na exploração do campo de petróleo na República do Benin. Antes, porém, de efetivamente tomar posse dos valores ilícitos, o paciente, por intermédio de terceiros, transferiu a propina para empresas offshore e um trust, bem como os deslocou para instituições financeiras na Suíça, por meio de depósitos sub-reptícios.

Segundo o édito condenatório, o recebimento das quantias oriundas de propina em conta secreta no exterior, as transferências sucessivas para outras contas clandestinas e a ocultação dessas contas e valores das autoridades brasileiras, afastar-se-iam da simples percepção de vantagem indevida por intermédio de terceira pessoa, configurando crime de lavagem de dinheiro. A defesa do acusado, por outro lado, suscitou haver consunção entre os delitos de corrupção passiva e lavagem de capitais, considerando a ausência de qualquer ato de lavagem posterior à consumação do delito de corrupção, na modalidade de recebimento indireto.

No deslinde do julgamento, a 2.ª Turma, por unanimidade, reconheceu a existência de concurso entre o crime de lavagem e de corrupção, afastando a aplicação do princípio da consunção. Para tanto, o ministro Edson Fachin – relator do acórdão – asseverou que nos embargos de infringência sextos e décimos sextos da AP nº 470/MG, restara consolidada a possibilidade de sanção penal pela autolavagem, desde que houvesse a existência de atos autônomos ao resultado patrimonial do crime antecedente. À vista disso, a questão fulcral colocada pelo julgador seria avaliar se, no caso em espécie, a ação tida como delituosa desbordava, ou não, do juízo de reprovabilidade estabelecido no tipo penal do crime antecedente, a fim de se averiguar a existência de concurso aparente de normas.

Por essa razão, o acórdão destacou que, ao contrário do ocorrido na AP nº 470/MG, existiam atos autônomos de lavagem na espécie. Segundo o julgado, o expediente utilizado no "caso Mensalão" — simples recebimento de propina por conta bancária de terceiro — não se revelaria apto para alcançar, por si só, a tipicidade objetiva do crime de lavagem. Para tanto, seriam necessários atos adicionais, que efetivamente mascarassem a origem dos bens, a fim de ultrapassar a espacialidade do delito de corrupção8. Já no cenário em exame, não se tratava de mero recebimento indireto da vantagem indevida, contando com mecanismos aptos a ocultar os recursos ilícitos e dissimular a sua titularidade, razão pela qual era justificada a condenação por lavagem de capitais.

Por sua vez, a vogal do acórdão, ministra Carmen Lúcia, mencionou serem nitidamente distintos os contextos em que ocorreram a corrupção e a lavagem no caso em tela, ainda que houvesse alguma simultaneidade entre o fim de um e o início do outro.

A fim de verticalizar seu entendimento, a ministra relembrou o julgado na AP nº 644/MT, na qual restou consignado que, para constatar se há ou não concurso entre corrupção e lavagem, o aspecto central é verificar se houve autonomia de desígnios na empreitada do agente. Vale dizer, "se houver desígnios distintos, um voltado à percepção da vantagem e outro à ocultação da origem criminosa mediante o distanciamento do agente do produto do crime, compreendo presentes ambas as figuras delitivas"9.

Diante de tais fundamentos, a 2ª Turma, por unanimidade, indeferiu o remédio heroico, decidindo que, o fato de existir eventual coincidência temporal entre o recebimento da propina oriunda do crime de corrupção, e a implementação de atos autônomos de lavagem de capitais, “não autoriza o reconhecimento de crime único se atingida a tipicidade objetiva e subjetiva própria do delito de lavagem”.

Cotejando ambas as decisões minuciadas, pode-se concluir que, ainda que os julgadores do HC nº 165.36/PR ressaltem por diversas vezes que não houve alteração de qualquer entendimento pela Corte, tal afirmação é questionável. Com efeito, tanto neste caso, como na AP nº 470/MG, manteve-se o entendimento sobre a criminalização da autolavagem no Brasil, bem como sobre a possibilidade de haver concurso entre corrupção e lavagem de dinheiro. Ademais, conforme ressaltado pelos ministros, os atos constitutivos da suposta lavagem na AP nº 470/MG foram visivelmente distintos e menos complexos em comparação àqueles empregados por Eduardo Cunha.

Contudo, é problemático se afirmar que os fundamentos aventados no "caso Mensalão" permaneceram incólumes, especialmente porque, como destacado acima, o Plenário havia decidido que a incriminação da autolavagem "pressupõe a prática de atos de ocultação autônomos do produto do crime antecedente (já consumado)". Outrossim, para que houvesse a possibilidade de concurso entre corrupção e lavagem, seria necessária a identificação de "atos posteriores, destinados a recolocar na economia formal a vantagem indevidamente recebida"10.

Não só é duvidoso afirmar que já teria havido a consumação completa do delito de corrupção antes mesmo do recebimento da propina11, como também, conforme sustentado pelos próprios ministros, os atos de lavagem não foram posteriores — tal como consignado na AP nº 470/MG —, mas concomitantes aos de corrupção, mais uma vez demonstrando uma alteração no entendimento até então consolidado.

Por derradeiro, conclui-se que o HC n.º 165.036/PR constitui precedente paradigmático aos casos envolvendo crimes de corrupção e lavagem de capitais, mormente por sustentar que para o reconhecimento deste último delito, o fulcral não seria a identificação de atos subsequentes à consumação do crime de corrupção, mas sim a existência de atos típicos de lavagem e a verificação do dolo do agente em dissimular a origem ilícita da propina, mesmo que ainda não efetivamente recebida.

O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR. 

*Milena Holz Gorges é acadêmica de Direito da UFPR. Estagiária da Lucchesi Advocacia. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR.

**Pedro Henrique Nunes é acadêmico de Direito da UFPR. Estagiário do escritório Lamers Advogados. Membro fundador e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR.

__________

1 STF, Tribunal Pleno, AP 470 EI-sextos, Rel. Min. Luiz Fux, Rel. p/ Acórdão Min. Roberto Barroso, julg. 13 mar. 2014.

2 Ibid., p. 31 do inteiro teor do acórdão.

3 Ibid., p. 29-30 do inteiro teor do acórdão.

4 Ibid., p. 58 do inteiro teor do acórdão.

5 Ibid., p. 42 do inteiro teor do acórdão.

6 "[...] 16. A possibilidade da incriminação da autolavagem "pressupõe a prática de atos de ocultação autônomos do produto do crime antecedente (já consumado)" (AP 470-EI-sextos, Rel. Min. Luiz Fux, Rel. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe de 21.8.2014; AP 470-EI-décimos sextos, Rel. Min. Luiz Fux, Rel. p/ o ac. o Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe de 21/8/14). 17. Na narrativa contida na denúncia, não se verifica a prática de condutas autônomas por parte dos acusados apta à configuração do crime de lavagem de dinheiro. 18. Ação penal julgada improcedente." (STF, 2.ª T., Ação Penal nº 1.003, Rel. Min Edson Fachin. Rel. p/ o Acórdão Min. Dias Toffoli, j. 19 jun. 2018).

"[...] LAVAGEM DE DINHEIRO – CORRUPÇÃO PASSIVA – EXAURIMENTO – ATIPICIDADE. O ato de receber, de forma indireta, valores supostamente provenientes de corrupção, integra o tipo previsto no artigo 317 do Código Penal, de modo que a conduta de esconder notas pelo corpo, sob as vestes, nos bolsos do paletó, junto à cintura e dentro das meias não se reveste de indispensável autonomia em relação ao crime antecedente, não se ajustando à infração versada no artigo 1º, inciso V, da Lei nº 9.613/1998. Precedente: sextos embargos infringentes na ação penal nº 470, Pleno, redator do acórdão o ministro Luís Roberto Barroso." (STF, 2.ª T., Inq. n.º 3.515, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 08 out. 2019).

7 STF, 2.ª T., Habeas Corpus nº 165.036/PR, Relator Min. Edson Fachin. j. 10 mar. 2020.

8 Ibid., p. 20 do inteiro teor do acórdão.

9 STF, 2.ª T., Ação Penal nº 644/MT, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 16 mar. 2018.

10 STF, Tribunal Pleno, Ação Penal nº 470/MG EI-sextos. Rel. Min. Luiz Fux, Relator para Acórdão Min. Roberto Barroso, j. 21 ago. 2014. Ibid., p. 31 do inteiro teor do acórdão.

11 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro na APn 470 (parecer). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 22, n. 110, p. 475-495, set./out. 2014.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Mariana Beatriz dos Santos Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito e Processo Penal Econômico - NUPPE UFPR.