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Overcharging em crimes tributários e a burla à súmula vinculante 24 do STF

Overcharging em crimes tributários e a burla à súmula vinculante 24 do STF.

11/1/2022

A edição da súmula vinculante 24 pelo STF1 constituiu um marco importante no campo do direito penal econômico, especificamente dos delitos tributários. A partir dela, passou a ser pressuposto para a tipificação dos crimes materiais contra a ordem tributária (incisos I a IV do art. 1 da lei 8.137/90) a constituição definitiva do crédito tributário.

Até a edição da súmula vinculante, o exaurimento da esfera administrativa, culminada no lançamento definitivo do tributo, era tido por necessário para o oferecimento de denúncia ou mesmo a instauração de inquérito, discutindo-se a possibilidade de suspensão do prazo prescricional até o seu termo. Não havia entendimento consolidado a respeito de sua natureza jurídica, se condição de procedibilidade, condição objetiva de punibilidade ou hipótese sui generis de impedimento do lapso prescricional.2

A partir da aprovação da SV 24, a tipicidade dos crimes materiais contra a ordem tributária passou a depender do lançamento definitivo do tributo, de modo que qualquer conduta do agente até este momento é penalmente irrelevante. Deste modo, antes da constituição definitiva do crédito tributário é ilegal a autorização de buscas e apreensões, interceptações telefônicas, quebras de sigilos e medidas cautelares pessoais ou patrimoniais.

A inviabilidade da prática de qualquer ato da persecução penal antes do término do processo administrativo fiscal levou a Procuradoria-Geral da República a requerer a revisão da redação do preceito sumular no bojo da Reclamação 16.087/SP3. Nesta ação, o reclamante sustentava a ilegalidade da abertura de inquérito para apuração do crime de sonegação fiscal ante a ausência de lançamento definitivo do tributo. O relator, ministro Celso de Mello, não propôs a revisão da SV 24, mas deixou de aplicá-la no caso, invocando entendimento da Corte quanto à legalidade de atos de investigação praticados antes da constituição definitiva do tributo quando há a apuração de prática concomitante de outros crimes de natureza não tributária.

Antes do julgamento da Reclamação 16.087, a incidência da SV 24 também foi relativizada no HC 96.324/SP4, em que a Corte decidiu pela não concessão da ordem, tendo em vista que se apurava, além de crimes tributários, a prática de crimes de integrar organização criminosa, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.

Do mesmo modo, no Agravo Regimental na Reclamação 32.656/AM5, o STF decidiu pela possibilidade de instauração de persecução penal de crime contra a ordem tributária nos casos em que houver conexão com outros delitos de natureza diversa. Destacou o relator, ministro Celso de Mello, que “a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende não incidir o enunciado constante da súmula vinculante 24/STF naqueles casos em que, iniciada a investigação penal de eventuais delitos contra a ordem tributária, registrar-se a possibilidade de apuração de outros ilícitos criminais”.

Há vários outros precedentes em que o STF mitiga a aplicação da própria orientação sumulada6. Assim, embora a SV 24 não faça qualquer ressalva quanto à sua aplicabilidade, estabelecendo apenas a atipicidade do crime material contra a ordem tributária antes da constituição definitiva do crédito, o STF (e outras Cortes do país7) vem possibilitando a persecução penal antes mesmo do lançamento definitivo do tributo quando supostamente há a prática concomitante de outros crimes de natureza não tributária.

Diante de tais precedentes —e enquanto não houver a revisão da SV 24, pretensão manifestada pela PGR na Rcl 16.087 —, a experiência cotidiana revela expediente criativo para superar a pendência de procedimento administrativo fiscal para iniciar a persecução penal: a imputação de outros crimes, não tributários, provocando concurso aparente de normas.

Explica-se: não raras vezes, a denúncia por crime tributário vem acompanhada da imputação de crimes de falsidade (ideológica e/ou material). De modo geral, o contexto fático narrado pela acusação é a apresentação de documento falso perante a autoridade fazendária para fins de redução da base de cálculo de tributo. É evidente que, em tais casos, a conduta não poderia ser sancionada cumulativamente como delito de sonegação e de falsidade.

Trata-se de clara hipótese de aplicação do critério da consunção, uma vez que a potencialidade lesiva do falso (crime-meio) se exaure no crime de reduzir ou suprimir tributo devido (crime-fim). De tal modo, a imposição de ambas as sanções culminaria na valoração repetida de um mesmo fato e consequente violação à garantia ne bis in idem. Este entendimento, aliás, é pacífico nos Tribunais Superiores8, que reiteradas vezes aplicaram o princípio da consunção entre crimes de falsidade e contra a ordem tributária, a despeito de protegerem bens jurídicos diversos — fé pública e ordem tributária, respectivamente.

Assim sendo, não há dúvida que se está diante de um desvio acusatório9 na hipótese em que se inicia a apuração da suposta prática de crimes contra a ordem tributária antes do fim do procedimento fiscal e — conferindo “verniz de legitimidade” à diametral violação da SV 24 — oferece denúncia imputando a prática de delitos de falsidade material/ideológica e de uso de documento falso, em concurso material, enquanto se aguarda o lançamento definitivo para posteriormente incluir o crime tributário.

A utilização de acusações infladas como estratégia persecutória há tempos desperta preocupação no ordenamento jurídico anglo-americano10. Esse fenômeno, denominado overcharging, consiste na prática de exasperar os fatos passíveis de enquadramento jurídico-penal, seja por meio de uma imputação com indevida pluralidade de condutas penais (horizontal overcharging), seja por meio da imputação de penas mais graves do que as que seriam cabíveis no caso (vertical overcharging)11.

Além da imputação dos delitos de falsidade e de sonegação em evidente concurso aparente de normas, nota-se que, nas hipóteses em que a persecução penal de crimes contra a ordem tributária se inicia antes do término do procedimento fiscal, comumente há também a imputação cumulativa de crimes de organização criminosa e de lavagem de dinheiro, incorrendo também em horizontal overcharging.

Em tais casos, a suspeita da prática de crimes tributários pelos sócios-administradores de determinada pessoa jurídica é tomada como indício suficiente para a imputação do crime de organização criminosa. Contudo, não se pode confundir criminalidade de empresa com empresa ilícita. Na primeira, há reunião de pessoas com finalidade lícita (exercício de atividade econômica), malgrado eventual crime seja praticado no âmbito do ente corporativo; ao passo que, na segunda, a associação de pessoas é constituída justamente para auferir lucro pela prática de infrações penais12.

Por sua vez, em relação à imputação cumulativa de crimes contra a ordem tributária e lavagem de dinheiro, tem-se que este, por si só, não autorizaria a persecução criminal antes do fim do procedimento administrativo fiscal. Isso porque, antes do lançamento definitivo do tributo, o comportamento do agente será penalmente irrelevante em razão da atipicidade do delito antecedente sem o qual o crime de lavagem de dinheiro não se consuma.  

À vista do exposto, no âmbito dos delitos tributários, tem-se observado excesso no poder de acusar (overcharging). Imputa-se cumulativamente delitos que claramente não subsistiriam face à aplicação do princípio da consunção ou quanto aos quais muitas vezes não se dispõe de elementos suficientes para fundamentar a própria imputação. Isso ocorre para que o respectivo caso se enquadre na mitigação da SV 24 admitida pelo STF — i.e. quando há a apuração concomitante de crimes de natureza não tributária —, assim legitimando início da persecução penal antes do lançamento definitivo do tributo.

É certo que a mitigação do referido preceito sumular pelo próprio STF é sintomático de seus graves defeitos, dadas importantes questões dogmáticas e práticas que não foram levadas em conta no momento de sua edição13. Por isso, a aplicação da súmula acaba por ser alvo de casuísmo, gerando insegurança jurídica. Nesse sentido, a revisão da SV 24 permitiria que sua aplicação fosse mais uniforme, racional e adequada. Ao tratar adequadamente dos efeitos do encerramento do procedimento administrativo fiscal sobre a persecução dos crimes contra a ordem tributária, o STF deixaria de desrespeitar sua própria súmula casuisticamente.

Contudo, enquanto tal revisão não é feita em procedimento próprio previsto para tanto14, ao MP cabe exercer o seu poder-dever de acusar em observância à legalidade, sem desvios de finalidade e excessos que atentem diretamente contra a garantia do acusado de que a imputação contra si formulada seja minimamente adequada aos preceitos legais (e também aos sumulados).

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1 “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.

2 Ver PSV 29 e os precedentes constitutivos da SV 24: HC 85.185, HC 85.463, HC 83.353, HC 86.120, HC 85.428 e HC 81.611.

3 STF, Rcl 16.087/SP, relator min. Celso de Mello, julg. 30 abr. 2019.

4 STF, 1.ª T., HC 96324/SP, relator min. Marco Aurélio, julg. 14 jun. 2011.

5 STF, 2.ª T., Rcl 32656/AM AgR, relator min. Celso de Mello, julg. 4 mai. 2020.

6 Cita-se: STF, 2ª T., HC 95.443, relatora min. Ellen Gracie, julg. 2 fev. 2010; STF, 1ª T., HC 108.037, Relator min. Marco Aurelio, julg. 29 nov. 2011; STF, 1.ª T., ARE 936.653, Relator min. Roberto Barroso, julg. 24 mai, 2016; e STF, 2.ª T., HC 203.760 AgR, Relator min. Nunes Marques, julg. 23 nov. 2021.

7 Em estudo empírico publicado em 2018 sobre a eficiência da súmula vinculante 24 no sistema judicial brasileiro, Tiago Bottino concluiu que em mais da metade dos casos analisados (56%) as instâncias inferiores do país (Tribunais de Justiça e TRFs) deixaram de aplicar a orientação sumulada, identificando o Supremo Tribunal Federal como responsável por esse déficit de eficiência, na medida em que não respeita a própria Súmula Vinculante que editou, criando hipóteses de mitigação. BOTTINO, Tiago. A súmula vinculante vincula? Um estudo da eficiência da Súmula Vinculante 24. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 143, p. 177–219, mai. 2018.  

8 A título exemplificativo: STJ, 5.ª T., AgRg no REsp 1.347.646/MG, Relator min. Jorge Mussi, julg. 5 fev. 2013; STJ, 5.ª T., AgRg no REsp 1363618/MG, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, julg. 15 mai. 2018; STJ, 3.ª Seção, AgRg nos EAREsp 386.863/MG, Rel. Ministro Felix Fischer, julg. 22 mar. 2017; STF, 1.ª T., HC nº 84.453/PB, Relator min. Sepúlveda Pertence, julg. 17 mai. 2005; STF, Inq. 3.102/MG, Plenário, Relator min. Gilmar Mendes, julg. 25 abr. 2013.

9 A expressão é de Fauzi Hassan Choukr (Iniciação ao processo penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 331-33).

10 MALAN, Diogo. Processo Penal aplicado à criminalidade econômica e financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 114, p. 279-320, mai./jun., 2015, p. 25.

11 ALSCHULER, Albert. The Prosecutor's Role in Plea Bargaining. University of Chicago Law Review, vol. 36, n. 1, p. 50-112, 1968. p. 85-86. Disponível aqui

12 MALAN, Diogo. Processo Penal aplicado à criminalidade econômica e financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 114, p. 279-320, mai./jun., 2015. p. 26.

13 TAFFARELLO, Rogério Fernando. Impropriedades da súmula vinculante 24 do STF e a insegurança jurídica em matéria de crimes tributários. In: FRANCO, Alberto Silva; LIRA, Rafael de Souza. Direito Penal Econômico: questões atuais. São Paulo: RT, 2011, p. 323-325; FISCHER, Douglas. Os equívocos técnico, dogmático, sistemático e lógico da Sumula Vinculante nº 24 do STF. GenJurídico, 22 jan. 2021. Disponível aqui

14 Sobre o procedimento de revisão das Súmulas Vinculantes, explicam José Carlos Buzanello e Graziele Mariete Buzanello: “Atualmente, a técnica de revisão dos atuais preceitos sumulados de força persuasiva está prevista no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), desde a época da criação das súmulas (artigos 102 e 103). O quórum exigido é maior do que aquele exigido para aprovação de emendas constitucionais (três quintos), o que demonstra a dificuldade para criação, revisão e cancelamento da súmula de efeitos vinculantes, com o propósito de estabilizar os julgados no tempo. Na atualidade, a revisão e o cancelamento do enunciado de súmula com efeito vinculante estão disciplinados pela Lei no 11.417/06, com aplicação subsidiária do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.” BUZANELLO, José Carlos; BUZANELLO, Graziele Mariete. Exeqüibilidade da súmula vinculante. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 44, n. 174, p. 25-33, abr./jun., 2007. p. 29.

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Colunistas

Guilherme Brenner Lucchesi é sócio da Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Mariana Beatriz dos Santos Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Direito e Processo Penal Econômico - NUPPE UFPR.