A despeito de o surgimento do primeiro criptoativo — o Bitcoin — ter ocorrido há mais de uma década, persiste como um verdadeiro desafio a tentativa de seu enquadramento nos dispositivos tradicionais da legislação brasileira, sobretudo naqueles tangentes ao direito tributário e penal. Sobre este último, alguns autores já buscaram identificar a possibilidade de cometimento de crimes por esse meio, antecipando questões que começam a se aproximar dos tribunais1.
Dos trabalhos escritos a respeito do tema, observa-se uma relativa homogeneidade sobre a seguinte conclusão: as criptomoedas não se confundem com o conceito tradicional de “moeda”, tampouco de “ativo financeiro” ou de “valor mobiliário”2. Este desenlace impacta diretamente na seara criminal, visto que tais conceitos são elementares para a configuração típica de alguns delitos, sobretudo no que se refere ao crime de evasão de divisas (art. 22, lei 7.492/86).
Ainda que haja razoável questionamento pela doutrina quanto à legitimidade do bem jurídico tutelado por esse delito3, é certo que sua aplicação, da forma como concebida pela lei 7.492/86, é feita pelos tribunais pátrios. Assim, faz-se uma breve análise das condutas nele tipificadas.
O crime previsto no art. 22 da lei 7.492/86 basicamente contempla três modalidades distintas de conduta para a sua configuração: a primeira, contida no caput do referido dispositivo, prevê como criminosa a ação de efetuar operação de câmbio não autorizada com o fim de promover evasão de divisas do país. A segunda, por sua vez, alocada na primeira parte do parágrafo único, criminaliza a promoção de saída de “moeda” ou “divisa” para o exterior, sem autorização legal. A terceira é descrita na segunda parte do parágrafo único, que trata da manutenção de “depósitos” no exterior não declarados à repartição federal competente. Sua tipificação visa a proteger a regularidade da execução da política cambial, mapear o quadro dos capitais brasileiros no exterior e conhecer a composição do passivo externo líquido do país4.
Quando esse tipo penal é confrontado com o tema dos criptoativos, a doutrina tem sinalizado que eles não perfazem os elementos que conformam o delito, isto é, a mera conversão de reais em bitcoins não configura evasão de divisas. Contudo, isso não afasta a possibilidade de que os bitcoins sejam utilizados como meio para a evasão, caso, após sua conversão, sejam enviados para instituição sediada no exterior e convertidos em moeda estrangeira.5
Convém ressaltar que tais conclusões estão preponderantemente relacionadas às duas primeiras condutas típicas acima mencionadas, as quais recorrem ao conceito de “moeda” ou de “divisa”. Quanto à última, que utiliza o conceito de “depósito”, o confronto ainda foi pouco explorado e é sobre ele que se debruça este artigo.
De início, é necessário identificar o que se entende por “depósitos”. Ainda que haja entendimento dissonante na doutrina quanto ao seu significado6, o STJ já entendeu — recorrendo a Leandro Bastos Nunes — que “o legislador, ao tipificar a expressão ‘depósito’, buscou abarcar todo tipo de investimento que fosse convertido em valor monetário (dinheiro), incluindo ações, cotas de fundos de investimentos, debêntures, entre outros”7.
Todavia, ainda que haja entendimento no sentido de expandir o conceito de “depósitos” para além do que se concebe como “moeda” ou “divisa”, a doutrina tem se posicionado no sentido de afastar a tipicidade do delito de evasão de divisas quando houver depósito de criptoativos em instituição sediada no exterior.
Para Bueno, o indivíduo que, para comprar bitcoins em exchange8 sediada no exterior, mantém depósitos em moeda (mesmo sem sacá-los de uma instituição financeira sediada em outro país), poderá praticar o crime de evasão. Entretanto, o autor entende que não há crime “caso não tenha ocorrido a conversão dos valores de criptoativos em moeda estrangeira, ainda que mantido o depósito dos criptoativos na exchange estrangeira”, dado que, “em razão de os criptoativos não serem moeda ou divisa, a conduta é atípica”9.
Necessário notar que Bueno — diferentemente do STJ — equipara o termo “depósitos” à “moeda” ou “divisa”. Todavia, e se fosse aplicado o entendimento do mencionado Tribunal? Criptoativos custodiados em exchanges sediadas no exterior poderiam ser considerados como “depósitos”?
Essa pergunta é respondida por Leandro Nunes. Para o autor, bitcoins não podem ser considerados como “depósitos”, (i) por “não estar vinculada a qualquer instituição financeira”10; e (ii) “pelo fato de as operações não serem reconhecidas e regulamentadas pelos aludidos entes do sistema financeiro nacional”11.
Considerando isso, Nunes tem razão: o Bitcoin não está vinculado a uma instituição financeira. Ainda assim, o mencionadas precedente do STJ não abraçou completamente esse entendimento, haja vista que considera como “depósito” todas as modalidades de investimento custodiado no exterior que seja conversível em moeda — característica que o bitcoin apresenta.
Além disso, é possível que a ausência de reconhecimento ou regulamentação pelos entes do Sistema Financeiro Nacional seja algo transitório. Afinal, os Estados estão caminhando para reconhecê-lo como um ativo integrante do Sistema Financeiro Nacional.
Assim, torna-se pertinente a seguinte indagação: ter bitcoins custodiados em exchange sediada no exterior, sem comunicar à Receita Federal quando necessário, poderia configurar evasão-depósito? Partindo das premissas estabelecidas neste artigo, é plausível que sim. Afinal, o tema não foi avaliado pelos tribunais brasileiros — que podem interpretar extensivamente o termo “depósito” para abarcar os ativos digitais —, assim como entende-se ser inevitável o enlace entre nosso sistema financeiro e esse novo ativo.
Entretanto, ainda que possa haver alguma correspondência com o tipo objetivo de evasão, questiona-se se esse é o meio mais adequado para proteger o bem jurídico. Isso porque a utilização do sistema Bitcoin como meio de armazenamento de valores transcende o mero depósito em instituição financeira e, sobretudo, o território em que ela está sediada. Em verdade, o sistema em si permite o armazenamento de valores no ambiente digital e sem existir um referencial territorial12.
Para compreender adequadamente o problema é necessário traçar uma distinção entre (a) bitcoins custodiados nas “carteiras privadas” dos usuários e (b) bitcoins custodiados em exchanges.
O método de custódia clássico do sistema Bitcoin é operacionalizado diretamente pelo usuário. Devido à extensão do tema, explicar o funcionamento escapa à finalidade do presente artigo. Basta saber que os bitcoins estão localizados na blockchain13, vinculados ao “endereço” de cada usuário. Mais especificamente, os bitcoins são o produto de todos os registros contidos nessa blockchain, da qual é possível extrair a informação sobre a quem pertence cada fração da criptomoeda naquele instante (também conhecida como “saídas de transações não gastas”, ou “unspend transaction outputs” – UTXO).
Ou seja, em sentido oposto ao que institivamente se imagina14, os bitcoins não estão armazenados dentro de suas respectivas “carteiras” (wallets)15, mas na rede blockchain, a qual não está localizada em um ponto geográfico definível, mas em todos os computadores conectados à rede Bitcoin distribuídos ao redor do mundo. Isso porque o Bitcoin é um sistema descentralizado que opera mediante a conexão de diversos computadores conectados à rede e que executam o respectivo protocolo.
Essa característica revela o caráter ubíquo dessa tecnologia: o local poderia ser considerado em qualquer território onde estão localizados os computadores que armazenam cópia da blockchain (os “nós completos” ou “full-nodes”), de forma que, ao mesmo tempo, não existe uma referência clara de qual deles teria preferência16.
Não obstante a forma de custódia tradicional, devido à dificuldade de interação dos usuários com o sistema, surgiram no mercado as exchanges centralizadas. Embora não seja o método mais seguro, é o majoritariamente utilizado pelos usuários haja vista a maior facilidade na interação. Como o nome sugere, essas corretoras centralizam as operações realizadas por seus usuários em sua própria plataforma. Ou seja, são transferidos valores a uma determinada corretora e as transações que lá ocorrem, em regra, não são registradas diretamente na blockchain, ocorrendo apenas a transferência de titularidade na base de dados de seu sistema interno.
É dizer, a exchange é que detém as chaves dos criptoativos lá negociados. A principal característica dessas exchanges é justamente o fato de que elas realizam a custódia dos ativos de seus usuários, ou seja, ao atuarem como fornecedoras de carteiras virtuais, são elas que detêm a chave privada (senha) dos investidores17.
Por essa razão, diferentemente do que ocorre com bitcoins adquiridos e custodiados nas carteiras do próprio usuário, as exchanges centralizadas efetivamente realizam a prestação de serviço de custódia de moeda corrente nacional, de modo a aproximarem-se de atividades tipicamente realizadas por instituições financeiras18. Assim, partindo-se das premissas expostas, é possível afirmar que a custódia realizada por exchange enquadra-se no conceito de “depósito” utilizado pelo STJ.
Por conseguinte, em decorrência dessa diferenciação, uma possível conclusão é a de que o delito evasão-depósito se configura exclusivamente quando os criptoativos estiverem custodiados em exchanges sediadas no exterior. Contudo, caso o usuário realize a custódia em sua “carteira privada”, não há a correspondência típica.
Em termos simples: caso os criptoativos sejam reconhecidos pelo Estado, somente seria típica a conduta do indivíduo que mantém saldo em bitcoins em exchange sediada no exterior. Todavia, caso esse mesmo indivíduo realize o saque para uma “carteira privada”, desaparecerá o referencial territorial “exterior” — vez que os bitcoins passarão a estar localizados na blockchain. Assim, desaparecerá um dos elementos do tipo objetivo, deixando a conduta de ser criminosa.
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1 Nesse sentido, a título de exemplo: MORAES, Felipe Américo. Lavagem de Dinheiro e Bitcoin. UNICURITIBA, 2021. ESTELLITA, Heloísa; PRADO, Viviane Muller (Orgs.). Regulando Criptoativos. FGV Direito SP. Disponível aqui.
2 Analisando mais detidamente tal conclusão: STOCO, Isabela Maria; NUNES, Pedro Henrique. Criptomoedas e evasão de divisas: (a)tipicidade. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance. n. 5. ano 2. p. 99-121. São Paulo: Ed. RT, jan./mar. 2021.
3 Nesse sentido: BOTTINO, Thiago. Regulação econômica e Direito Penal Econômico: eficácia e desencontro no crime de evasão de divisas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, vol. 101/2013, p. 125 - 153, mar - abr/2013; SCALCON, Raquel Lima. Doutrina do "direito e desenvolvimento" e a expansão do Direito Penal Econômico no Brasil: reflexões a partir do crime de evasão de divisas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, vol. 110/2014, p. 175 - 197, set - out/2014.
4 SCHMIDT, Andrei Zenker; FELDENS, Luciano. O delito de evasão de divisas 20 anos depois: sua redefinição típica em face das modificações da política cambial brasileira. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, n. 8, v.2, p. 11-44, 2006. p. 24.
5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3ª Seção). CC 161.123/SP (2018/0248430-4). Rel. Min. Sebastião Reis Junior, j. 28 nov. 2018.
6 NUNES, Leandro Bastos. O bitcoin na condição de meio para a consumação de crimes econômicos. CONJUR, 2021. p. 1-2. Disponível em aqui.
7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AREsp nº 774.523/SP. Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, j. 07 mai. 2019.
8 As exchanges centralizadas são um dos diversos modelos de provedores de serviços dedicados a facilitar a interação entre os usuários, classificadas por Grzywotz como o “ecossistema Bitcoin” (GRZYWOTZ. Johanna. Virtuelle Kryptowährungen und Geldwäsche. Ducker & Humblot GmbH, 2019. p. 51). Seu modo de funcionamento é bastante semelhante ao das casas de câmbio tradicionais: elas se colocam como intermediadoras no processo de troca de moeda estatal por criptomoedas, ou exclusivamente entre criptomoedas, oferecendo ao usuário uma alternativa fácil e segura para realizar a conversão. Em vez de haver a necessidade de procurar uma pessoa, basta ir a essa exchange e realizar a compra ou venda de maneira direta (GRUPENMACHER, Giovana Treiger. As plataformas de negociação de criptoativos: uma análise comparativa com as atividades das corretoras e da bolsa sob a perspectiva da proteção do investidor e prevenção à lavagem de dinheiro. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2019. p. 60-75).
9 BUENO, Thiago Augusto. Situações da prática do crime de evasão de divisas por meio de criptoativos. JOTA, 2020. Disponível em aqui.
10 NUNES, Leandro Bastos. Op. Cit. p. 1-2.
11 Ibidem. p. 1-2.
12 GUARAGNI, Fábio André; RIOS, Rodrigo Sánchez. Novas tendências de combate aos crimes cibernéticos: cooperação internacional e perspectivas na realidade brasileira contemporânea. Revista de Estudos Criminais, 2019. p. 173-175.
13 A blockchain é o banco de dados público e descentralizado que contém todas as transações de bitcoin já realizadas. Cada bitcoin – ou satoshi – armazenado na blockchain está sob o formato de uma longa cadeia que tem informação de todos os endereços aos quais aqueles valores já estiveram vinculados desde o momento de sua criação (durante a mineração).
15 O que determina a propriedade de bitcoins pelo usuário não é a posse da “carteira”, mas a operação que é realizada por esse dispositivo. Em verdade, a propriedade é determinada por aquele que controla o respectivo “endereço” [15] que dá acesso aos bitcoins – determinado pela posse da respectiva chave criptográfica (chave privada). É dizer que a função de uma “carteira de criptoativos” não é armazenar (dentro de si) os bitcoins, mas somente administrar as “chaves criptográficas” necessárias para acessar o “endereço” de cada fração da criptomoeda que o usuário possui. Isso porque a) pode haver diversas “carteiras hardware”, localizadas em diversos pontos geográficos distintos, carregando as mesmas chaves privadas daquele usuário – procedimento esse utilizado para aqueles que pretendem realizar uma cópia de segurança de sua chave (backup) ou permitir que mais de uma pessoa realize a transferência dos mesmos valores; b) a “carteira” utilizada pelo indivíduo pode ser uma “carteira web”, a qual poderia estar localizada em qualquer ponto geográfico do mundo (ou, inclusive, nenhum), o que poderia resultar na constatação do local do depósito em localização alheia ao local da origem e destino da transação; c) pode haver casos que sequer há uma “carteira”, hipótese essa que ocorreria caso o agente possua uma “carteira de papel”, mas decore a chave criptográfica e, assim, consiga realizar transações sem depender de qualquer dispositivo de armazenamento (GRZYWOTZ. Johanna. Virtuelle Kryptowährungen und Geldwäsche. Ducker & Humblot GmbH, 2019. p. 121-125).
16 Ibidem. p. 126-128.
17 GRUPENMACHER, Op. Cit. p. 57.
18 Ibidem. p. 70.