Denúncias apontando a ocorrência de crimes no âmbito desportivo, especialmente no futebol, não são novidade1 e tampouco exceção. Contudo, os últimos 20 anos do desporto mais praticado do mundo foram marcados não apenas pela evolução, mas também por um mercado movimentando cifras cada vez mais impressionantes2 e diversos escândalos de corrupção e lavagem de dinheiro.
Desde manipulações de resultados no futebol italiano3, passando pelo aceite de propinas na negociação de contratos comerciais em confederações da América Latina4, até o recente "Barçagate"5, nota-se que a relação crime-futebol não é restrita a um único país e muito menos a um núcleo específico de crimes. O Brasil, obviamente, não é uma exceção.
No ordenamento brasileiro os crimes especificamente desportivos, de maneira geral, são previstos na lei 10.671/03, mais conhecida como Estatuto do Torcedor. Nos arts. 41-C e 41-D, com o especial "fim de alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado", tipificam-se condutas semelhantes aos delitos de corrupção ativa e passiva. A inclusão dos tipos penais em comento se deu a partir da lei 12.299/2010, editada como resposta à percepção da ausência de consequências quanto à manipulação de resultados.
Caso emblemático para tal percepção foi a "Máfia do Apito", revelada em 2005 pela revista Veja, que levou à anulação e nova disputa de 11 partidas da Série A do Campeonato Brasileiro daquele ano. Dada a atipicidade da conduta dos acusados, houve o trancamento da ação penal6, o que motivou, então, a novação legislativa acima comentada.
Entretanto, o objetivo do presente é a análise de delitos comuns, ou seja, que não integram diretamente o microssistema desportivo da legislação pátria, mas que são passíveis de cometimento na administração das entidades desportivas.
A relevância do tema se justifica pela crescente onda de denúncias de possíveis esquemas presentes na alta cúpula dos clubes, que dilapidam o patrimônio e, por óbvio, geram consequências diretas nos resultados em campo. Exemplo claro do acima aventado são os casos do Cruzeiro Esporte Clube e do Sport Club Internacional, ambos recentemente rebaixados à série B – 2019 e 2016, respectivamente – e cujas gestões foram posteriormente atreladas à prática de diversos desvios e achaques em sua administração7-8.
Para além do mencionado em relação aos escândalos na gestão dos clubes, pela constatação de desvios patrimoniais e afins, a própria maneira de administrar as entidades já é percebida como problemática.
Em estudo realizado pela consultoria Sports Value9 a partir dos dados do fechamento de balanço do ano de 2019 dos 16 clubes que compõem a elite do futebol no Brasil, verificou-se que a dívida, somada, ultrapassa a casa dos 8 bilhões de reais. A tendência, portanto, é de piora, vez que o cenário acima descrito é imagem prévia à pandemia do COVID-19, que paralisou campeonatos, arrefeceu mercados e impediu a ida de torcedores aos estádios.
Diante de tantos problemas, a solução: dois projetos de lei, 5.082/2016 e 5.516/2019, sugerindo a transformação dos clubes em empresa e a criação da Sociedade Anônima de Futebol (SAF). O que era solução, contudo, tornou-se dilema.
Inúmeras críticas foram formuladas10 e, a despeito das controvérsias aventadas – algumas até mesmo passíveis de correção no projeto que deve ser votado nas próximas semanas pelo Senado Federal –, uma merece destaque: a mudança da natureza jurídica, por si só, não resolverá os problemas na gestão dos clubes brasileiros11.
A uma, porque mesmo empresas com estruturas societárias consolidadas há anos não estão imunes ao cometimento de delitos em seu ínterim; a duas, porque ocasiões pretéritas indicam que a administração empresarial de clubes, entidades intrinsicamente conectadas à paixão de seus adeptos, pode resultar em um completo desastre12.
Justamente nesse cenário assumirá relevância outro "tema do momento": o criminal compliance.
Desde logo cabe destacar, todavia, que em razão da impossibilidade – pelo menos até o momento – da criminalização de pessoas jurídicas no Brasil por crimes que não os ambientais, bem como da remota probabilidade de um clube de futebol cometer delitos dessa natureza, o criminal compliance aqui mencionado é dirigido à prevenção das condutas praticadas por pessoas físicas que atuam nos clubes e/ou por meio destes.
A legislação brasileira, em termos de compliance, ainda é incipiente e, na seara criminal, praticamente irrelevante (quando muito, pode influir na avaliação do dolo do agente). Algumas leis desportivas, como as leis 9.615/98 (Lei Pelé) e 13.155/15 (Lei do PROFUT), incentivam de forma muito indireta a adoção de programas de compliance. Por outro lado, há dispositivos legais que, malgrado não sejam próprios do Direito Desportivo, abordam o tema de forma explícita, como o art. 10, III, da lei 9.613/18 (Lei de Lavagem de Dinheiro) e o art. 7°, VIII, da lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção).
Os projetos de lei 5.082-A/2016 e 5.516/2019 não inovam na temática. Pelo contrário, praticamente o ignoram, restringindo as exigências à criação de um canal de denúncias e, implicitamente, de "normas internas de ética" (art. 3°, §2°, do PL 5.082/2016).
Ademais, os projetos indicam uma preocupação muito maior com a capacidade financeira bruta dos clubes do que com a sustentabilidade desse potencial. Essa percepção é extraível da mera análise das propostas, que privilegiam a renegociação de dívidas, regimes tributários especiais e facilitações para a captação de investimentos, enquanto praticamente olvidam o estímulo à gestão profissional e ao compliance.
A omissão, deliberada ou não, preocupa. Isso, pois a aplicação dos oito pilares de um programa de compliance – suporte da alta administração, gerenciamento de risco, definição de políticas e procedimentos, treinamento e comunicação, canal de denúncia, investigação, due diligence, e monitoramento e auditoria13 – não é apenas possível, mas também benéfica aos objetivos de um clube de futebol, independentemente de sua natureza jurídica.
Algumas particularidades, é verdade, devem ser levadas em consideração. Em relação à alta administração, os clubes brasileiros – e não só – costumam ser gerenciados pelos mesmos grupos de pessoas, o que pode dificultar a implementação de um programa independente14. No que tange ao gerenciamento de riscos, é importante atentar-se à diversidade e à singularidade de um clube de futebol. Não apenas a alta cúpula necessita de vigilância, como também os jogadores e torcedores – que podem tanto manipular resultados quanto praticar atos racistas, por exemplo –, os empresários e todos os demais empregados do clube, principalmente aqueles responsáveis pelo trato com os jovens das categorias de base15.
Outra medida certamente difícil de manejar, pelo tamanho dos clubes e das torcidas que representam uma "extensão descontrolada" destes (destaque-se que, embora o clube não possa ser responsabilizado criminalmente por um delito cometido por seu adepto, poderá sofrer consequências gravíssimas, como perda de mando de campo ou de pontos em campeonatos), será a comunicação e treinamento16.
Essas barreiras, contudo, não são intransponíveis. Um recente exemplo de bem sucedido programa de compliance aplicado ao futebol é o do pioneiro Coritiba Football Club. Primeiro clube a adotar referidas preventivas na América Latina, em apenas um ano de funcionamento o Coritiba registrou mais de 120 denúncias em seu canal e evitou a perda de aproximadamente 50 milhões de reais17.
Inobstante o fato de 78% das denúncias envolverem o descumprimento de diretrizes do programa de compliance18 demonstrar a potencialidade das ações na prevenção de delitos, dentre eles a corrupção e a lavagem de dinheiro, o impacto financeiro da quantia que deixou de ser perdida é extremamente relevante. A título de comparação, o atacante Bruno Henrique, eleito melhor jogador do Campeonato Brasileiro de 2019, no mesmo ano foi comprado pelo Flamengo por 23 milhões de reais19 e atualmente ostenta um valor de mercado de aproximadamente 36 milhões de reais20.
Merece ressalto, também, o caso do Sport Club Internacional, que após a contratação de auditoria independente, no ano de 2017, constatou as irregularidades orçamentárias anteriormente mencionadas, o que reforça a capacidade de rendimento de uma estrutura de compliance prévia e organizada para evitar ocorrências de igual quilate.
Vislumbra-se, portanto, que os benefícios oriundos da implementação de programas de compliance idôneos no futebol, vale dizer, ultrapassam os limites do campo criminal e infiltram em diversas outras áreas como eficiência financeira, de gestão, e melhoria de imagem.
Evidente que o compliance, por si só, também não resolverá todos os problemas. Em verdade, não obstante nenhuma medida isolada sirva como prevenção, poderá falhar mesmo quando apoiada por outras práticas. Isso, pois nenhum programa será 100% efetivo, eis que infrações sempre poderão ser cometidas mesmo diante de todo o cuidado possível. Por isso devemos tratar os programas de compliance como idôneos ou inidôneos, é dizer, como realmente destinados à prevenção de delitos ou como uma "boa prática aparente".
Por todo o exposto é que a ausência do tema nos Projetos de Lei que prometem modernizações na gestão dos clubes de futebol parece um verdadeiro gol contra. Em tempos de VAR, a revisão dessa jogada é primordial.
*Leandro Oss-Emer é acadêmico de Direito da UFPR. Atualização em Compliance pela FGV. Membro fundador e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR.
**Lorenzo Ottobelli é pós-graduando em Direito Penal Econômico na FGV. Bacharel em Direito pela UFPR. Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da UFPR. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Investigação Defensiva do IBCCRIM/PR. Advogado na Trauczynski Muffone Advogados.
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1 Denunciava-se, já nos anos 1980, a utilização de dinheiro do narcotráfico como patrocínio de clubes de futebol. Nesse sentido: MONFARDINI, Fernando. Compliance no futebol. Sodré Gráfica e Encadernadora Ltda.: Vitória, 2020, p. 115-119.
2 Mencione-se que em 2015, só no Brasil, o futebol movimentou cerca de 53 bilhões de reais. No mundo, o número anunciado em 2018 ultrapassava a cifra dos 100 bilhões de reais. Nesse sentido, respectivamente: MATTOS, Rodrigo. Futebol movimenta R$ 53 bi na economia do Brasil, mas só gera 1% de imposto. Disponível aqui. Acesso em: 01 mai. 2021; CHADE, Jamil. Receita do futebol supera R$ 100 bilhões e esporte já é maior que PIB de 95 países. Disponível aqui. Acesso em: 01 mai. 2021.
3 MORSE, Rômulo. Corrupções no Calcio: "calciopoli", o maior escândalo do futebol italiano. Disponível aqui. Acesso em: 01 mai. 2021.
4 MACHADO, Camilo Pinheiro; DE ASSIS, Joanna. Justiça americana condena José Maria Marin a quatro anos de prisão. Disponível aqui. Acesso em: 01 mai. 2021.
5 O escândalo aponta, dentre outros, a ocorrência dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro no Futbol Club Barcelona, um dos maiores clubes de futebol do mundo. Recebeu destaque da mídia após a informação de que empresas de marketing haviam sido contratadas para proferir ataques aos jogadores do próprio clube, que não mantinham boas relações com a diretoria. Nesse sentido: EX-PRESIDENTE do Barcelona é preso na Espanha por 'Barçagate'. ESPN Brasil, 01 de março de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 01 mai. 2021.
6 PORFÍRIO, Fernando. TJ-SP tranca ação penal contra acusados na máfia do apito. Consultor Jurídico, 21 de agosto de 2009. Acesso em: 01 mai. 2021.
7 No caso do clube mineiro, o ex-presidente e mais oito pessoas foram denunciadas pelo MPMG por lavagem de dinheiro, apropriação indébita, falsidade ideológica e formação de organização criminosa. BRAGA, Thiago; NEGRÃO, Ivana. Polícia de Minas Gerais abre novo inquérito para apurar desvios no Cruzeiro. UOL, 16 de outubro de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 01 mai. 2021.
8 No Rio Grande do Sul, o ex-presidente e mais oito pessoas foram também denunciados por formação de organização criminosa, estelionato e lavagem de dinheiro. HAMMES, Tomás. MP do RS denuncia ex-presidente do Sport Club Internacional e outras 13 pessoas por desvio de Dinheiro. G1, 06 de novembro de 2019. Disponível aqui. Acesso em: 02 mai. 2021.
9 SOMOGGI, Amir. Clubes brasileiros aumentaram receitas, viram custos dispararem e dívidas superarem os R$ 8 bilhões em 2019. Disponível aqui. Acesso em: 02 mai. 2021.
10 Destaque-se, nesse sentido: MOTTA, Luciano. O mito do clube-empresa. Belo Horizonte: Sporto, 2020.
11 Menciona o problema: MONFARDINI, Fernando. Op., cit., p. 32-33.
12 Podem ser citados como exemplos de desastrosas gestões empresariais em clubes: o Rio de Janeiro Futebol Clube, que nasceu como clube-empresa em 1998 e em 2014 foi desfiliado da Federação de Futebol do Rio de Janeiro; o Esporte Clube Bahia, que em 1998 constituiu o Esporte Clube Bahia S.A. a fim de profissionalizar o departamento de futebol, mas que além de ser rebaixado para a terceira divisão do campeonato brasileiro e de enfrentar uma depreciação de mais de 25 milhões de euros em seu patrimônio líquido, teve sua imagem associada a forte esquema de corrupção; e, mais recentemente, o Figueirense Futebol Clube, que em 2017 aprovou a criação de uma empresa para gerir o clube e, logo nos primeiros anos, relatou relevante aumento em sua dívida, chegou a perder partidas por W.O. porque jogadores se recusaram a entrar campo com salários atrasados, e acabou rebaixado para a terceira divisão do futebol nacional. Veja mais em: MOTTA, Luciano. Op., cit., p. 58-69.
13 MONFARDINI, Fernando. Compliance no futebol. Sodré Gráfica e Encadernadora Ltda.: Vitória, 2020; JANUÁRIO, Túlio Felippe Xavier. Criminal compliance e corrupção desportiva: um estudo com base nos ordenamentos jurídicos do Brasil e de Portugal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019; No mesmo sentido, de forma indireta: RIOS, Rodrigo Sánchez; ANTONIETTO, Caio. Criminal compliance: prevenção e minimização de riscos na gestão da atividade empresarial. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 114/2015, p. 341-375, mai-jun/2015.
14 MONFARDINI, Fernando. Op., cit., p. 94-97.
15 MONFARDINI, Fernando. Op., cit., p. 97-136.
16 MONFARDINI, Fernando. Op., cit., p. 147-148.
17 BOAS práticas: assim como o Coritiba com o Conduta Coxa-Branca, empresas e entidades esportivas criam rating do esporte visando boas práticas de gestão. Coritiba Football Club, 28 de junho de 2017. Disponível aqui. Acesso em: 02 mai. 2021.
18 MONFARDINI, Fernando. Op., cit., p. 193.
19 GIUFRIDA, Bruno; MOTA, Cahê; DOS SANTOS, Gabriel. Flamengo acerta compra de Bruno Henrique, e atacante não joga estreia do Santos no Paulista. Disponível aqui. Acesso em: 02 mai. 2021.
20 De acordo com o site Transfermarket, especializado nesse tipo de análise, em 09/02/2021 o jogador era avaliado em 5,50 milhões de euros, o que equivale a pouco mais de 36 milhões de reais de acordo com a cotação do dia 02/05/2021. Disponível aqui. Acesso em: 02 mai. 2021.