Esta semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.075.412 e fixou polêmica tese de repercussão geral (tema 995), que diz o seguinte:
1 - A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, vedada qualquer espécie de censura prévia, porém admitindo a possibilidade posterior de análise e responsabilização, inclusive com remoção de conteúdo, por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais, pois os direitos à honra, intimidade, vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas.
2 - Na hipótese de publicação de entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios.
O caso concreto envolvia a condenação por danos morais do jornal Diário de Pernambuco em decorrência de uma entrevista em que um político acusara um ativista de ser o responsável por um atentado com mortes ocorrido durante os anos da ditadura militar. O autor da ação sequer havia sido acusado criminalmente pelo evento (ocorrido há décadas) e havia testemunhas que excluíam sua participação no atentado. O jornal publicou a entrevista sem ressalvas e se recusou a conceder direito de resposta1.
Antes de entrarmos no ponto central deste artigo, importante destacar que o julgamento, ao firmar tese de repercussão geral, recebe alcance muito mais amplo que a disputa inicial. Além disso, a tese foi fixada por ampla maioria de votos (9x2), tendo prevalecido o entendimento do ministro Edson Fachin, ao passo que os únicos votos divergentes foram proferidos por ministros já aposentados, Marco Aurélio e Rosa Weber.
Embora a assessoria de comunicação do Supremo e alguns de seus ministros tenham procurado relativizar o teor da decisão, afirmando que a responsabilização seria excepcional, apenas para casos de "indícios concretos de falsidade" e de "descumprimento do dever de verificar a veracidade dos fatos"2, o site Poder360 traçou importantes ressalvas: (i) conceitos muito abertos de “situações muito excepcionais”, "fortes evidências" e "cuidados para divulgar que a acusação era, no mínimo, duvidosa"; e (ii) quem irá aplicar a sanção são os juízes de primeiro grau3, ao que acrescentamos: dificilmente esses casos chegarão ao STF para que seja feito controle sobre a aplicação da tese.
Ao decidir pela responsabilização – ainda que de acordo com os critérios excepcionais fixados na tese e não de maneira ampla ou irrestrita – o Supremo Tribunal Federal acaba por aplicar aos veículos de imprensa uma regra semelhante à que vigora aos provedores de aplicações de internet em situações análogas, de ofensas praticadas por terceiros em entrevistas ou programas jornalísticos.
Explica-se.
O artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) prevê a responsabilização dos provedores por conteúdo gerado por terceiros nos casos em que a empresa de tecnologia não tome as providências para tornar indisponível o conteúdo ilícito após proferida uma ordem judicial. Essa regra tem aplicação genérica, é válida para vídeos, fotografias e matérias publicadas em sites ou blogs e nas diversas redes sociais.
Nessa linha, não são incomuns as condenações judiciais de provedores que não removeram – ou demoraram a fazê-lo – entrevistas em que uma pessoa identificada proferia ofensas a outra. O curioso desses casos é que muitas vezes o ofendido não se importava em processar o responsável direto pelo ilícito ou mesmo a empresa de comunicação onde a entrevista ou programa jornalístico ocorreu originalmente, mas apenas o provedor de hospedagem4 que mantinha o conteúdo acessível na internet.
Durante certo tempo, a prática foi muito comum nas ações eleitorais, tendo arrefecido em parte quando o Tribunal Superior Eleitoral fixou o entendimento de que as multas judiciais eleitorais deveriam ser direcionadas à própria Justiça Eleitoral (Fundo Partidário) e não ao outro litigante.
Tem-se então que, para os provedores de aplicações de internet, não é simples a defesa do conteúdo produzido por terceiros. Embora não haja uma responsabilização inicial, caso sobrevenha ordem judicial de indisponibilidade ou exclusão do conteúdo, estes devem cumpri-la, sob pena de responsabilização, ainda que o material possa ser decorrente do exercício de liberdade de expressão. A partir de agora, para as empresas jornalísticas a responsabilidade pode surgir ainda antes de eventual determinação judicial de remoção, caso o juiz da causa entenda que não foram tomados os devidos cuidados com a veracidade da informação, tal como decidido.
A recente decisão do STF gerou grande revolta de entidades ligadas ao jornalismo5, preocupadas sobretudo com a autocensura. Afinal, havendo dúvida quanto à veracidade da declaração, o veículo tende a optar pela não publicação, de modo a evitar processos e condenações. A medida torna-se ainda mais complexa no caso de entrevistas e programas ao vivo, como por exemplo um debate político ou os hoje tão populares podcasts.
Infelizmente, não são poucos os casos de abusos contra a liberdade de imprensa. Há poucas semanas, repercutiu nacionalmente a condenação (oriunda de uma vara criminal de Florianópolis/SC) de uma jornalista a um ano de detenção em regime aberto e indenização de R$ 400 mil em razão de uma reportagem publicada pelo Intercept Brasil que desagradou um promotor de justiça e um juiz.
Como bem sintetizado na edição de ontem do Migalhas, "impossível não pontuar que os ‘indícios concretos de falsidade’ ficarão ao alvedrio do juiz. Ou seja, apresentamos agora ao distinto público o dono da verdade: o juiz da causa. Durma-se com uma tese dessas...".
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1 Informações divulgadas pelo STF.
2 Confira notícia publicada no site do STF.
3 Confira editorial do Poder360.
4 Por vezes, a condenação atingia também o provedor de buscas. Posteriormente, a jurisprudência acabou afastando a responsabilidade dos buscadores pelo conteúdo hospedado em outros sites e apenas indexados no provedor de busca.
5 Vide reportagem da Folha de S.Paulo.