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Decisão do STJ dá novo fôlego a direito ao esquecimento

O que acabou vetado pela tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal foi apenas a proibição da divulgação de fatos verídicos publicados em meios de comunicação em razão da passagem do tempo.

5/8/2022

O direito ao esquecimento, mundialmente conhecido após a divulgação da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre o cidadão espanhol Mario Costeja González1 – que nunca mais foi esquecido –, não foi reconhecido no Brasil, tendo o Supremo Tribunal Federal (STF) expressamente o afastado no julgamento do recurso extraordinário 1.010.606/RJ, ocasião em que foi firmada a Tese 786, segundo a qual é incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento.

Contudo, um acórdão Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicado no final de junho deu novo alento aos defensores da existência desse direito e de sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se do recurso especial 1.660.168/RJ, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado por maioria de votos pela Terceira Turma do STJ. Para entendermos melhor a decisão, válido apresentar o contexto e o histórico deste julgamento.

Pois bem.

Anteriormente, o STJ havia julgado dois casos em que o direito ao esquecimento estava em debate. Em decisões diferentes da Quarta Turma daquele tribunal, ambas relatadas pelo ministro Luis Felipe Salomão, restou decidido que: i) a família de vítima de crime de repercussão nacional ocorrido há décadas não teria direito ao esquecimento (impedir a divulgação ou indenização pecuniária) por ter o nome da vítima se tornado indissociável do próprio delito, de modo que “se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi”; ao passo que ii) acusado de crime também de repercussão nacional (chacina da Candelária), posteriormente absolvido, possui direito ao esquecimento em nome da dignidade da pessoa humana, mesmo que isso implique em limitações à atividade informativa, pois “a fatídica história seria bem contada e de forma fidedigna sem que para isso a imagem e o nome do autor precisassem ser expostos em rede nacional”, o que resultou em fixação de danos morais2.

Foi justamente o caso Aida Curi que chegou ao Supremo Tribunal Federal e resultou no acórdão acima mencionado e na fixação da tese da incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição de 1988. Porém, no intervalo de tempo entre a decisão do STJ e o julgamento pelo STF, diversos casos foram levados ao Judiciário, resultando em decisões não uniformes.

Dentre eles, o STJ julgou um recurso em que provedores de aplicação (Google, Yahoo e Microsoft) questionavam acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) que ordenara os respectivos sites de busca a implementar um filtro para bloquear o nome da autora de resultados que apontassem para suposta fraude em concurso público. Segundo o tribunal fluminense, não havia impossibilidade – nem técnica, nem jurídica – para que os provedores providenciassem tal filtro, devendo o “direito à imagem, à personalidade e ao esquecimento” prevalecer sobre a “livre circulação de fatos noticiosos por tempo imoderado”.

No STJ, o recurso3 foi julgado a primeira vez em maio de 2018, tendo a Terceira Turma decidido que, em razão das peculiaridades fáticas, consideradas “circunstâncias excepcionalíssimas”, fazia-se necessária a intervenção do Judiciário para cessar o vínculo entre os dados pessoais da autora e os resultados dos sites de busca que direcionassem a uma informação (a suposta fraude no concurso) que, seja pelo conteúdo privado, seja pelo decurso do tempo, não deveria mais ser acessada. Assim, tratou-se da aplicação do direito ao esquecimento diretamente aos sites de busca.

Ao assim decidir, o STJ não seguiu a jurisprudência da própria corte4 no sentido da ausência de responsabilidade dos provedores de busca pelos resultados apresentados, devendo o ofendido direcionar sua irresignação aos provedores de conteúdo que tenham divulgado a informação ilícita ou ofensiva e não aos buscadores.

Derrotados, os provedores tentaram duas cartadas para reverter a decisão e fazer prevalecer o entendimento do STF contrário ao esquecimento. Primeiro, no próprio STJ, em sede de embargos de divergência5. Contudo, a tentativa não foi exitosa, uma vez que a Segunda Seção do tribunal entendeu, de forma unânime, no início de 2021, que as situações não eram idênticas, exatamente pela excepcionalidade da hipótese em julgamento, que não se encaixava na regra geral da jurisprudência. Em vez de soluções jurídicas conflitantes, o que havia era uma “dissonância na sua moldura fática”.

Vencida essa etapa, os três provedores de busca interpuseram recursos extraordinários (RE) para o STF. Uma das principais alegações foi justamente a contrariedade com a decisão proferida no RE 1.010.606/RJ, que culminou na mencionada tese 786 da repercussão geral. Verificando uma possível divergência, a Presidência do STJ determinou que a Terceira Turma reapreciasse a decisão anterior, para eventual juízo de retratação6.

Finalmente, chegamos à decisão que deu origem ao título deste artigo. Ao reapreciar (em junho de 2022) a decisão de 2018, a Terceira Turma do STJ manteve o entendimento anterior e, mesmo diante da existência de tese da Suprema Corte com repercussão geral afastando o esquecimento, entendeu inexistir afronta àquela tese, na medida em que o STJ não determinara a exclusão das notícias desabonadoras, mas apenas a “desvinculação do nome da autora” da matéria sobre a suposta fraude no concurso público, mantendo íntegro o conteúdo da publicação.

Embora tenha constado da decisão que a questão não foi julgada sob a ótica do esquecimento, mas da prevalência dos direitos à intimidade e à privacidade, bem como da proteção de dados pessoais, não resta dúvida de que, demonstrando-se a presença de circunstâncias especiais, é possível obter o almejado esquecimento – ainda que, se necessário, sob outra nomenclatura –com base no precedente ora confirmado pelo STJ7.

Ademais, o que acabou vetado pela tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal foi apenas a proibição da divulgação de fatos verídicos publicados em meios de comunicação em razão da passagem do tempo, deixando o STF margem para análise de outras situações caso a caso, em especial para proteção da honra, imagem, privacidade e personalidade, exatamente o que fez o STJ no acórdão comentado.

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Post scriptum: O caso envolvendo a chacina da Candelária também foi objeto de recurso extraordinário para o STF. O recurso ficou sobrestado no STJ e, tal qual ocorreu com o REsp nº 1.660.168/RJ, foi objeto de juízo de retratação no final de 2021. A Quarta Turma do STJ manteve seu entendimento anterior, fundado exatamente na possibilidade de análise casual de situações que destoem da regra geral. Nenhum dos casos transitou em julgado.

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1 Confira diversas reportagens e artigos já publicados em Migalhas sobre o tema.

2 Respectivamente, os recursos especiais (REsp) nºs 1.335.153/RJ e 1.334.097/RJ, ambos julgados em 2013.

3 Trata-se do já mencionado REsp nº 1.660.168/RJ.

4 Veja-se, a título de exemplo, o REsp nº 1.316.921/RJ, julgado pela Terceira Turma em junho de 2012.

5 Recurso interposto para sanar entendimentos conflitantes entre órgãos julgadores do próprio STJ. No caso em questão, apontou-se suposta divergência entre a decisão embargada e um precedente da Quarta Turma. O órgão responsável pelo julgamento foi a Segunda Seção.

6 De acordo com a regra do artigo 1.040, II, do Código de Processo Civil.

7 Oportuno verificar que o voto-vista da ministra Nancy Andrighi (no julgamento do juízo de retratação) esclarece que a hipótese foi sim decidida, tanto pelo TJ/RJ, quanto pelos votos vencedores no STJ, com fundamento no direito ao esquecimento.

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Daniel Bittencourt Guariento é sócio da área contenciosa do Machado Meyer Sendacz e Opice Advogados, especialista em Direito Digital e tecnologia. Membro da Comissão Especial de Tecnologia e Informação da OAB, do Conselho de Tecnologia e Informação do IASP e do Comitê de Direito Digital do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA). Ex-assessor de ministros do STJ, na sessão de Direito Privado.

Ricardo Maffeis Martins é advogado especialista no Contencioso Digital e de Proteção de Dados. Professor de Direito Processual Civil da Escola Paulista de Direito e do Curso Damásio. Foi assessor de ministros e coordenador da Segunda Seção do STJ. Certificado em Privacidade e Proteção de Dados pelo Data Privacy Brasil. Membro da Comissão de Direito, Inovação e Tecnologia do IASP.