Impressões Digitais

Vem aí o Real digital

Vem aí o Real digital

21/1/2022

Responsável por um dos sistemas financeiros reconhecidamente mais sólidos do planeta, o Banco Central do Brasil (BC) se mantém atento às transformações digitais da economia global e, nesse âmbito, às inovações para ampliação dos meios de pagamento, notadamente a tendência de emissão de moedas virtuais pelos bancos centrais, as denominadas CBDCs, abreviatura do termo em inglês Central Bank Digital Currencies.

Depois de divulgar, em junho de 2021, as diretrizes para o desenvolvimento de uma moeda digital brasileira – com destaque para: (i) a ausência de remuneração1; (ii) a construção de um modelo tecnológico que permita integral atendimento às recomendações internacionais e normas legais sobre prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa, inclusive o rastreamento de operações ilícitas; (iii); a adoção de solução que permita interoperabilidade e integração visando à realização de pagamentos transfronteiriços; e (iv) a aderência a todos os princípios e regras de privacidade e segurança determinados, em especial, pela Lei Complementar 105/01 (sigilo bancário) e pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) –, o BC seguiu a iniciativa de países como Estados Unidos, Reino Unido e China e, em dezembro/2021, juntamente com a Federação Nacional das Associações de Servidores do Banco Central (FENASBAC), lançou o LIFT Challenge, laboratório para avaliar o uso e a capacidade de execução de projetos envolvendo o Real digital, com a previsão de realização de testes específicos até o final deste ano.

Bahamas e Venezuela já têm suas moedas digitais, o sand dollar e o petros, respectivamente. A China iniciou em 2020 um piloto em algumas cidades, tendo como meta se tornar o primeiro país a abolir o uso do dinheiro em espécie.

No Brasil, o Real digital vai muito além dos outros meios de transferência eletrônica, como o Pix – meio de pagamento eletrônico instantâneo criado pelo BC, que possibilita transferências de qualquer valor e a qualquer momento do dia, entre pessoas físicas, empresas e o governo –, pois permitirá a movimentação de moeda que não existe fisicamente.

Por isso, a expectativa é de que, além da economia de recursos, a moeda virtual brasileira aumente a eficácia do sistema de pagamentos de varejo, fomente modelos inovadores de negócio a partir de evoluções tecnológicas, como contratos inteligentes (smart contracts), internet das coisas (IoT) e dinheiro programável, bem como favoreça a participação do Brasil no cenário econômico global, aumentando a eficiência nas transações transfronteiriças.

A tecnologia a ser utilizada para a implantação dessa moeda virtual ainda não foi definida, mas é provável a utilização do blockchain – espécie de Distributed Ledger Technology - DLT, isto é, um livro-razão descentralizado e imutável que registra e valida transações e rastreia ativos –, o mesmo sistema de criptomoedas como Bitcoin, Ethereum e Binance Coin.

Importante ressalvar que o Real digital, assim como qualquer CBDC, terá seu valor atrelado ao do papel moeda convencional, integrando a política monetária nacional. Por isso, essas moedas virtuais não se confundem com as criptomoedas, que não são moedas correntes, mas ativos digitais, com valor instável e especulativo e cuja liquidação exige a conversão por uma moeda corrente.

Em paralelo ao projeto do BC, a Câmara dos Deputados aprovou, no dia 7/12/2021, o PL 2.303/152, de autoria do deputado federal Aureo Moreira Ribeiro (Solidariedade/RJ), que regulamenta as criptomoedas no país, visando criar um ambiente normativo que permita o pleno desenvolvimento das moedas digitais.

O texto agora segue para votação pelo Senado, cuja Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT), por iniciativa de seu presidente, o senador Rodrigo Cunha (PSDB/AL), realizou em setembro de 2021 audiência pública interativa para debater a criação e implantação do Real digital.

O PL 2.303/15, entre outras coisas: (i) sujeita a disciplina do controle e funcionamento das corretoras de criptoativos a um ou mais órgãos da administração pública federal, a ser apontado pelo Poder Executivo (ao que tudo indica o BC) (art. 2º); (ii) fixa as diretrizes para o funcionamento do mercado de criptoativos, em linha com aquelas divulgadas pelo BC (art. 4º); e (iii) acrescenta uma nova modalidade de estelionato no Código Penal, consistente em “organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”, punível com pena de 4 a 8 anos de reclusão e multa (art. 10 do PL, que acrescenta o art. 171-A ao Código Penal).

O caminho parece ser este mesmo, acompanhando as iniciativas de digitalização dos mercados financeiros mundiais, potencializadas pela pandemia do novo Coronavírus.

Entretanto, a despeito das inegáveis vantagens das moedas digitais, a sua utilização eleva os riscos de fraude, de modo que a sua implementação deve ser feita de forma responsável e gradual, com a observância de todos os protocolos de proteção de dados e de segurança da informação.

Nesse sentido, a ampla discussão do tema pela sociedade, inclusive via projetos como o LIFT Challenge, a edição de um arcabouço normativo específico e a criação de órgãos regulatórios evidencia que nossas autoridades vêm se preocupando com a construção de um base robusta e perene para a implantação do Real digital.

1 A ausência de remuneração é mais um elemento tendente a equiparar a moeda digital ao papel moeda. Dessa forma, por exemplo, do mesmo modo que uma nota de R$10,00, quando você mantiver o valor de R$10,00 em forma digital em sua carteira virtual, esse valor não será alterado ao longo do tempo.

2 Inteiro teor da versão final da Câmara dos Deputados encaminhada ao Senado Federal, disponível aqui (acesso em 19/01/2022).

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Colunistas

Daniel Bittencourt Guariento é sócio da área contenciosa do Machado Meyer Sendacz e Opice Advogados, especialista em Direito Digital e tecnologia. Membro da Comissão Especial de Tecnologia e Informação da OAB, do Conselho de Tecnologia e Informação do IASP e do Comitê de Direito Digital do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA). Ex-assessor de ministros do STJ, na sessão de Direito Privado.

Ricardo Maffeis Martins é advogado especialista no Contencioso Digital e de Proteção de Dados. Professor de Direito Processual Civil da Escola Paulista de Direito e do Curso Damásio. Foi assessor de ministros e coordenador da Segunda Seção do STJ. Certificado em Privacidade e Proteção de Dados pelo Data Privacy Brasil. Membro da Comissão de Direito, Inovação e Tecnologia do IASP.