Impressões Digitais

Medida provisória "coloca fogo" nos debates sobre liberdade de expressão na internet

Medida provisória "coloca fogo" nos debates sobre liberdade de expressão na internet.

10/9/2021

A liberdade de expressão – e sua correlata liberdade de imprensa – são conquistas às quais o legislador constituinte de 1988 deu grande valor, em especial por nossa Carta ter sido promulgada após mais de duas décadas de ditadura militar, período em que a censura se fez constante. Mas a discussão sobre o tema, principalmente seus limites, nunca esteve tão presente quanto nos últimos meses.

Para o bem e para o mal, os brasileiros começaram a entender que a liberdade de expressão encontra limites numa democracia. Para o bem, nas decisões – inclusive do Supremo Tribunal Federal – que deixam claro que manifestações com o intuito de fechamento do Congresso Nacional e do próprio Supremo ou insuflando atos de violência contra as instituições não são protegidas pela Constituição; para o mal, com as tentativas de censura contra textos críticos, com destaques para as iniciativas do Ministério da Justiça nesse sentido.

Agora, na véspera do feriado de 7 de Setembro, data em que estavam marcadas manifestações de caráter antidemocrático em várias capitais, o governo federal editou a Medida Provisória 1.068/2021, alterando substancialmente o Marco Civil da Internet (lei 12.965/2014) para, sob a justificativa de assegurar a liberdade de expressão nas redes sociais, criar um procedimento próprio para que as empresas possam realizar a moderação do conteúdo publicado em suas plataformas, responsabilizando-as caso a remoção seja considerada irregular.

A polêmica começa na escolha do instrumento para a regulação – por meio de medida provisória (MP), que entra em vigor na data de sua publicação, sem passar pelos imprescindíveis debates no Congresso – e continua na discussão sobre os verdadeiros motivos de sua edição, justamente no momento em que o cerco contra as fake news vem se fechando, com diversas ordens judiciais de busca e apreensão e até mesmo de prisão, além do bloqueio de perfis e das contas bancárias1 que alimentavam os perfis dos responsáveis por espalhar conteúdo falso ou o chamado discurso de ódio.

Imediatamente, seis partidos – a maior parte deles de oposição – ingressaram com ações diretas de inconstitucionalidade para que o STF suspenda a eficácia da medida2, ao mesmo tempo em que é articulada no Senado corrente que defende a rejeição3 da medida provisória ou mesmo sua devolução à presidência da República. Na linha das ações ajuizadas no STF, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil também se manifestou pela inconstitucionalidade da MP4.

Um dos problemas de o governo federal ter se envolvido na discussão é a politização do tema. As redes sociais adquiriram ao longo dos últimos anos extrema relevância social e econômica. Quando a febre começou, com Orkut, Second Life e outras, não se podia imaginar que, pouco tempo depois, surgiriam profissões como youtubers, instagrammers e, recentemente, os tiktokers. Pessoas que fizeram de seu prestígio nas redes sociais verdadeiras profissões, por vezes mais bem pagas que as tradicionais. Na mesma esteira, o bom uso das redes sociais é atualmente essencial para as empresas.

Tal importância faz com que as decisões de remoção de postagens e perfis ou a desmonetização do conteúdo tenham impactos significativos e não possam mais ficar a critério único e exclusivo dos provedores e, o que é pior, sem qualquer preocupação com transparência. Não raro, perfis são removidos sem aviso prévio e sem justificativa ou, quando muito, sob a argumentação absolutamente genérica de inobservância das regras e termos de uso da rede social. Não à toa, são inúmeras as decisões judiciais determinando a reativação de um perfil ou, quando não tecnicamente possível, a conversão em perdas e danos por conta de exclusão imotivada.

Nesse sentido, algumas regras contidas na MP ganham pertinência por procurarem criar um contraditório mínimo – ainda que não se compare, e nem seria possível, a um processo judicial –, como as regras do recém criado art. 8º-A: "acesso a informações claras, públicas e objetivas" relativas a políticas e ferramentas de moderação de conteúdo; "contraditório, ampla defesa e recurso” para quem sofreu limitação em suas publicações; "restabelecimento" do que foi deletado, caso a remoção seja considerada "indevida" e impossibilidade de “censura de ordem política, ideológica, científica, artística ou religiosa".

Porém, como dito, quando tais temas não são debatidos no Legislativo – preferencialmente ouvindo-se a sociedade civil e os experts – mas sim impostos por um governo, qualquer que seja, sem discussão de seus impactos, a questão deve ser analisada com cuidado redobrado. A título de exemplo, nas situações listadas acima, quem ficaria responsável por dizer o que configura ou não censura de ordem política ou religiosa? A depender da resposta, estaremos não diante da defesa da liberdade de expressão, mas, ao contrário, de verdadeira tentativa de uma pessoa, órgão ou grupo político de definir o que é ou não verdade, o que deve ou não permanecer no ar, mitigando-se por completo o direito de as empresas definirem as regras de suas plataformas ou de as próprias redes sociais se autorregularem.

Veja-se que a MP ainda acrescentou ao Marco Civil da Internet o art. 28-A, contendo a previsão de sanções que vão da advertência à proibição do exercício das atividades da plataforma no país, passando por multa diária, multa de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil e suspensão das atividades, punições a serem aplicadas "pela autoridade administrativa, no âmbito de suas competências" (art. 28-A, § 2º). Ou seja, se não alterada a redação durante a conversão da MP em lei, um órgão governamental terá o poder de apontar as violações e já aplicar as sanções. Difícil imaginar situação pior.

Em resumo, temos que a liberdade de expressão não é um direito absoluto e comporta limites. A limitação pode ser judicial ou definida pela própria rede social, situação em que algumas regras (especialmente relativas a transparência e motivação) devem ser claras. O debate sobre tais regras é bem-vindo e deve envolver estudiosos e sociedade civil e não ser imposto pelo governo.

__________

1 Bloqueio feito tanto diretamente por algumas das principais plataformas, como por ordens judiciais. Vide, a respeito: "YouTube suspende pagamentos a 14 canais após decisão sobre fake news" (Metrópolis, 27/08/2021) e "Twitter suspende contas em verificação contra spam e robôs, e usuários relatam perda de seguidores" (G1, 14/06/2021).

2 As ações foram distribuídas à relatoria da ministra Rosa Weber e, até o momento em que esta coluna é escrita, não se tem notícia de apreciação de liminar nas ADI’s. Veja mais em "Partidos questionam MP sobre remoção de conteúdo das redes sociais" (STF, 08/09/2021).

4 A íntegra do parecer da OAB pode ser lida aqui.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Daniel Bittencourt Guariento é sócio da área contenciosa do Machado Meyer Sendacz e Opice Advogados, especialista em Direito Digital e tecnologia. Membro da Comissão Especial de Tecnologia e Informação da OAB, do Conselho de Tecnologia e Informação do IASP e do Comitê de Direito Digital do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA). Ex-assessor de ministros do STJ, na sessão de Direito Privado.

Ricardo Maffeis Martins é advogado especialista no Contencioso Digital e de Proteção de Dados. Professor de Direito Processual Civil da Escola Paulista de Direito e do Curso Damásio. Foi assessor de ministros e coordenador da Segunda Seção do STJ. Certificado em Privacidade e Proteção de Dados pelo Data Privacy Brasil. Membro da Comissão de Direito, Inovação e Tecnologia do IASP.