Impressões Digitais

Processo penal: enquanto STJ proíbe o uso de prints do WhatsApp, Supremo decidirá se Google deve fornecer dados de pesquisa na apuração de crimes

Processo penal: enquanto STJ proíbe o uso de prints do WhatsApp, Supremo decidirá se Google deve fornecer dados de pesquisa na apuração de crimes.

18/6/2021

Dois temas de direito digital criminal movimentaram as últimas semanas no país. De um lado, o reconhecimento da repercussão geral ao Recurso Extraordinário 1.301.250, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), recurso interposto pelo Google contra decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que considerou lícita a quebra de sigilo de pessoas que fizeram pesquisas em seu site de buscas nos dias anteriores à execução da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, em março de 2018. De outro, decisão do STJ que considerou ilícita – em processo penal – prova obtida por meio de prints de tela do aplicativo WhatsApp.

Começando pelo até hoje não solucionado homicídio da vereadora Marielle Franco (PSOL/RJ) e do motorista Anderson Gomes. Uma das linhas de investigação da polícia fluminense reside na quebra de sigilo de IP’s do site de buscas do Google, como forma de se chegar às pessoas que pesquisaram naquela plataforma dados ligados à agenda da vereadora e aos endereços ligados ao crime, entre dos dias 7 e 14 de março de 2018. Do cruzamento de tais dados com outros, como os veículos que passaram pelo pedágio de uma determinada via, a polícia pretende identificar os ocupantes do automóvel utilizado no homicídio1.

O Google resiste desde o início a entregar os dados, alegando que a combinação de palavras e termos comuns poderia levar a milhares de pessoas que fizeram a pesquisa no buscador, configurando uma “quebra de sigilo de uma gama de pessoas não identificadas e sequer individualizadas”, o que não é autorizado pela lei. O STJ, em decisão de sua Terceira Seção, sob relatoria do ministro Rogério Schietti, entendeu que a quebra do sigilo estava “delimitada por parâmetros de pesquisa em determinada região e em período de tempo específico”, de modo que não há risco à privacidade e intimidade das pessoas possivelmente atingidas que não tenham relação com o crime.

No exame da proporcionalidade entre o que foi pedido pela polícia e pelo Ministério Público e os riscos apontados pela empresa, decidiu o STJ que "a restrição a direitos fundamentais (...) tendo como finalidade a apuração de crimes dolosos contra a vida de repercussão internacional, não enseja gravame às pessoas eventualmente afetadas"2. Agora, reconhecida a repercussão geral (tema nº 1.148), o Supremo Tribunal Federal decidirá sobre a constitucionalidade da decisão do STJ. A relatora é a ministra Rosa Weber.

O maior risco está – caso o STF mantenha as decisões até aqui proferidas – na possibilidade de a decisão vire referência e medidas semelhantes se espalhem pelo Brasil, o que poderia levar a verdadeiro abuso por parte das polícias, com o uso do mecanismo para apuração de delitos não tão graves como o da vereadora Marielle. Numa ponta, a possibilidade da utilização de novas ferramentas para elucidação de crimes; noutra, o risco de abuso. No meio termo, o imprescindível bom senso na requisição e no uso de dados3.

Da análise dos dois pontos de vista diametralmente opostos, o caminho passa pela autorização do fornecimento dos dados nesse caso concreto, diante da gravidade e repercussão do crime, bem como da delimitação do tipo de pesquisa que foi requerido, tomando o STF o cuidado de pontuar que se trata de uma exceção autorizada para aquele caso específico e não algo que possa ser deferido em toda e qualquer investigação.

Afinal, pode-se usar prints de tela como provas na Justiça?

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu recentíssima decisão em que confirmou a ilicitude de prints de tela do WhatsApp Web – versão para computadores e notebooks do famoso aplicativo de mensagens – e determinou seu desentranhamento dos autos. A decisão foi proferida no Recurso em Habeas Corpus (RHC) nº 133.430/PE, teve como relator o desembargador federal convocado Olindo Menezes e foi unânime4.

Entendeu o STJ que as mensagens reproduzidas utilizando-se a tecla "Print Screen" ou outras ferramentas que copiem o que aparece na tela do computador poderiam ser facilmente adulteradas, uma vez que "eventual exclusão de mensagem enviada ou recebida não deixa vestígios (...) e, por conseguinte, não pode jamais ser recuperada para efeitos de prova em processo penal"5.

Em investigação de possível prática do crime de corrupção ativa, foram anexados prints de tela de conversas que comprometeriam os réus. A defesa não obteve sucesso na tentativa de afastar tal prova, nem perante o juízo de origem, nem no Tribunal de Justiça de Pernambuco, tendo então recorrido ao STJ, que rechaçou as conversas do aplicativo e manteve válidas apenas as provas que não tivessem ligação com os prints de tela.

Dois pontos merecem atenção. Em primeiro lugar, o TJ/PE entendeu pela validade da prova porque não existiam "elementos que possam apontar, extreme de dúvidas, que os prints de WhatsApp foram obtidos de forma ilícita", ou seja, transferiu ao acusado o ônus de comprovar que a conversa teria sido adulterada, o que foi invertido pelo STJ, que entendeu que a situação equivaleria ao “espelhamento de conversas do WhatsApp Web via Código QR”, ressaltando que eventual exclusão de mensagens não deixa vestígios "em razão da tecnologia de encriptação ponta-a-ponta", que não armazena nos servidores da empresa o conteúdo das conversas.

Se aceita no processo penal, haveria "indevida presunção absoluta da legitimidade dos atos dos investigadores, dado que exigir contraposição idônea por parte do investigado seria equivalente a demandar-lhe produção de prova diabólica", concluiu o STJ.

O segundo ponto a ser destacado é que, no processo civil, não necessariamente a solução seria a mesma. Em coluna anterior publicada no Migalhas6, debatemos sobre três possibilidade de preservação de um conteúdo gerado na internet e sua utilização como meio de prova no processo civil: o print de tela, o uso da tecnologia blockchain e a produção de ata notarial.

Naquela ocasião, pontuamos que, embora frágil – exatamente pela possibilidade de adulteração, tal como decidiu o STJ – o print pode validamente servir para comprovar algum fato no processo civil, "em especial quando tal prova é complementada por outras", situação em que o juiz cível definirá a quem atribuir o ônus de provar a veracidade ou não daquela prova.

__________

1 "Caso Marielle: Google deve quebrar sigilo e fornecer dados para investigação" – Migalhas de 26.08.2020.

2 Processos envolvidos no STJ: RMS 61.302, RMS 62.143 e RMS 60.698.

4 Vale mencionar que o relator original foi o ministro Nefi Cordeiro, que julgou monocraticamente o RHC, negando provimento ao pedido. O próprio STJ reformou aquela decisão em sede de agravo regimental, que declarou "nulas as mensagens obtidas por meio do print screen da tela", o que foi confirmado na decisão ora comentada, proferida em 01.06.2021 (EDcl no AgRg no RHC 133.430/PE).

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Colunistas

Daniel Bittencourt Guariento é sócio da área contenciosa do Machado Meyer Sendacz e Opice Advogados, especialista em Direito Digital e tecnologia. Membro da Comissão Especial de Tecnologia e Informação da OAB, do Conselho de Tecnologia e Informação do IASP e do Comitê de Direito Digital do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA). Ex-assessor de ministros do STJ, na sessão de Direito Privado.

Ricardo Maffeis Martins é advogado especialista no Contencioso Digital e de Proteção de Dados. Professor de Direito Processual Civil da Escola Paulista de Direito e do Curso Damásio. Foi assessor de ministros e coordenador da Segunda Seção do STJ. Certificado em Privacidade e Proteção de Dados pelo Data Privacy Brasil. Membro da Comissão de Direito, Inovação e Tecnologia do IASP.