Acabou de terminar mais uma edição do Big Brother Brasil, programa que, apesar da baixa qualidade cultural, tem grande aceitação entre os brasileiros, gerando, além de altos índices de audiência, a mobilização de redes sociais em disputas entre as "torcidas" a favor e contra determinados participantes, em especial nos chamados "paredões". Nesta edição, um fato chamou a atenção, a eliminação de ao menos três competidores com mais de 90% dos votos em disputas tríplices1, algo absolutamente imprevisível.
Por trás de tamanha rejeição está a cultura do cancelamento, termo em voga desde 2019 e que representa a desconstrução social, a rejeição pública de uma pessoa – em geral famosa ou conhecida – pela sociedade, externada pelas redes sociais, onde se forma um movimento forte e unidirecional com o intuito de que aquela pessoa, por conta de certa frase, atitude ou comportamento, seja punida pelos demais, algumas vezes apenas com a perda de seguidores e fãs, outras, com a publicação de críticas e comentários negativos, que não raro transbordam para ofensas e ameaças2.
Mas, se a culpa pelo cancelamento vem de uma atitude ou conduta equivocada do próprio cancelado, como é que isso pode levar à responsabilização civil ou criminal de um terceiro? Lembremos que no tribunal da internet não estão presentes nem as garantias do devido processo legal (como ampla defesa e produção de provas), nem do jornalismo sério e ético (ouvir os dois lados da notícia e direito de resposta). Ao contrário, "condena-se" a pessoa com acusações que não necessariamente são verdadeiras e milhares de outros curtem e compartilham a acusação, que rapidamente circula como se fosse verdade absoluta.
Por vezes, a pessoa que está sendo cancelada até tenta exercer um certo contraditório, apresentando sua versão dos fatos ou a justificativa para o que foi acusada. Porém, via de regra, o cancelamento tem alcance muito maior, em especial quando os influenciadores digitais participam da viralização daquele conteúdo. É justamente aí que reside a responsabilização do terceiro que participou ativamente do cancelamento ou, mesmo que tenha entrado na onda depois que o movimento já se iniciara, contribuiu para que maior número de pessoas fosse atingido.
Dispõem os artigos 186 e 927 do Código Civil que aquele que – por ação ou omissão – causar dano a outrem, comete ato ilícito e fica obrigado a reparar o dano causado ao ofendido. No âmbito penal, tem-se os crimes a honra – calúnia, injúria e difamação – que podem ser potencializados pela facilidade e rapidez da disseminação proporcionada pela internet3.
Imagine-se então a seguinte situação hipotética: uma pessoa pública passa a sofrer cancelamento pela internet porque é divulgado que o sujeito maltrataria animais domésticos. Para dar credibilidade à acusação, é compartilhado um vídeo com agressões a um filhote, atribuídas àquela pessoa, ainda que não seja possível confirmar a veracidade das imagens.
No primeiro momento, apenas pessoas comuns compartilham a acusação e iniciam o cancelamento. Porém, a notícia chega ao influenciador digital Felipe Neto4, ao jogador de futebol Neymar5 e à advogada Juliette6. Se apenas um deles – ou qualquer outra pessoa com número tão expressivo de fãs – reproduzir a afirmação, praticamente selando sua concordância com o cancelamento do "acusado", a proporção tende a se multiplicar milhares de vezes e a pessoa poderá, além de ser vítima de acusações raivosas, xingamentos e eventuais ameaças, sofrer perdas ainda maiores, como o encerramento de seu contrato de trabalho ou de parcerias comerciais e patrocínios que possua.
Numa hipótese como tal, embora não se possa afastar a responsabilidade daqueles que iniciaram a disseminação da informação que gerou o cancelamento, é certo que o alcance somente foi multiplicado e atingiu enorme proporção a partir do compartilhamento feito pelo influenciador, de modo que as consequências teriam sido muito menores, quiçá evitáveis, não fosse sua atuação direta na viralização do conteúdo.
Parece-nos clara aqui a responsabilidade civil subjetiva de quem, com a disseminação do conteúdo, potencializou os danos, elevando-os de patamar e com consequências mais drásticas. Em tais casos, a desculpa de apenas ter repassado conteúdo que recebera de terceiros terá pouco impacto, na medida em que a omissão também pode contribuir para a ocorrência do ato ilícito indenizável por danos materiais ou morais.
Situação semelhante pode ocorrer também na publicação de comentários em portais de notícias ou nos perfis de terceiros em redes sociais. Por vezes, a notícia ou a postagem, analisadas isoladamente, não têm o condão de gerar o cancelamento, mas o comentário feito naquela publicação sim, o que atrairá a potencial responsabilização ao autor do comentário.
A prática pode ficar ainda mais grave e eventualmente atrair até a responsabilização criminal, se forem utilizadas fake news e impulsionamento coordenado e/ou pago na divulgação, como está sendo apurado atualmente com relação ao denominado "gabinete do ódio"7.
Assim, é preciso ter cuidado na disseminação de conteúdo sobre o qual não se tem certeza na internet, na medida em que não apenas quem o criou, mas também aqueles que o compartilharam podem ser responsabilizados. Antes de "cancelar" alguém por uma atitude com a qual não se concorda, é importante refletir se vale mesmo a pena o engajamento em tal conduta.
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1 Uma das candidatas foi eliminada com rejeição de impressionantes 99,17% dos votos.
2 Sobre a cultura do cancelamento, confira reportagem do site Canal Tech.
3 Calúnia, difamação e injúria – artigos 138 a 140 do Código Penal – com aplicação do triplo da pena se o crime for cometido ou divulgado nas redes sociais da internet (art. 141, § 2º, do Código Penal, dispositivo incluído pela lei 13.964/2019).
4 Provavelmente a mais conhecida personalidade da internet brasileira, Felipe Neto possui mais de 13 milhões de seguidores no Twitter e quase 42 milhões de inscritos em seu canal no YouTube.
5 Neymar tem absurdos 150 milhões de seguidores no Instagram.
6 Juliette, ilustre desconhecida até janeiro de 2021, foi a campeã do Big Brother Brasil 21 e sua popularidade no programa global foi tamanha que, em maio, ao término do programa, já possuía 27 milhões de seguidores no Instagram.
7 Vide, a respeito "PF reforça ligação de 'gabinete do ódio' do Planalto com investigados por atos antidemocráticos" – Folha de S.Paulo de 4/12/2020 - (acesso apenas a assinantes).