Imagine-se a seguinte situação: numa abordagem realizada após uma denúncia anônima, o policial, ao verificar que a pessoa está portando um smartphone, exige que esta desbloqueie a tela e passa a examinar arquivos, fotos, contatos armazenados na agenda, ligações efetuadas e recebidas, procurando, com isso, verificar se a pessoa é ou não a autora do delito investigado ou, por vezes, de "algum delito". Esta conduta é válida?
Em nossa primeira coluna – publicada aqui em Migalhas em setembro de 2019 – comentávamos sobre o início da discussão do Tema 977 da Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal (STF), a saber: "aferição da licitude da prova produzida durante o inquérito policial relativa ao acesso, sem autorização judicial, a registros e informações contidos em aparelho de telefone celular, relacionados à conduta delitiva e hábeis a identificar o agente do crime".
O tema está em discussão no STF no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 1.042.075, da relatoria do ministro Dias Toffoli. O recurso estava liberado para julgamento desde agosto de 2018 e, um ano depois, o então presidente da Suprema Corte divulgara calendário com previsão de seu julgamento naquele semestre. Passou-se mais um ano até que o recurso finalmente foi incluído na sessão virtual do Plenário do STF, que teve início em 30 de outubro passado.
Em breve histórico do caso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) absolvera o acusado justamente por considerar ilícita a prova produzida após a apreensão de seu telefone e acesso ao registro de chamadas e contatos encontrados no celular sem ordem judicial para tanto. O Ministério Público fluminense não se conformou e recorreu ao Supremo, defendendo que o ato configuraria apreensão de objetos necessários à prova da infração penal, o que é permitido pela legislação brasileira (artigo 6º do Código de Processo Penal).
Como expusemos à época, o entendimento do TJ/RJ coincidia com o das duas Turmas criminais do Superior Tribunal de Justiça (STJ), para quem a proteção conferida pelo sigilo telefônico prevalece, de modo que a autoridade policial deve requerer judicialmente a quebra do sigilo dos dados armazenados no celular1. Conhecendo o posicionamento do STJ, a estratégia do órgão de acusação foi levar a discussão para o âmbito constitucional.
Pois bem, iniciado o julgamento no STF, o relator deu provimento ao agravo e, na sequência, ao próprio recurso extraordinário, determinando que os autos retornassem ao tribunal fluminense para que – afastada a ilicitude da prova – fosse novamente julgada a apelação. Para o ministro Dias Toffoli, é lícita a prova obtida com o acesso a registro telefônico ou agenda de contatos do celular mesmo sem autorização judicial, por não configurar ofensa ao sigilo das comunicações, à intimidade o à privacidade do acusado.
Os ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin divergiram. Para eles, a verificação dos dados contidos nos celulares depende de "prévia decisão judicial que justifique, com base em elementos concretos", a necessidade e adequação da medida, bem como "delimite a sua abrangência"2.
Em seu voto, Gilmar Mendes destacou que a jurisprudência do próprio Supremo firmada entre o final da década passada e o início da atual estava superada diante do enorme avanço das tecnologias aplicadas aos smartphones. "Sem dúvidas, cada vez mais a nossa vida quase inteira está registrada em nossos aparelhos celulares"3, afirmou, ponderando a necessidade de cautela e a imposição de limites para que não estejamos diante de um "Estado espião e onipresente".
Para o ministro, desde que haja suspeita de que o telefone contenha provas importantes à investigação criminal, é permitido que a autoridade policial apreenda o celular. Ficam proibidas, no entanto, as buscas genéricas, com o intuito de tentar achar algo que incrimine o suspeito. Antes do acesso aos dados, é necessário que se obtenha ordem judicial.
Mantemos o entendimento de que esta é a posição correta e que o uso das novas tecnologias – embora possa e deva contribuir com a segurança pública – não pode simplesmente dispensar a necessidade de investigação policial. Não apenas neste exemplo, mas também nos cada vez mais corriqueiros pedidos de interceptações telefônicas4 e de correspondências eletrônicas, com o chamado espelhamento de contas de e-mail.
O julgamento aqui tratado foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes – ex-promotor de Justiça – e não tem data para ser retomado. Faltam ainda oito votos a serem proferidos.
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1 Confira-se, a respeito, o RHC 51.531/RO, da Sexta Turma, relator o ministro Nefi Cordeiro (DJe 9/5/2016) e o RHC 67.379/RN, da Quinta Turma, relator o ministro Ribeiro Dantas (DJe 9/11/2016).
2 Em reportagem datada de 2/11/2020, Migalhas divulgou as íntegras dos votos provisórios dos ministros Toffoli e Mendes. Como o julgamento ainda não se encerrou, os votos podem ser alterados.
3 Argumento semelhante ao que utilizamos em nossa coluna anterior sobre o tema: "(...) um smartphone não deve ser comparado a uma antiga agenda de endereços e telefones (...) levamos atualmente conosco, para todos os lugares, dados muito sensíveis, uma gama de informações que inclui mensagens, lista de contatos, fotografias, e-mails, registro de ligações, perfis (e comunicações) em redes sociais, contas bancárias, trajetos percorridos nos dias anteriores e muito mais".
4 Sobre a impossibilidade de interceptações telefônicas decorrentes de denúncias anônimas e sem qualquer outra diligência policial a justificá-las, recomenda-se a leitura da recente decisão do ministro Edson Fachin no HC 181.020, que considerou ilícita a interceptação baseada em considerações genéricas, sem prova de materialidade e indícios de autoria. Este processo já transitou em julgado.