Daniel Bittencourt Guariento e Ricardo Maffeis Martins
Caros leitores, iniciamos hoje em Migalhas esta coluna quinzenal que pretende abordar e discutir aspectos ligados ao Direito Digital e, como não poderia deixar de ser, à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), a lei 13.709/2018, que entrará em vigor em agosto de 2020 e tem potencial de impacto na sociedade e na vida das empresas semelhante ao ocorrido, na década de 1990, com o Código de Defesa do Consumidor.
Pretendemos trazer para o debate questões e implicações jurídicas sobre Inteligência Artificial, Internet das Coisas, privacidade, liberdade de expressão versus direitos da personalidade, responsabilidade civil e como nossos tribunais têm decidido tais temas, sempre que possível comparando com decisões estrangeiras.
Neste primeiro artigo, abordamos um tema que está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF): a possibilidade de acesso aos dados de um telefone celular apreendido com um acusado em situação de flagrante ou no local do crime. A controvérsia está sendo discutida no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.042.075, da relatoria do ministro Dias Toffoli, com repercussão geral reconhecida1.
No caso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) decretou a absolvição do acusado sob o fundamento de que a apreensão do celular seguida de acesso à agenda telefônica e ao registro de chamadas constituíra prova ilícita, por ter sido realizada sem autorização judicial.
O Ministério Público recorreu ao STF defendendo a licitude da medida adotada pela polícia, que configuraria mera apreensão de objetos necessários à prova da infração penal, "servindo os registros e fotos ali armazenados como linha investigativa hábil a identificar o agente", não implicando em invasão à privacidade ou à intimidade, nem em interceptação de comunicação telefônica ou de dados.
A matéria já foi decidida algumas vezes pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)2, que fixou o entendimento de que, em tais casos, a prova é ilícita. Vide, a título de exemplo, o Recurso em Habeas Corpus (RHC) 51.531/RO, julgado pela 6ª Turma, relator o ministro Nefi Cordeiro (DJe de 9/5/2016).
No mesmo sentido, o RHC 67.379/RN, da relatoria do ministro Ribeiro Dantas, em que a 5ª Turma do STJ decidiu, em votação unânime, que a conduta era irregular, a ponto de a prova ter sido desentranhada dos autos. Confira-se trecho da ementa deste julgado3:
"2. Embora seja despicienda ordem judicial para a apreensão dos celulares, pois os réus encontravam-se em situação de flagrância, as mensagens armazenadas no aparelho estão protegidas pelo sigilo telefônico, que deve abranger igualmente a transmissão, recepção ou emissão de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, por meio de telefonia fixa ou móvel ou, ainda, através de sistemas de informática e telemática. Em verdade, deveria a autoridade policial, após a apreensão do telefone, ter requerido judicialmente a quebra do sigilo dos dados nele armazenados, de modo a proteger tanto o direito individual à intimidade quanto o direito difuso à segurança pública. Precedente". (RHC 67.379/RN, 5ª Turma, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe de 9/11/2016)
O tema já havia sido tratado, em junho de 2014, pela Suprema Corte dos Estados Unidos. No caso Riley v. Califórnia, também prevaleceu a proteção dos dados encontrados em celular apreendido por policial sem ordem judicial. Naquele caso, o acusado foi detido por dirigir com documentação vencida e, na abordagem, foram encontradas em seu carro duas armas de fogo e, no bolso da calça de Riley, um smartphone. A partir da análise dos dados encontrados no telefone, foi possível denunciar o acusado pela participação em um tiroteio ocorrido algum tempo antes.
No precedente estadunidense, decidiu-se que o celular pode ser apreendido pela autoridade policial, até mesmo para que não possa ser utilizado como "arma" pelo acusado. Porém, os dados armazenados no aparelho não podem ser vistoriados sem a existência de ordem judicial.
Reputamos correto o entendimento – tanto da Suprema Corte dos EUA, quanto do STJ – na medida em que, ao contrário da tese defendida pelo Ministério Público, um smartphone não deve ser comparado a uma antiga agenda de endereços e telefones onde uma pessoa ligada ao tráfico de entorpecentes anotava dados de seus clientes ou fornecedores.
Ao contrário, levamos atualmente conosco, para todos os lugares, dados muito sensíveis, uma gama de informações que inclui mensagens, lista de contatos, fotografias, e-mails, registro de ligações, perfis (e comunicações) em redes sociais, contas bancárias, trajetos percorridos nos dias anteriores e muito mais.
Diante disso, apreendido o telefone celular, cabe à autoridade policial requerer judicialmente a quebra do sigilo dos dados armazenados, de sorte a respeitar a garantia constitucional à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, contida no artigo 5º, inciso X, da Carta Magna. Embora a Constituição Federal permita, em situações extremas, a relativização dos direitos fundamentais, sopesados os valores envolvidos na situação em comento, não nos parece ser possível.
O acesso indevido, sem ordem judicial fundamentada, implicaria em grave violação à privacidade e intimidade das pessoas, atingindo, ainda que por analogia – já que não há, propriamente, uma interceptação telefônica – a inviolabilidade das comunicações privadas, regulada pela lei 9.296/1996, que, malgrado já pudesse ter sido atualizada às novas tecnologias, encontra-se em vigor e é perfeitamente aplicável à hipótese.
Por fim, mesmo nas hipóteses em que possa haver a concordância do investigado com o acesso ao seu celular, a intimidação e o constrangimento causados pela prisão viciam tal manifestação da vontade, salvo se o investigado estiver acompanhado por advogado e for advertido formalmente dos direitos renunciados.
Aguarda-se agora que o Supremo Tribunal Federal valide este entendimento, mantendo a necessidade de ordem judicial para acesso aos dados existentes em celulares.
P.S. – Vale a pena acompanhar, na 2ª Turma do STF, o trâmite do Habeas Corpus 168.052, da relatoria do ministro Gilmar Mendes, atualmente com pedido de vista da ministra Cármen Lúcia. Neste caso, após denúncia anônima de tráfico de drogas, policiais abordaram o suspeito em via pública e nada encontraram. Todavia, ao consultarem suas conversas no aplicativo WhatsApp, encontraram indícios da prática do crime. Por conta disso, decidiram realizar busca em seu domicílio, onde foram apreendidas drogas, arma, munição e certa quantia em dinheiro. O réu foi condenado em primeiro grau, teve a pena aumentada pelo TJ/SP, decisão que foi mantida pelo STJ. No STF, o relator votou pela concessão da ordem.
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1 Tema 977 da Repercussão Geral – "Aferição da licitude da prova produzida durante o inquérito policial relativa ao acesso, sem autorização judicial, a registros e informações contidos em aparelho de telefone celular, relacionados à conduta delitiva e hábeis a identificar o agente do crime".
2 Sobre os julgados do STJ, inclusive alguns que validaram a prova obtida, graças à existência de ordem judicial prévia, vide: MARTINS, Ricardo Maffeis. Apreensão de smartphone e acesso a dados, in Observatório do Marco Civil da Internet (Acesso em 20/8/2019).
3 A íntegra do acórdão pode ser obtida no site do tribunal.