IA em Movimento

A IA generativa e o olhar do julgador

Sendo a pessoa humana a medida de todos os valores, não há dúvidas de que o estudo da IA generativa interessa ao estudo do Direito, maiormente em como essa tecnologia e o seu gerenciamento algorítmico podem participar nas decisões judiciais.

5/9/2023

A história nos mostra que o humano sempre desejou uma máquina que fizesse o seu trabalho de agir e até mesmo o de pensar. Em 1943, por exemplo, os cientistas cognitivos Warren McCulloch e Walter Pitts apresentaram, na Faculdade de Medicina da Universidade de Illinois, um artigo com a primeira ideia de neurônio artificial1, propondo redes neurais e estruturas de raciocínio artificiais, em forma de modelos matemáticos, que imitam o sistema nervoso humano.

A Inteligência Artificial não é uma novidade no mundo, mas os seus resultados estão mais expressivos atualmente, colocando em xeque a nossa interpretação sobre a atuação humana e a própria ideia de humanidade. Isso por conta de um tipo especial de IA, a Inteligência Artificial generativa, cuja tecnologia permite que os algoritmos aprendam (machine learning) padrões de comportamento complexos em grandes conjuntos de dados, e depois utilizam esse aprendizado para criar e desenvolver novos conteúdos.

Recentemente vimos que essa tecnologia permite, inclusive, trazer “de volta à vida” a pessoa falecida, como no caso da propaganda da Volkswagen, na campanha “VW Brasil 70: O novo veio de novo”, que apresentou a cantora Maria Rita cantando junto de sua mãe, Elis Regina, falecida em 1982, expressando a ideia de que Elis estaria viva atualmente2.

Nesse contexto, se temos uma IA que interfere diretamente na sociedade, afetando e influenciando as pessoas em seus comportamentos e decisões, como as notícias, e até mesmo em suas profissões, com as novas ferramentas disponíveis, o Direito não ficaria alheio a este fenômeno, afinal, “é no meio social que o Direito surge e desenvolve-se”3.

Mesmo porque ao tratarmos de dados, estamos falando da própria composição da substância humana. Valemos aqui dos ensinamentos do professor Ricardo Hasson Sayeg, que afirma que os dados “também compõem a substância humana, em seu aspecto tecnológico, assim como o aspecto biológico (corpo humano), institucional (cidade), e de direitos fundamentais”.4

Nessa linha filosófica, igualmente aproveitamos as lições de Goffredo Teles Junior, ao afirmar que a pessoa humana é a medida de todos os valores5, e as coisas do mundo, inclusive os fatos sociais, “não são considerados, pelo ser humano, como simples dados, como objetos apenas ocupando espaço e tempo, dentro do Universo. [...] Elas tem um sentido, um sentido para o ser humano”.6

Ora, sendo a pessoa humana a medida de todos os valores,  não há dúvidas de que o estudo da IA generativa interessa ao estudo do Direito, maiormente em como essa tecnologia e o seu gerenciamento algorítmico podem participar nas decisões judiciais, mesmo porque já temos a IA no funcionamento do próprio judiciário7, realizando movimentos processuais e até mesmo auxiliando a elaboração de teses e textos jurídicos.

Essa capacidade de “aprender” absorvendo muitos dados e criar informações novas de maneira autêntica e até mesmo única, torna a IA generativa uma ferramenta poderosa, mas, por enquanto, confiável somente para realização de atividades bem definidas e delimitadas. Chamar esta tecnologia de 'inteligência' pode confundir as pessoas. Embora processe uma vasta quantidade de dados através de seus algoritmos, suas respostas são fundamentadas em probabilidades estatísticas. Isso significa que ela não possui consciência, intuição ou discernimento humano, mas apenas fornece respostas que parecem relevantes aos usuários.

Ainda que as atividades para as quais a IA generativa for designada sejam bem definidas, é necessária uma estrutura robusta pautada na ética e extremamente personalizada para orientá-la, bem como uma revisão de qualquer conteúdo, antes de ser implementado.

No Direito, sobretudo para decisões judiciais, a IA generativa, em primeira análise, deve ser alimentada com os princípios basilares do ordenamento, com constantes revisões a fim de identificar possíveis padronizações equivocadas, que levam à discriminação e injustiças. No entanto, ainda assim, não haveria a característica primordialmente necessária: ser, de fato, humana.

Nesse diapasão, retornamos aos ensinamentos de Goffredo Teles quando diz que “a inteligência humana estará sempre condicionada por um fato inarredável: a inteligência é sempre inteligência do ser humano. Sendo do ser humano, a inteligência não poderá deixar de ser solidária com o todo de que é parte. Esta solidariedade é o que, de certa maneira, determina a inteligência. A inteligência é necessariamente determinada pelo que o ser humano realmente é.”.

Nos casos jurídicos, sempre há nuances as quais somente a sensibilidade humana é capaz de perceber. Apesar de sempre estarmos buscando nos reinventar, há uma característica única, imutável, esta que, nas palavras de Goffredo, se resume ao fato do ser humano sempre estar refletido no mundo em que habita, sendo este seu reflexo, isto é, “o ser para o qual as coisas de todo o seu mundo se projeta”, característica esta que a inteligência artificial – pelo menos por enquanto – não detém, por mais que seja nutrida por bilhões de dados.

Por esse motivo que a incorporação tecnológica no Direito deve ser orientada pelos princípios da ética, explicabilidade, segurança, transparência e responsabilidade, bem como aplicada de forma personalizada à realidade de cada caso concreto. A IA generativa enquanto ferramenta pode auxiliar na eficiência e produtividade, no entanto, deve se resguardar a prerrogativa de decidir exclusiva ao magistrado.

Sobretudo, porque tais princípios primam, em última análise, pela valorização da dignidade da pessoa humana, que é, segundo as palavras do professor Ricardo H. Sayeg, a “expressão jurídica da essência do ser humano”8.

Indo além, em um mundo tecnológico que, cada vez mais, nos propõe uma linguagem codificada, exigindo conhecimentos matemáticos e das ciências exatas para o aperfeiçoamento do próprio Direito, uma abordagem científica possível é a lógica expressa matematicamente nas situações de incertezas da Física Quântica, como aquela em que a trajetória do elétron não pode ser observada, somente calculada probabilisticamente.

Quem relaciona muito bem essas áreas que, de longe, aparentam ser incomunicáveis, é o próprio professor Ricardo Sayeg, quando defende que o Direito terá aplicação mais densa através do Direito Quântico, ao propor uma singularidade jurídica integral, por força da consubstancialidade entre o positivismo, os direitos humanos e o direito realidade.

A IA generativa ainda não está na grande maioria das legislações, pois é bastante recente. Ainda assim, qualquer legislação ou regulação a ser inventada também não podem impedir a inovação e o desenvolvimento científico. No entanto, urgente é a discussão aprofundada sobre a ética nessa nova tecnologia.

Conclui-se que essa tecnologia no ato decisório, é relevantemente considerada enquanto ferramenta, destinada à eficiência e produtividade do magistrado, mas não substituta da inteligência humana no processo hermenêutico do magistrado, pois somente o olhar do julgador, que apreende a realidade que se impõe, permite encontrar resultados que não são verificáveis empiricamente como verdadeiros ou falsos, processo este baseado na racionalidade e expectativa probabilística dentro de determinado espaço jurídico de determinação.

Referências bibliográficas

CNN. Conar abre representação ética contra propaganda da Volkswagen com Elis Regina: ação foi motivada por queixas de consumidores; será analisado o fato da cantora ter sido "revivida" por ferramenta tecnológica e inteligência artificial, além da possível confusão que isso pode gerar. Ação foi motivada por queixas de consumidores; será analisado o fato da cantora ter sido "revivida" por ferramenta tecnológica e Inteligência Artificial, além da possível confusão que isso pode gerar. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 07 ago. 2023.

Introdução à Ciência do Direito. 29. ed. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1989. p. 23.

MCCULLOCH, W. & PITTS, W. (1943). A Logical Calculus of Ideas Immanent in Nervous Activity. Bulletin of Mathematical Biophysics, 5, 127--147.

MELO, Jairo. Inteligência artificial: uma realidade no poder judiciário. uma realidade no Poder Judiciário. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 08 ago. 2023.

SAYEG, Ricardo Hasson. Fator CapH capitalismo humanista a dimensão econômica dos direitos humanos. Ricardo Sayeg e Wagner Balera - São Paulo: Max Limonad, 2019.

TELLES, Goffredo da Silva. Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

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1 Mcculloch, W. & Pitts, W. (1943). A Logical Calculus of Ideas Immanent in Nervous Activity. Bulletin of Mathematical Biophysics, 5, 127--147.

2 CNN. Conar abre representação ética contra propaganda da Volkswagen com Elis Regina: ação foi motivada por queixas de consumidores; será analisado o fato da cantora ter sido "revivida" por ferramenta tecnológica e inteligência artificial, além da possível confusão que isso pode gerar. Ação foi motivada por queixas de consumidores; será analisado o fato da cantora ter sido "revivida" por ferramenta tecnológica e Inteligência Artificial, além da possível confusão que isso pode gerar. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 07 ago. 2023.

3 Afirmação do professor Hermes Lima, na obra Introdução à Ciência do Direito. 29. ed. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1989. p. 23.

4 Notas retiradas das aulas ministradas pelo Prof. Dr. Ricardo Hasson Sayeg, na turma de Direito Quântico do Mestrado da PUC-SP.

5 O professor Goffredo Telles, em sua obra de Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, 9ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2014, p. 330, traz que “A pessoa humana passa a ser a medida de todos os valores. Porque ela é que constitui o bem primordial e, nessa qualidade, a referência para a determinação dos valores dos outros bens.”.

6 TELLES, Goffredo da Silva. Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 329-330.

7 “A IA é uma realidade no Poder Judiciário (projetos no STF, TJPE, TST, TJRO e TJDFT) já estão trazendo benefícios. A maioria das iniciativas da Justiça está voltada para a classificação de modo supervisionado, isto é, existe a necessidade de que um especialista gerencie os atributos do processamento para garantir a efetividade do mesmo.” MELO, Jairo. Inteligência artificial: uma realidade no poder judiciário. uma realidade no Poder Judiciário. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 08 ago. 2023.

8 Notas retiradas das aulas ministradas pelo Prof. Dr. Ricardo Hasson Sayeg, na turma de Direito Quântico do Mestrado da PUC-SP.

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Colunistas

Fabio Rivelli é advogado, sócio do escritório Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA); Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Master in Business Administration pelo Insper; Especialização em administração de Contencioso de Massa pela FGVLaw- FGV-SP; Pesquisador (estudante) registrado no CNPq pela PUC-SP no grupo Capitalismo Humanista na área de Direito Econômico ; Pesquisador do Instituto EthiKAI, Palestrante da Sorbonne de Paris; Membro Associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação (CONPEDI-SC) ; É Presidente da Comissão de Gestão, Inovação e Tecnologia da OAB- Subseção de Guarulhos; DPO Setorial da Comissão de Gestão Inovação e Tecnologia da OAB – Subseção de Guarulhos; Coordenador adjunto do Núcleo de Estudo em Decisões Automatizadas da Comissão de Gestão, Inovação e Tecnologia da OAB – Subseção de Guarulhos; Coordenador adjunto em bioética e governança corporativa da Comissão de Privacidade de Dados da OAB-SP; Membro Virtual do Word Economic Forum e ranqueado pela Leaders League - 2021 como Contencioso Trabalhista de Volume, na categoria "Altamente Recomendado".

Ricardo Freitas Silveira Sócio-head da Lee, Brock, Camargo Advogados. Doutorando no IDP (Instituto Brasileiro de Ensino). Mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo IDP e especialista em Negócios Sustentáveis pela Cambridge University.