IA em Movimento

Regulação chinesa para sistemas generativos de IA pode influenciar o ocidente?

Enquanto a regulamentação europeia sobre o ecossistema tecnológico influencia grande parte dos diplomas legais em todo o mundo, os regramentos da China não têm o mesmo impacto, o que pode ser um equívoco.

1/8/2023

Enquanto a regulamentação europeia sobre o ecossistema tecnológico influencia grande parte dos diplomas legais em todo o mundo, os regramentos da China não têm o mesmo impacto, o que pode ser um equívoco.  Não haveria nada que o Ocidente poderia incorporar das regras chinesas, principalmente na área tecnológica? Certamente, a resposta deve ser sim, porque o país tem um papel relevante, principalmente sobre a governança da IA generativa, ao desenvolver uma regulamentação pioneira, independente das limitações ideológicas.

O esboço do regulamento para a IA Generativa1 foi publicado em abril de 2023, com a versão final sendo divulgada em julho do mesmo ano. Essas regras, mais flexíveis do que as propostas inicialmente, preveem, por exemplo, uma multa de 100 mil yuans (equivalentes a R$ 67 mil) para violações das diretrizes, sem a necessidade prévia de uma avaliação de segurança por parte da Comissão de Administração e Supervisão do Ciberespaço da China (CAC). Na versão final do regulamento, a supervisão será realizada por sete diferentes agências governamentais, com a CAC sendo a principal. Todas essas agências trabalham juntas para o desenvolvimento de padrões responsáveis e para a criação de mecanismos de detecção de uso mal-intencionado da IA Generativa.2

Segundo a Universidade de Stanford, a CAC não é uma agência reguladora qualquer, mas uma super agência, supraministerial e 'quase onipresente', sendo que sua origem está no Escritório Estadual de Informações da Internet. Além de gerenciar os conteúdos on-line da China, trata de políticas e regulamentações sobre segurança cibernética e de dados. É tida como uma instituição que integra o Comitê do Partido Comunista Chinês. "Embora esteja ganhando força o princípio geral de que as entidades partidárias-estatais fundidas devem ser tratadas como agências administrativas quando desempenham funções estatais em vez de partidárias, a linha entre essas duas funções nem sempre é clara. À luz da crescente influência do CAC, seu status de partido-estado duplo levanta questões sobre sua tomada de decisão, operações diárias e responsabilidade para com seu público regulamentado".3

Para os chineses, a IA generativa é definida como sendo “tecnologias que geram texto, imagem, áudio, vídeo, código e outros conteúdos semelhantes com base em algoritmos, modelos ou regras”, mas não menciona que os conteúdos produzidos pela IA generativa são essencialmente novos, quando isso vem tendo efeito cada vez maior sobre o mercado de trabalho ao substituir grande parte da mão de obra humana. É o caso do DALL-E, que já vem sendo utilizado por grandes estúdios de animação para criar personagens e ambientes em tempo recorde, podendo imitar criadores e estilos. Também causou polêmica, o acordo firmado para o ChatGPT acessar o conteúdo de uma das maiores e antigas agências de notícia do mundo – a Associated Press, o que propicia um uso responsável do treinamento da máquina em serviços de notícias,especialmente, diante de 4 mil ações que já estão tramitando na Justiça norte-americana de escritores, que se sentiram plagiados pelos chatbots.

Chama a atenção no regramento chinês, as medidas sobre os provedores de serviços de IA generativa que devem identificar o usuário de um conteúdo considerado ilegal e remover aquelas informações. Em seguida, deve relatar os problemas detectados às agências reguladoras. Há, portanto, uma preocupação com a governança ética da IA Generativa e ao mesmo tempo em fazer o controle do ecossistema de tecnologia do país.

Na regulamentação chinesa, os direitos autorais dos titulares dos dados usados para o treinamento da IA são protegidos. É proibido que desenvolvedores e provedores utilizem dados de treinamento que infringem os direitos de propriedade intelectual de terceiros ou dados pessoais sem o devido consentimento - requisitos que ainda estão sendo discutidos no Ocidente, em meio a muita polêmica. Além disso, os desenvolvedores devem marcar os conteúdos gerados pelos serviços de IA Generativa.

Existem artigos na nova regulamentação chinesa que garantem direitos aos titulares de dados similares aos da LGPD brasileira (Lei Geral de Proteção de Dados), ao coibir a coleta de informações pessoais desnecessárias e ao exigir que seja informado o registro de uso a terceiros. Assim como no Brasil, as reclamações dos usuários devem ser atendidas por canais de comunicação apropriados, proporcionando ao titular acesso à correção ou exclusão de dados, à cópia dos dados, entre outros direitos.

Nos últimos anos, a China tem produzido várias regulamentações sobre tecnologias de Inteligência Artificial e se prepara para formular um Marco Regulatório de IA nos próximos anos. Com isso, a China se tornou um dos principais players de pesquisa em IA com um amplo arcabouço regulatório, que não pode ser simplesmente ignorado, independentemente da ideologia ou burocracia estatal chinesa.

A legislação chinesa, que deve entrar em vigor no dia 15 de agosto, afirma que visa incentivar essa tecnologia com cooperação local e internacional. Vale lembrar que a China possui seus próprios players desenvolvendo esta tecnologia.

A China é pioneira em várias leis na área de IA, como a Lei de Proteção de Informações Pessoais, a Lei de Segurança de Dados e as Disposições Administrativas sobre Algoritmos de Recomendação em Serviço de Informação Baseados na Internet, dentre outras. Com a ambição de se tornar líder global em IA até 2030, o país vem realizando esforços significativos para impulsionar esta tecnologia, contribuindo com 8,9% do investimento mundial, o que equivale a mais de US$ 26 bilhões.

Apesar do controle do governo chinês sobre os sistemas de IA, o ecossistema regulatório do país proporciona uma nova perspectiva sobre a regulamentação da IA Generativa. Sem dúvida, isso terá impacto nas questões relacionadas à violação dos direitos fundamentais de imagem e privacidade dos usuários, bem como responsabilidades no âmbito tecnológico. Essas questões são de interesse direto para desenvolvedores, cientistas, governos e a sociedade do Ocidente.A nova regulamentação chinesa já contempla princípios éticos para os sistemas generativos de IA enfatizando preocupações com conteúdo discriminatórios e inverídicos - saídas indesejadas que também são destacadas na recente legislação da União Europeia, o IA Act. No universo tecnológico, a busca por uma regulamentação consensual tem potencial para superar restrições oriundas de políticas antagônicas e competições estratégicas, visando o benefício coletivo. Há quem advogue, inclusive, pela criação de uma agência reguladora global.

É fundamental que o Ocidente mantenha uma visão aberta para considerar as leis e regulamentos chineses sobre IA generativa, uma abordagem que pode ser extremamente vantajosa para o aprendizado com base nas experiências deste país, desconsiderando-se  as diferenças políticas e legais. O cenário ideal envolve uma união que beneficie todos, promovendo o desenvolvimento conjunto de ferramentas para a mitigação de riscos em prol de toda a humanidade.Encorajamos uma visão que convide todos a reconsiderar as possíveis contribuições que a China pode oferecer à regulação global de tecnologia, mesmo diante das diferenças ideológicas e políticas existentes. Este é um tema complexo e multifacetado, que envolve a avaliação das práticas regulatórias chinesas e o contexto no qual estão inseridas.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

Disponível aqui.

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Colunistas

Fabio Rivelli é advogado, sócio do escritório Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA); Doutorando em Direito pela PUC-SP, Mestre em Direito PUC-SP; MBA pelo INSPER, Pesquisador efetivo registrado no CNPq pela PUC-SP no grupo de Pesquisa do Capitalismo Humanista e ESG à Luz da Consciência Quântica, Palestrante da Sorbonne de Paris pelo terceiro ano consecutivo; Secretário-adjunto do Instituto do Capitalismo Humanista; DPO Setorial da Subseção Guarulhos da OAB/SP, Presidente da Comissão de Gestão Inovação e Tecnologia da OAB/SP - Subseção de Guarulhos (gestão até 2024); Coordenador adjunto em bioética e governança corporativa da Comissão de Privacidade de Dados e IA da OAB-SP; professor e autor de livros.

Ricardo Freitas Silveira é sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados. Doutor e Mestre em Direito pelo IDP – Instituto Brasileiro de Ensino,Desenvolvimento e Pesquisa.Especialista em gestão de contencioso de volume pela FGV e gestão de departamentos jurídicos pelo Insper.Especialista em Negócios Sustentáveis pela Cambridge University.Autor do livro "Análise Preditiva e o Consumidor Litigante".Professor convidado da Saint Paul, FIA, EDP, EBRADI e PUC-PR para cursos de pós-graduação.Coordenador da pós-graduação LEGALE em Gestão de Escritórios e Departamentos Jurídicos.Coordenador do núcleo de privacidade, proteção de dados e inteligência artificial da ESA SP.Membro consultor da Comissão de Acesso à Justiça da OAB Federal.Eleito pela Revista Análise nos anos de 2020, 2021 e 2023 como um dos Advogados Mais Admirados do Brasil em Direito Digital.