De que forma o surgimento de novas formas de representação do mundo, no sentido de um empoderamento através e por meio das tecnologias, não apenas vendo o lado negativo e os problemas, mas alternando o foco no sentido de encontrar uma solução para os problemas que as novas tecnologias nos colocam em conjunto com a crise ambiental e de sentido, podem contribuir para uma multiplicidade de alternativas?
Como expõe Yuk Hui ("Technodiversity", Ubu Editora, 2020, p. 154), o reconhecimento da existência da cosmotécnica, da diversidade técnica, podem ajudar no empoderamento ao invés do enfraquecimento humano? Ou tal visão seria utópica demais, ao se considerar que qualquer modelo e espécie tecnológica estariam aprisionadas dentro do sistema poder-saber, envolvidas nas redes de poder, restando muito pouco espaço para a resistência, mesmo sabendo que onde há poder também há resistência (Deleuze)? A realidade virtual (XR) seria como sonhar com os olhos abertos, gerando uma intensa experiência que seria absorvida e experienciada como “presença”? (Kai-Fu Lee. “AI 2041”. Ebbok, Apple). Tais questões são inseparáveis, a ética da IA e a dinâmica do poder, já que o poder “providencia os meios para influenciar quais casos são relevantes, quais problemas são prioritários e a quem as ferramentas, os produtos e os serviços são feitos para servir” (JOHNSON, Khari. AI ethics is all about power. Em https://venturebeat.com/2020/02/21/google-launches-tensorflow-library-for-optimizing-fairness-constraints/, 2019. Acesso: 10/08/2021).
Como o resistir poderá perdurar no tempo e se multiplicar permanecendo resistência e não ser aglutinada no sistema dominante, retroalimentando o sistema, virando também um produto de consumo? O dobrar, a superdobra no sentido de se pensar o lado de fora, uma nova linha de fuga, a experiência do fora como uma forma de resistência, trazendo a possibilidade de novos devires. Uma reconversão do pensamento (metanoia) é do que se trata, no sentido de se escapar do modo de ser do discurso da representação, e trazer a possibilidade de novas subjetividades. Buscar a experiência do fora no sentido de colocar o sujeito como objeto para si mesmo, projetado para fora de si, e com isso conseguir voltar a si mesmo, através de um esquecimento.
Para Foucault, a resistência é uma ação política revolucionária, capaz de questionar ou pelo menos refletir e ter consciência sobre os regimes de verdade e dispositivos de poder, sendo o artista considerado como um intercessor. Intercessor, nos dizeres de Gilles Deleuze, é o movimento, a força da alavanca, ao contrário da força da onda, que logo se esvai. O intercessor é aquela figura (na filosofia, nas artes, nas ciências) que, mediante o que pensa, o que cria ou inventa, instala, no cenário da vida, um distúrbio, à altura de forças um passo à frente. Em outros termos, o intercessor obriga, por sua intervenção, a romper a cômoda realidade regida pela lógica, instaurando um terceiro modo de ver e de ler a trama dos acontecimentos, o enredo da vida.
Quais são os fundamentos e bases epistemológicas e hermenêuticas para pensar tais questões, por um lado, respeitando as diferenças, numa perspectiva multicultural e, por outro lado, como estabelecer os fundamentos e marcos teóricos para a regulamentação harmônica das tecnologias digitais em nível internacional? Quais são as possíveis bases epistemológicas e hermenêuticas para se repensar a relação da técnica com os humanos?
Desta forma, procuramos observar e compreender o objeto de estudo em questão de outra perspectiva, de outro ponto de vista, mas, sobretudo, através de uma visão não polarizada, não dualista e não representativa, mas sim holística e inclusiva, a fim de repensar ambivalências e contradições.
A tecnologia muda a cultura, o ser humano e o conceito de ser humano, e com isso o conceito do que significa continuar sendo humano. Vivemos em uma condição pós-moderna, em uma sociedade pós-moderna, na pós-modernidade, na sociedade da informação ou sociedade informacional, sociedade de dados, e passamos da fase da histórica à fase hiperhistórica, (FLORIDI, Luciano. "The Logic of Information: A Theory of Philosophy Philosophy as Conceptual Design", Oxford: OUP, 2019). Na fase da hiper-história, o nosso bem-estar cada vez mais depende das tecnologias de informação e comunicação (TIC), o que difere da fase histórica, na qual apenas nos relacionávamos com tais tecnologias, já havendo pessoas que afirmam que suas vidas estão agora completas após um novo modelo de Iphone ser lançado no mercado. Em tal fase, há um excesso de informação, com uma redução de nossa capacidade reflexiva e do conhecimento, já que estes demandam tempo, e estamos aprisionados na velocidade alucinante e exponencial dos tempos atuais.
As tecnologias da informação e comunicação se tornam forças ambientais, antropológicas, sociais e interativas, criando e moldando nossa realidade e autocompreensão, modificando a forma como nos relacionamos uns com os outros e com nós mesmos, e a forma como interpretamos o mundo.
O que é o ser humano, pergunta formulada por Sócrates a Alcibíades, retratada por Platão em uma de suas obras (Platão, Alcibíades, I, 129E)? Um conceito que é mutável através do tempo e das culturas, e também alterado pela tecnologia, que por sua vez também muda a cultura e todas as outras manifestações sociais. Qual seria então o conceito de ser humano adequado para a 4ª revolução e a época "onlife", diante de uma realidade e história gamificadas?
Diante da insuficiência do homem prático (homo practicus/homo index), inundado por avalanches de informações que comprometem sua capacidade interpretativa e sensível, informações que substituem corpos e coisas, memórias e rituais, precisamos repensar as bases epistemológicas, hermenêuticas, ontológicas e fundacionais de nossa nova realidade.
A memória possui um valor essencial de resistência, como aponta Foucault (“Ditos e escritos”, vol. III, p. 386-387), sendo um importante fator de luta (é, de fato, em uma espécie de dinâmica consciente da história que as lutas se desenvolvem), então, se a memória das pessoas é mantida, mantém-se seu dinamismo, sua experiência, seu saber sobre as lutas anteriores.
Segundo Santaella, a plasticidade implicada na rápida adaptação da memória humana está nos tornando simbio'ticos com nossos computadores, na convivência com sistemas interconectados que nos levam a saber menos sobre o conteúdo específico das informações em contrapartida ao muito que possamos a saber (SANTAELLA, Lucia, “Culturas e artes do pós-humano: da Cultura das Mídias à Cibercultura”, Paulus Editora; 1ª. Edição, 2003).
Diante da insuficiência do “homo linguisticus” de Barthes, com seu "eu" fora de si mesmo, permanecendo na linguagem, depois que a linguagem deixou a equação, para onde o sujeito foi expulso?
Uma nova forma surge, o “phylum maqui'nico”, termo forjado por Gilles Deleuze e Felix Guattari, mencionando o silício no agenciamento contemporâneo homem-natureza (DELEUZE, Gilles. “Foucault”, Editora Brasiliense, 1988, São Paulo). Um novo Super-Homem, um “Ubermensch”: o Objeto? O homo poiético?
“Cibercultura", "pós-humanismo", "singularidade" e outros termos famosos atualmente podem ser entendidos como tentativas de dar sentido ao nosso novo tempo. A era da 4ª revolução industrial, da indústria 4.0 ou da era do silício, com a superação da era do carbono, no “Império Cibernético”, quando chegamos ao pensamento-máquina, vem caracterizada principalmente pelo uso da inteligência artificial em todos os setores de nossas vidas, com crescente intensidade de interconexões técnicas de todos os tipos. Luciano Floridi fala em “pan-computacionalismo”, já que, em um determinado nível de abstração, qualquer coisa pode ser apresentada como um sistema de informação (Luciano Floridi, "Problemas abertos na filosofia da informação". Metafilosofia, v. 35, n, 4, pp. 554-582 et seq.), e assim qualquer coisa, como nós seres humanos podem ser calculados, em uma análise preditiva voltada à máxima eficiência e produtividade.
A digitalização generalizada, impulsionada pela inteligência artificial, impacta a construção do direito, redimensionando questões relacionadas ao direito privado e ao direito público, os direitos humanos e os direitos fundamentais. Como ressalta Nestor Garcia Canclini, em seus livros "Hybrid Cultures" e "Ciudadanos reemplazados por algoritmos" (Bielefeld University Press, 2019, p. 10-18) ocorre o advento da governabilidade algorítmica, tornando o espaço público opaco e distante. A cidadania é radicalizada, enquanto alguns setores se reinventam e ganham batalhas parciais, como a luta pela igualdade de gênero, embora os usos neoliberais das tecnologias aprofundam as desigualdades crônicas do capitalismo.
Partiremos então da reconsideração da filosofia e de seu papel ético, não apenas como uma prática teórica, mas uma prática capaz de trazer modificações ou contribuir para modificações da realidade, unindo-se a prática e a teoria.
Como tocar as margens do impensável e do inominável, no sentido da construção e um pensamento filosófico próprio, autóctone, por não envolver apenas a reprodução do já falado antes, e continuar o caminho do pensamento, fazendo um experimento com a linguagem e pensamento, em uma linguagem poética do pensamento.
Como se daria uma filosofia da IA, da informação com base nos valores construcionistas do “Homo eroticus poeticus”?
A recuperação de Eros através da recuperação do outro, e, portanto, da diferença seria ainda possível em nossa sociedade do positivo? Eros que se manifesta no Outro está quase morto, com a morte ou exclusão do outro e de sua negatividade em nossa sociedade da performance, que contraditoriamente apaga os rituais e as memórias, e assim passamos de seres de relação para seres autocentrados, onde não há a negatividade do outro para se opor a nós mesmos. Por isso para Byung-Chul Han vivemos na era do pós-imunológico, um excesso de positividade do mesmo, matando a negatividade e a diferença, sendo o Outro que permitiria que nosso corpo produzisse anticorpos.
Diante da nova cultura eletrônica e novas formas de arte, como arte generativa, arte computacional, arte digital, 3DP-Art, com processos de impressão 3D e prototipagem, R-ART, criação de robôs artísticos, e VR-Art, imersão em um mundo criado totalmente via computador, entre outras modalidades, a arte provavelmente já se transformou em algo totalmente outro, abandonando seus conceitos e características tradicionais. Tudo já havia virado arte com o Pop Art, como se observa das obras de Andy Warhol, e agora tudo virando informação, teremos a totalização da arte. Arte total?
Qual a relação entre IA, criatividade e arte? Podem as artes produzidas por inteligência artificial serem consideradas arte, a exemplo de arte generativa, quando esta é criada independentemente de qualquer intervenção humana, quanto ao output, a exemplo do “AARON” criado por Harold Cohen, produzindo pinturas diretamente dos algoritmos de IA, ou seja, no sentido do ser humano não controlar e não prever o futuro do output, fugindo do seu controle? O que o aparelho enxerga? O que o acaso na arte computacional através de uma proposta de aparatos com “memórias” poderá nos desafiar em jogos de criatividade?
Como a arte produzida em co-autoria entre homem-máquina poderá ser vista de forma “positiva”, no sentido de uma complementação ou majoração da criatividade humana?
Não se trata de trazer então uma visão pessimista e distópica, em comparação com uma utópica, pois a dualidade é bem mais pobre do que a multiplicidade, mas de procuramos a lógica diagonal, na linha de Michel Foucault em seu “Teatro Filosófico”, na linha de uma polifonia, quando a diferença estaria libertada.
Mesmo porque, quando se fala que a IA irá substituir o ser humano em diversas atividades profissionais, também isto, segundo alguns, poderia ser visto como “positivo”, já que teríamos mais tempo disponível sem se preocupar com o trabalho, e assim aproveitar o ócio “criativo”, mesmo que sem reflexão e sem busca por um maior conhecimento ou cultura, apenas com diversão e gamificação, já que o universo virtual nos preencheria de emoções mais intensas e gratificantes. Ante o atual reconhecimento de um corpo real ligado a um corpo virtual, conectado ao mundo por meio de um fluxo de ele'trons, nosso corpo e nossa mente sa~o redimensionados, perdemos a refere^ncia tempo e espac¸o.
Mas, o que iremos fazer de fato com o tempo disponível e em “maior liberdade”. O conceito de liberdade se acha em questão, pois esta envolve deliberação autônoma, responsabilidade e vínculo com o Outro, o que para alguns filósofos já seriam fatores em extinção. Mais tempo disponível para ficar mais e mais em plataformas digitais e no Metaverso e em jogos de realidades virtuais, com a total gamificação da vida, levando outras vidas, mesmo que não vividas, sonhadas, mas representadas algoritmicamente?
A arte produzida por IA, mesmo que acompanhada da criatividade humana em co-participação, poderá ser qualificada como uma criação de uma narrativa, mesmo que quantificada e calculada? A arte considerada como forma de conhecimento poderia ser produzida por uma IA que trabalha com o excesso de informações e não é capaz ainda de um verdadeiro conhecimento, trabalhando apenas com regras e não com princípios, ou seja, sem uma análise adequada valorativa, já que para tanto englobaria uma série de qualidades propriamente humanas? Mas, não seria a própria arte uma forma de conhecimento?
É possível uma arte que não esteja relacionada à poiética, à poiesis, aos valores construcionistas do Homo eroticus poieticus? É possível uma arte produzida a partir de bits, números, cálculos, que não mais nos dialogue com a incompletude, e que nos faça sentir o assombro, o êxtase, que nos faça ficar de joelhos como dizia Hegel o que estava bastante presente na arte trágica? Por isso Hegel teria mencionado o fim da arte, não mais possível para se capturar o movimento e a complexidade do espírito humano, com o advento do Cristianismo, quando então a arte perde sua relação com o espirito humano e passa apenas a ser mera recreação, entretenimento e forma de decoração do ambiente.
Uma arte aprisionada em uma mentalidade voltada para a eficiência e rapidez e vinculada à representação, no sentido de seus efeitos de questionamento, crítica, nos ajudaria a refletir sobre nós mesmos e nossa condição existencial, a refletir sobre nossa relação com a técnica e no que esta nos afeta? Uma arte morta e não vinculada às potências da vida, pois não produzida por um ser vivente?
Aqui trazemos mais questionamentos e provocações do que respostas, pois estas também já nos são fornecidas mais facilmente pela IA, sendo de se considerar as respostas apenas como alternativas dentre as demais possíveis, um ponto de partida para inúmeras outras possibilidades, assim como o conceito. Talvez precisemos reconsiderar e redesenhar nosso vocabulário conceitual e nossas formas de dar sentido e fazer sentido ao mundo (nossos processos e práticas de semantificação), o que, por exemplo, poderia ocorrer ao reconhecer a capacidade da IA em fazer atribuições semânticas de sentido e ao produzir narrativas.
Há que se falar em criatividade sem o “logos”, sendo este o que nos faz humanos e distintos dos demais animais políticos, na formulação clássica de Aristóteles, como abelhas e lobos, substituído pelo calcular, mesmo sendo o cálculo uma eterna repetição do igual? O cálculo, o calcular é o oposto do pensar, pois o pensar lança-se no aberto, ao contrário de uma prévia determinação de asseguramento (em especial no sentido de uma proposta filosófica, vinculada também à zetética, opondo-se à dogmática neste sentido, por se pautar pelo questionar, pelo duvidar.
Daí a crítica de Karl Popper no desenvolvimento de sua filosofia da ciência, característica do racionalismo crítico, no sentido de ser o direito uma pseudociência, isto na sua versão apenas dogmática, ao contrário da zetética. A abordagem zetética diferencia-se da análise apenas dogmática, ou seja, de uma abordagem tecnicista, permitindo-se uma crítica e alargada; tal diferenciação foi trabalhada pioneiramente por Tércio Sampaio Ferraz Jr., seguindo os desenvolvimentos de Theodor Viehweg, seu professor no doutorado na Alemanha, preocupando-se mais com as perguntas, com o questionar, do que com as respostas, tidas como dogmas ou verdades absolutas, afirmando a relatividade e precariedade de todo o conhecimento (Acerca da diferença entre dogmática e zetética ver Tércio Sampaio Ferraz Júnior, “Teoria da Norma Jurídica”, Editora Atlas, 5ª. Edição, 2016, p. 21 e ss.).
Trata-se de buscarmos a recuperação do erotismo e com isso, da poiesis, da criatividade, restituindo-se o valor erótico, de Eros, para que copulemos com a linguagem, recuperando a outricidade básica da linguagem, contrária a atual vulgarização da mesma, restituindo-se o valor diacrítico e dialógico da linguagem com a valorização do outro, da diferença, do valor de indicação, de nomeação, recuperando-se, outrossim, a natureza simbólica, já que hoje em dia a linguagem se tornou mais símbolo, sendo superficial e vazia.
É preciso inventar com o corpo, com seus elementos, suas superfícies, seus volumes, suas densidades, um erotismo não disciplinar: o do corpo em estado volátil e difuso, com seus encontros ao acaso e seus prazeres não calculados”.1 Uma sociedade sem o outro é uma sociedade sem Eros. A mesma crise poderíamos ver também nas artes, uma crise de amor (Eros).
A IA e a arte produzida com a IA poderiam nos ajudar a sair da visão antropocêntrica de domínio da natureza e também da técnica como domínio e ver uma tecnodiversidade e cosmoética e cosmotécnicas, a serviço e a favor do ser humano, ou a técnica sendo também uma produção humana a que poucos terão acesso iria majorar ainda mais a percepção antropocentrista e reduzir a inclusão digital?
É possível se pensar na técnica sem ligação a uma relação de domínio e de poder, desconsiderando que ela se relaciona com os que possuem os meios de “produção” atuais, no caso do “big data” e de computadores eficientes que podem fazer a mineração de dados e extrair dai predições e outros produtos?
O mundo digital, contudo, é paradoxalmente desprovido de olhar, ao mesmo tempo em que tudo é exposto ao olhar. Apesar do panóptico digital, com sua luz por todos os lados, inclusive interior, não deixando nada escapar ao seu olhar, raramente nos sentimos contemplados ou expostos a um olhar (do Outro). O inteiramente Outro ilude qualquer previsão ou cálculo e se manifesta como um olhar, e neste olhar, nos vemos a nos mesmos.
O mundo digital carece de qualquer qualidade de olhar. As janelas são uma janela sem vista, nos protegendo do olhar. Ao sairmos, preferimos tirar selfies e fotos de todos os detalhes e instantes, ao invés de olharmos com nossos próprios olhos e aproveitar o momento presente. No virtual, e também talvez com a arte produzida por IA iremos “habitar” um espaço sem olhar, no qual não é possível nenhuma experiência do Outro, nenhum olhar do Outro relacionando-se ao erotismo, à alteridade, a Eros.
O olhar está desaparecendo em diversos níveis. Agora, o panóptico digital funciona de forma espectral, sem pontos cegos, não deixando escapar sequer os pensamentos e as emoções, os quais são também codificados e englobados em processos preditivos voltados ao consumo ou para fins políticos, ao contrário do anterior Panopticon, de Bentham, representativo da sociedade da disciplina foucaultiana, que ainda se baseava no domínio do olhar, centrado no olhar do supervisor, que tudo via sem ser visto, dissociando o ver/estar visto.
A frase mais apropriada quando se fala no Metaverso é “be all you want to be”, aproximando-se da frase mais popular durante a época dos libertinos do século XVIII, voltados para uma cultura do prazer, ridicularizando os valores do século e vivendo no excesso, qual seja “tudo é valido e tudo é permitido”. Tudo é possível.
Para Heidegger, o tudo é possível representaria uma experiência vivida [Erlebnis] em torno de uma maquinação [Machenschaft], ou calculabilidade (Berechenbarkeit) em um local onde não mais cabem questionamentos, ou seja, onde tudo é possível, o que também anunciaria o fim da filosofia, após Hegel, e no seu lugar, a cibernética, como aponta Heidegger em “The End of Philosophy and the Task of Thinking” em 1964 e na entrevista de 1966 para “Der Spiegel” (Martin Heidegger, Contribuições para a Filosofia (do Evento), trans. Richard Rojcewicz e Daniela Vallega-Neu (Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press 2012), §51, 86).
Contudo, o Metaverso é comemorado como um inventivo para a inclusão social, para uma maior igualdade, pois as pessoas se encontrariam de maneira digital, com inúmeras camadas que ampliam a experiência humana.
Com a arte computacional, eArte (arte 3D), arte produzida por IA, e arte em ambiente de realidade aumentada, tais domínios irão se separar de vez, aparentando se fundir, produzindo-se uma nova dimensão ou um destes domínios cederá totalmente à existência do mais forte? Com a realidade aumentada cria-se um estímulo exponencial de sensações, impossível de se competir com a realidade, cada vez mais vazia e sem sentido. Contudo, ao invés de resolver a causa do problema, tenta-se atacar a consequência, trazendo o risco de maior desorientação e alienação ao comprometer a capacidade de apreensão e de incorporação da experiência na dimensão mais profunda do sujeito. Em tal arte não há mais espaço para o silêncio, para o estranhamento profundo e, pois, a possibilidade de questionamento interno que seria um incentivo à transformação pessoal.
O digital representa o excesso de significado sem qualquer correspondência com significantes, e a sedução (eros) significa o excesso de significantes, que não podem ser reduzidos ao significado.
A arte relacionada à poética, e ao erotismo, é uma forma de comunicação, sendo que não há nada mais pro'ximo do erotismo do que a comunicação, a qual envolve a linguagem em contato intrínseco com o erotismo. A arte aqui que se postula, como bem apontado por Walter Benjamin, e' aquela responsa'vel por nos fazer recolher diante da obra de arte e nos abismar dentro dela, ao contra'rio da arte como simples distração e divertimento, quando seri'amos consumidos por ela.
O erotismo como a mais real forma de criatividade artística, se relaciona à arte não como divertimento, entretenimento, mas com o potencial de nos fazer maravilharmos novamente, ou nos apiedarmos, com o potencial de transformação.
É o que já propunha Aristóteles em sua Poética, prevendo a arte como forma de salvação do ser humano e através da arte, a vida (Aristóteles, Poética, trad. Eudoro de Souza. 3. ed. São Paulo: Ars Poética, 1993.) Em sentido semelhante Nietzsche, ao propor a arte como a forma mais elevada de atividade metafísica, através da qual a vida é tornada possível e digna de ser vivida, a arte que salva e pela arte a vida nos reconquista (Nietzsche, O nascimento da Tragédia, São Paulo: Editora Escala, 2013, coleção essência de Nietzsche).
A poética permitiria a presentidade, a imediatividade, saindo da linearidade, e entrando na espiral, nos aproximando do resto, permitindo uma abertura. O erotismo como a mais real forma de criatividade artística, se relaciona à arte não como divertimento, entretenimento, mas com o potencial de nos fazer maravilharmos novamente, ou nos apiedarmos, com o potencial de transformação.
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1 M. Foucault. “Ditos e escritos”, vol. III, p. 424. Somos dominados por conceitos alienantes, e em um segundo momento por imagens técnicas que nos alienam e subjugam, pois nos fazem crer serem a realidade, quando na verdade se distanciam ainda mais dela do que os conceitos. Em assim sendo, representam, como abstração matemática, um fim em si mesmo, e nos levando a cair na armadilha de estarmos presos no domínio técnico dos aparelhos, sem perceber.