Para PCG, como uma carta que, se não comunica, pelo menos encurta o tempo e a distância a nos separar (tanto mar, tanto mar).
Estamos sendo constantemente desafiados, já enquanto seres pensantes, para não dizer logo como filósofos, a nos situar em face dos mais recentes desenvolvimentos das chamadas TIC - tecnologias da informação e da comunicação. O constante aparecimento de novidades, de inovações, não propicia, a rigor, maiores surpresas, pois é uma consecução do que já de há um bom tempo se descortina como próprio da “cibernetização planetária”, tematizada explicitamente por Martin Heidegger, em escritos célebres como “A questão da (rectius: a pergunta pela) técnica” (1953) e “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento” (1964). Também já se advertira para os perigos da técnica e da sanha inovadora da modernidade - a justificar assim esta denominação -, seu principal professor, Edmund Husserl, logo após o apocalíptico, por extremamente revelador, advento daquela que então se chamou Grande Guerra e depois, com a retomada em ainda maior escala, Primeira Guerra Mundial. Postulou ser de renovação do que precisávamos (e ainda precisamos!), mais do que de inovação tecnológica, mais e mais. A virtualização crescente, a culminar no chamado “metaverso”, por exemplo, já foi vislumbrada em tal dimensão ainda no final do século passado, na obra “Cibercultura” (1997), de Pierre Lévy, o título mesmo do quinto capítulo o deixa indicado, ao se enunciar como “O ciberespaço ou a virtualização da comunicação”, havendo item dele que é ainda mais específico: “A comunicação através de mundos virtuais compartilhados”.
É certo que também na literatura, especialmente aquela dita “utópica”, às vezes “distópica” ou ainda, de “ficção científica”, já se encontrava, por assim dizer, tematizado tal desenvolvimento, da maneira mais explícita que seja de meu conhecimento na obra de Stanislaw Lem “Congresso Futurológico” (1971), vertida muito bem para o cinema em “The Congress” (2014), assim como fora outra de suas obras, “Solaris” (1961), por Tarkovski (1972) e também em Hollywood (2002) – nesta podemos reconhecer uma variação do quanto se tem em “Star Maker” (1937), de Olaf Stapledon, considerado “pai da ficção científica moderna” (https://jonathanrosenbaum.net/2022/01/olaf-stapledon-the-father-of-modern-science-fiction/), sendo que seu autor era um professor de filosofia que transpunha para esse seu livro, assim como o anterior, “Last and First Man” (1930), tratando dessa “brief music that was man”, entre outros, suas preocupações genuinamente cosmológico-filosóficas sobre o significado da vida, em geral e, especificamente, a nossa, humana, no universo.
Outro exemplo de antecipação literária de tais desenvolvimentos contemporâneos encontramos em “A Invenção de Morel”, do argentino Adolfo Bioy Casares. Publicada em 1940, foi apontada como “perfeita”, no prefácio que para ela escreveu o conterrâneo e parceiro do A., o grande Jorge Luis Borges. A “invenção” de Morel – nome, como indica o próprio Borges, alusivo ao “Moreau” da distopia biológica de H. G. Wells, “A ilha do Dr. Moreau”, agora em versão “tecnologizada” – é uma máquina que fixa eterna e infinitamente uma semana vivida por aqueles que por ela foram “filmados”, e assim, por este efeito, mortos, para serem imortalizados. Perfeito mesmo, como metáfora do afã de infinitude, com a correspondente negação da finitude própria da vida humanamente vivida, que rege o impulso de incessante inovação tecnológica a imperar no mundo ocidentalizado da globalização nortista. Disso trata muito bem o filósofo brasileiro, professor no IFCS-UFRJ, Gilvan Fogel, em sua recente obra “Do coração máquina. A técnica moderna como compaixão do homem pelo homem” (Rio de Janeiro: Maud X, 2022), em especial no longo estudo que ali consta, inspirado no “poeta da técnica”, Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Em Bioy Casares também, no conto “Carta sobre Emilia” (1962), ao final, há observação feita “de passagem”, como se estivesse dizendo uma obviedade, mas que nos parece merecer toda a nossa atenção. Transcrevo, em seu idioma original, perfeitamente compreensível para o leitor do nosso: “no saben que toda comunicación es ilusoria y que en definitiva cada cual queda aislado en su mistério?”. Sim, a tecnologia que já é a comunicação em sua forma primeira, oral, já provoca a ilusão fundamental de sermos para além do tempo e do espaço em que nos circunscrevemos, bem como a de que por ela nos tornamos um com os outros, como os outros, assim como seriam como nós, e nos entenderíamos, total, completa e perfeitamente.
Com similar profundidade ou calibre filosófico, com as propriedades bem conhecidas e peculiares da cultura germânica, sobre o tema do metaverso e outros correlatos, tem-se o romance “Eumeswil” (1977), de Ernst Jünger, escrito em sua maturidade avançada.
Ali, dando sequência ao que se pode considerar uma trilogia, iniciada com “Nas Falésias de Mármore” (1939) – considerado uma crítica velada ao regime nazista, tolerada apenas devido à admiração de Hitler pelo autor -, a que se seguiu, no segundo pós-guerra “Heliópolis” (1949). Nesta última, já vem descrito um aparelho chamado fonóforo, claramente uma antevisão dos atuais aparelhos celulares, que permitia a todos se conectarem com todos os outros no mundo e assim, por exemplo, deliberar diretamente sobre qualquer assunto, instituindo uma “democracia planetária” (v. Parte II, cap. 3, p. 347 da 1ª. ed. alemã). Seria uma ágora eletrônica em sessão permanente, da qual se ausentam os corpos, restando uma presença enganadora, espectral, numa ágora que sendo virtual não o é propriamente (sobre o que vale consultar um conjunto de obras publicadas, sob o título geral de “A Comunidade dos Espectros”, por Fabián Javier Ludueña Romandini, bem como um seu artigo no prelo, adiante referido).
O quanto consta de “Eumeswil” se passa em um tempo ainda além, “metahistórico” e “metatécnico”, para empregar os termos mesmos empregados na obra, quando o mundo voltou a se fragmentar politicamente, após a experiência fracassada (ou esgotada) do Estado mundial: “mundo histórico que, diante da realidade da fábula, torna-se um mero espectro” (cap. 3). É quando mesmo os conservadores se mostram como “cidadãos sonhadores, que se reunem como espectros” (cap. 21), espectros que em outra passagem do mesmo capítulo são qualificados como “mais temíveis que os homens” e depois como “os verdadeiros herdeiros do último homem” (cap. 42), de notória concepção nietzschiana.
Em “Eumswil”, é certo, ainda há o fonóforo, que se tornou um marcador das diferenças de classes, ou talvez melhor dizer, de estamentos, com cores que vão desde o cinza, que só recebe chamadas, até o dourado, prerrogativa do Um, o tirano, que no livro é o personagem Condor. “Quando alguém desaparece”, escreve Martin (talvez uma homenagem ao grande interlocutor de Jünger, então recentemente falecido, quando da publicação do livro, Martin Heidegger), o narrador, “as investigações começam com um telefonema para o fonóforo. Se houver uma resposta, sabe-se que está disponível e também, aproximadamente, onde. Portanto, vou desligar o fonóforo por um bom período de tempo. Nossa existência social está esgotada nessa conexão e desconexão.” (cap. 21).
No mundo de “Eusmeswil”, entrento, há um outro aparato, bem mais potente: o “luminar”. Aqui temos um motor de busca com o qual os funcionários do Google ou da Meta sequer conseguem sonhar. E segundo nos propõe Jünger, caso sonhem com suficiente tenacidade, realizariam, pois “não fracassamos por conta de nossos sonhos, e sim por não os termos sonhado com força suficiente” (cap. 49, últ, frase). É que o luminar é capaz de dar acesso a quem o consulta não só a textos produzidos no passado, mas aos próprios eventos, por meio de um teletransporte temporal. É tido como obra de uma pós-humanidade ctônica, titânica, habitantes dos subterrâneos de um mundo, de onde acessam o espaço sideral e fornecem seus inventos aos habitantes da superfície terrestre. Ali se encontram ainda os remanescentes dos humanos, daqueles que, segundo a mitologia grega, teriam sido criados por Titãs, assim como os deuses, aos que serviram de joguete e diversão. Isso até se convencerem de haver um só Deus, com todo o poder, inclusive de se tornar humano, sofredor, mortal, prenúncio da superação de todo sofrimento e da mortalidade.
E aqui nos recordamos do alerta de Emil Cioran, do dia 4 de junho de 1969, sobre o Deus que iria substituir os deuses ser pior do que eles, concluindo que “o monoteísmo judaico-cristão é o estalinismo da Antiguidade”, bem como sua reflexão “entre parênteses” do dia 9 de março de 1971, tudo segundo registros em seus ”Cadernos” (“Cahiers” 1957 – 1972”, Paris: Gallimard, 1997, p. 736 e 912 resp., destaques do A.): “Todas as vezes que o homem esquece que é mortal, sente-se impelido a fazer grandes coisas e às vezes o consegue, mas ao mesmo tempo esse esquecimento é a causa de todos os seus infortúnios. Ninguém se eleva impunemente. Renunciar não é outra coisa senão conhecer nossos limites e aceitá-los. Mas isso vai contra a tendência natural do homem, que o empurra em direção à superação, à ruína”.
Para a invenção do luminar, além da tecnologia, amparada cientificamente, fora necessário também lançar mão dos conhecimentos de natureza mágica dos oráculos, telepatas e videntes. E assim foi possível alcançar o estado, que segundo Benjamin, na 3ª. das já referidas “Teses”, seria aquele da redenção, pois “somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour — e esse dia é justamente o do juízo final”. Mas aqui é preciso fazer intervir o aforisma de Kafka, o de número 40, de seus “Aforismas reunidos” (escritos entre fins de 1917 e começos de 1918, publicados em 1931): "Só a nossa concepção de tempo nos faz nomear o juízo final com essas palavras; na realidade ele é um tribunal permanente". É ainda deste “tribunal permanente” que se trata no mundo pós-futurista de Eusmeswil, incrementado pelos meios tecnológicos postos a serviço da aquisição e exercício do poder de domínio, da sujeição humana a outros humanos, empoderados como os velhos e perversos deuses da Antiguidade clássica.
Como nos indica o filósofo platense Fabián Javier Ludueña Romandini, em artigo intitulado “Prolegómenos para una metafísica de la Artificial Intelligence y sus consecuencias socio-políticas en el mundo por venir”, encaminhado para o quarto volumedas coletâneas que venho organizando com Paola Cantarini e outras colegas, “Direito e Inteligência Artificial: Fundamentos, vol. 4 – Por uma filosofia da inteligência artificial” (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 59) discutindo os fundamentos da inteligência artificial, Raymond Ruyer, em “La cybernétique et l'origine de l'information” (1954) já mostrava “uma percepção muito aguda de como os problemas da informação cibernética se relacionam com estruturas teológicas que buscam construir um novo Absoluto que substitua a antiga divindade onisciente”. E sobre o significado de acessarmos ao metaverso, vai concluir que equivale a “conceder a este o status de meta-realidade que redefinirá completamente as bases da realidade inicial e poderá abduzi-la completamente dentro de si”. É que estamos diante da possibilidade “da Inteligência Artificial se desenvolver como uma entidade autoconsciente”, e em assim sendo, “o caminho para uma religião sem precedentes pode abrir-se inesperadamente e, de certa forma, não é desarrazoado supor que já está em construção, minando todas as crenças anteriores da civilização terrestre, nos promotores do transumanismo da singularidade”. Eis que tal momento, para ele, com o que havemos de concordar, “exigirá a vocação do pensamento filosófico como nunca aconteceu antes”.
E como aqui pretendemos evidenciar, não esperemos que venha apenas ou mesmo de qualquer forma do que se reconhece como filosofia, tal “pensamento filosófico” ou, simplesmente, “pensamento”, o que continua ecoando indefinidamente mesmo após o fim da filosofia, segundo Heidegger. Pode vir, estar ou já ter vindo da literatura ou de qualquer outra forma poética, aí incluíndo-se música, dança, teatro, religiões, mitologias etc. etc.