Gramatigalhas

Voz passiva: quando é possível?

Voz passiva: quando é possível?

13/5/2009


A leitora Adriana Marinho envia a seguinte mensagem ao Gramatigalhas:

"Tenho dúvida quanto à questão n° 6 da última prova realizada pelo TRF: 

 

6 - A construção que admite transposição para a voz passiva é:


a) Cresce a olhos vistos a oferta de produtos associados à juventude.

b) São inúmeras as consequências dessa idolatria.

c) As leis do mercado favorecem esse culto da juventude

d) A juventude deixou de ser uma fase da vida.

e) Resulta disso tudo uma espécie de código comportamental."

1) Uma leitora, ao tentar resolver uma prova do Tribunal Regional Federal, teve dúvida sobre qual dos seguintes exemplos admite transposição para a voz passiva: I) Cresce a olhos vistos a oferta de produtos associados à juventude; II) São inúmeras as conseqüências dessa idolatria; III) As leis do mercado favorecem esse culto da juventude; IV) A juventude deixou de ser uma fase da vida; V) Resulta disso tudo uma espécie de código comportamental.

2) Para solucionar adequadamente a questão, deve-se partir do princípio de que, conceitualmente, voz ativa e voz passiva são duas maneiras sintaticamente diversas de dizer a mesma realidade de fato; no primeiro caso, o sujeito pratica a ação indicada pelo verbo, e, no segundo, o sujeito a recebe: I) "O magistrado proferiu a sentença" (voz ativa, porque o sujeito magistrado pratica a ação indicada pelo verbo proferir); II) "A sentença foi proferida pelo magistrado" (voz passiva, porque o sujeito sentença recebe a ação indicada pelo verbo proferir – no caso, na locução verbal foi proferida).

3) Da análise sintática do exemplo dado, vê-se, sem muito esforço de exegese, que o objeto direto da voz ativa torna-se sujeito da voz passiva, e o que era sujeito na voz ativa passa a ser o agente da passiva.

4) Por essa observação, extrai-se, em corolário, a ilação de que só tem voz passiva um verbo transitivo direto ou transitivo direto e indireto (bitransitivo). Caso contrário, não há na voz ativa um termo que possa ser o sujeito da voz passiva.

5) Bem por isso, a frase "O juiz não gostou do depoimento" não tem voz passiva. O termo do depoimento é objeto indireto, e não há, na voz ativa, objeto direto que possa vir a ser o sujeito da voz passiva.

6) Com essas premissas, veja-se a primeira frase da consulta ("Cresce a olhos vistos a oferta de produtos associados à juventude"): I) sua ordem direta (sujeito + verbo + complementos) é "A oferta de produtos associados à juventude cresce a olhos vistos"; II) o sujeito é "A oferta de produtos associados à juventude"; II) o verbo é cresce; III) a expressão "a olhos vistos" é um adjunto adverbial; IV) constata-se que não há objeto direto; V) assim, pelas premissas lançadas, o exemplo não admite transposição para a voz passiva.

7) Considere-se o segundo exemplo ("São inúmeras as conseqüências dessa idolatria"): I) sua ordem direta é "As conseqüências dessa idolatria são inúmeras"; II) o sujeito é "as conseqüências dessa idolatria"; III) o verbo é são (o verbo ser é chamado verbo de ligação, porque liga uma qualidade ao sujeito; IV) – porque, no caso, o verbo ser é de ligação, seu complemento (inúmeras) é um predicativo do sujeito; V) com verbo de ligação não há objeto direto; V) assim, pelas premissas lançadas, o exemplo dado também não admite transposição para a voz passiva.

8) Atente-se ao terceiro exemplo ("As leis do mercado favorecem esse culto da juventude": I) o exemplo já está na ordem direta (sujeito + verbo + complementos); II) o sujeito é "as leis do mercado"; III) o verbo é favorecem; IV) "esse culto da juventude" é o objeto direto; V) porque tem verbo transitivo direto, o exemplo admite transposição para a voz passiva; VI) confira-se como fica o exemplo na voz passiva: "Esse culto da juventude é favorecido pelas leis do mercado".

9) Observe-se o quarto exemplo ("A juventude deixou de ser uma fase da vida"): I) o exemplo já está na ordem direta; II) o sujeito é a juventude; III) o verbo é uma locução (deixou de ser), em que o principal é ser, um verbo de ligação; IV) como se viu anteriormente, o complemento de verbo de ligação é um predicativo do sujeito; V) a análise do exemplo mostra que nele não há objeto direto; V) e, pelas premissas lançadas, se não há objeto direto na voz ativa, o exemplo não admite transposição para a voz passiva.

10) Chega-se, por fim, ao último exemplo ("Resulta disso tudo uma espécie de código comportamental"): I) a ordem direta é "Uma espécie de código comportamental resulta disso tudo"; II) o sujeito é uma espécie de código comportamental; III) o verbo é resulta; III) disso tudo é o objeto indireto; IV) como não há objeto direto na voz ativa, o exemplo não admite transposição para a voz passiva.

11) Resolvida a questão da consulta, acresce dizer, como exceção, que o verbo obedecer, embora transitivo indireto, tem voz passiva por questões históricas: a) "A suposta vítima não obedeceu ao comando policial" (voz ativa); b) "O comando policial não foi obedecido pela suposta vítima" (voz passiva).

12) Também se anota que alguns verbos, num sentido, são transitivos diretos e, noutro sentido, transitivos indiretos: I) "O advogado assiste o cliente" (no sentido de ajudar, é transitivo direto); II) "O advogado assiste ao espetáculo" (no sentido de ver, presenciar, é transitivo indireto).

13) Quanto a esses verbos que mudam de transitividade conforme o sentido, fixa-se-lhes a regra de que apenas admitem transposição para a voz passiva quando são transitivos diretos: I) "O cliente foi assistido pelo advogado" (admite emprego na voz passiva, porque, no sentido de auxiliar, o verbo assistir é transitivo direto); II) "O espetáculo foi assistido pelo advogado" (exemplo equivocado e errôneo, já que, sendo transitivo indireto nesse sentido, o verbo assistir não admite transposição para a voz passiva).

14) Embora haja autores que insistam em apassivar verbos dessa última acepção, mesmo quando transitivos indiretos, os gramáticos, de um modo geral, têm mantido a posição de obediência à regra acima fixada.

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.