Na semana passada, atendendo a um pedido de uma leitora, a coluna Gramatigalhas trouxe a análise de diversos aspectos peculiares ao pronome de tratamento. Alguns leitores, todavia, reclamaram que não foi atendido o seguinte trecho do pedido:
"Tenho visto cada vez mais a utilização do pronome oblíquo átono 'lhe' na segunda pessoa do singular, como uma espécie de substitutivo formal do pronome 'te'. Assim ao invés de se dizer 'Eu vou te enviar um relatório', dizem 'Eu vou lhe enviar um relatório'. Na língua francesa utiliza-se o 'vous' para as frases formais e o 'tu' para as informais. É correta a utilização do 'lhe' na segunda pessoa do singular para frases formais?"
Além disso, em relação ao Migalhas 1.032, o leitor Fernando B. Pinheiro, do escritório Pinheiro e Bueno - Advogados, enviou a seguinte mensagem:
"Sugiro uma revisão por Gramatigalhas da frase do Doutor André Smith de Vasconcellos Suplicy ('Não creio que achariam o fato hilário se fosse com vossas mães'), que mistura a 2ª com a 3ª pessoa do plural em tão poucas palavras. Seria isto um erro de concordância?"
1) É de regra que, na fala e na escrita, o pronome escolhido para tratamento das pessoas espraie seus efeitos para todos os elementos envolvidos.
2) Assim, se se trata o interlocutor por vós, além de concordarem os verbos nessa pessoa, só se podem usar os pronomes oblíquos e os pronomes possessivos que a ela correspondem (vos, convosco, vosso, vossa, vossos, vossas); se, por outro lado, a pessoa for tratada por tu, os pronomes oblíquos haverão de ser teu, tua, teus, tuas (jamais seu, sua, seus, suas, não podendo, assim, haver mistura de pronomes). Exs.:
a) "Se você quer, vou até teu gabinete" (errado);
b) "Se você quer, vou até seu gabinete" (correto);
c) "Se tu queres, vou até seu gabinete" (errado);
d) "Se tu queres, vou até teu gabinete" (correto);
e) "Vou te contar uma coisa para você..." (errado).
3) Nesse exato sentido se dá a lição de Vasco Botelho de Amaral: "Misturar pronomes ou formas verbais na segunda pessoa do plural com pronomes ou formas verbais da terceira constitui um erro crasso".1
4) Em outra obra, o referido autor é ainda mais didático acerca do problema analisado: "Certa carta de um conhecido ministro estrangeiro publicada nos jornais portugueses, entre outros deslizes de tradução apresentava este: 'Foi com grande pesar que recebi a vossa decisão de não aceitar o cargo que lhe ofereci na remodelação do Ministério...' Onde se pôs vossa, devia estar evidentemente - sua. O inglês your não corresponde só a vosso, vossa, vossos, vossas; deve traduzir-se, não só às vezes por teu, tua, teus, tuas, mas, como ali na carta, por seu, sua, seus suas, de V., de V. Exa., etc".2
5) Não menos clara é a lição de Júlio Nogueira: "Não há, pois, redigir frases em que, sendo tu a forma de tratamento, se usem em relação à mesma os possessivos seu, sua e as variações o, a, lhe".3
6) No exemplo trazido pelo leitor, vê-se que o sujeito de achariam é vocês (o qual, embora da segunda pessoa do discurso – aquela com quem se fala – leva o verbo para a terceira pessoa); apesar disso, traz-se, mais ao final, o pronome vossas, que só poderia referir-se a um vós (inexistente no caso). Há, portanto, no período, um erro de concordância, já que não se guarda a uniformidade do tratamento.
7) Tecnicamente, a correção do exemplo pode dar-se de dois modos:
a) “Não creio que acharíeis o fato hilário se fosse com vossas mães” (os interlocutores estariam sendo tratados por vós);
b) “Não creio que achariam o fato hilário se fosse com suas mães” (os interlocutores estariam sendo tratados por vocês).
8) Em termos práticos, como não é comum que, no linguajar diário, se tratem interlocutores por vós, a opção normal de uso deve ficar para o segundo modo de expressão.
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1 Cf. AMARAL, Vasco Botelho de. Problemas da Linguagem e do Estilo. Porto: Livraria Simões Lopes, 1948. p. 287.
2 Cf. AMARAL, Vasco Botelho de. A Bem da Língua Portuguesa. Lisboa: Edição da Revista de Portugal. 1943. p. 177.
3 Cf. NOGUEIRA, Júlio. A Linguagem Usual e a Composição. 13. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1959. p. 75.