Gramatigalhas

Você: segunda ou terceira pessoa?

Pronome de tratamento - concordância verbal.

22/10/2008

A leitora Patrícia Alves de Sousa Oliveira envia a seguinte mensagem ao Gramatigalhas:

"Minha dúvida é a seguinte: 'você': segunda ou terceira pessoa? Obrigada pela atenção."

1) Entenda-se, por primeiro, que você é uma forma abreviada a que se reduziu, ao longo dos tempos, a expressão Vossa Mercê. Com o passar dos anos, veio vosmecê, a variante vassuncê e, por fim, você. A lei do menor esforço, que rege a fala das pessoas, já faz com que as pessoas digam ocê e até mesmo ce: "Cê trouxe o livro?"

2) Como pronome de tratamento, também chamado pronome de reverência, é a maneira formal para se dirigir com respeito a determinadas pessoas. É um daqueles pronomes "usados no trato cortês e cerimonioso". [1] Ex.: "Sua Excelência, o presidente do Tribunal de Justiça, honrou-nos com sua visita".

3) No uso dos pronomes de tratamento, quando se fala diretamente à pessoa tratada ("pessoa com quem se fala!"), usa-se "vossa”; quando, porém, se faz referência à pessoa tratada, mas se conversa com outrem ("pessoa de quem se fala"), emprega-se "sua". Exs.: a) "Vossa Excelência, senhor Deputado, é muito corajoso" (quando se fala com a autoridade); b) "Sua Excelência, o Deputado Araújo, de quem lhe falei há pouco, é muito corajoso" (quando se fala da autoridade).

4) Em outras palavras: "se a pessoa, a quem se refere o tratamento, está ausente, isto é, se, em vez de ser o interlocutor (segunda pessoa), for o assunto (terceira pessoa) – a pessoa de quem se fala – então se empregará o [pronome] adjetivo Sua, e não Vossa". [2]

5) De maneira específica para o caso apreciado, sendo você uma forma abreviada de Vossa Mercê, é de rigor concluir, de começo, que ele é um pronome da segunda pessoa ("pessoa com quem se fala").

6) Quanto à concordância verbal, embora se trate de pronome da segunda pessoa (com quem se fala), o pronome de tratamento precedido de vossa (e aqui se enquadra o você) leva o verbo e os demais pronomes para a terceira pessoa. Exs.: a) "Vossa Excelência foi traído por seus próprios assessores" (correto); b) "Vossa Excelência fostes traído por vossos próprios assessores" (errado); c) "Você foi traído por seus próprios assessores" (correto); d) "Você fostes traído por vossos próprios assessores" (errado); e) "Você foste traído por teus próprios assessores" (errado).

7) Anota Carlos Góis que essa peculiaridade do português – de empregar a terceira pessoa pela segunda, com os pronomes de tratamento seguindo em mesma esteira – existe também no italiano. [3]

8) Tal autor também observa, de modo curioso, que não se há de falar, no caso, em concordância verbal, mas em discordância do verbo, que é "a não conformidade literal da flexão do verbo ao número, ou à pessoa do seu sujeito", e isso porque, embora se refira à segunda pessoa (o interlocutor ou a pessoa com quem se fala), o verbo "acomoda-se à flexão da terceira pessoa". [4]

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[1] - Cf. SACCONI, Luiz Antônio. Nossa Gramática. São Paulo: EditoraModerna, 1979, p. 62.

[2] - Cf. GÓIS, Carlos. Sintaxe de Concordância. 8. ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1943, p. 55.

[3] - Cf. GÓIS, Carlos. Sintaxe de Concordância. 8. ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1943, p. 91.

[4] - Cf. GÓIS, Carlos. Sintaxe de Concordância. 8. ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1943, p. 114-115.

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.