Gramatigalhas

"Não se deve dizer tais coisas"

Construção correta de frases. Veja dicas!

15/10/2008

O leitor G. M. envia ao Gramatigalhas a seguinte mensagem: 

"O sr. poderia esclarecer-me qual a forma correta: I) – 'Note como se pode eliminar quatro palavras'; II) – 'Note como se podem eliminar quatro palavras'? Devo seguir a regra geral, isto é 'Quatro palavras podem ser eliminadas', do que resulta 'Note como se podem eliminar quatro palavras'?"

1) A questão é saber qual a construção correta: "Não se deve dizer tais coisas", ou "Não se devem dizer tais coisas"?

 

2) De acordo com Vitório Bergo, "em frases deste modelo, o verbo dever constitui, em regra, auxiliar do infinitivo que se lhe segue, sendo que a partícula se apassiva o todo verbal. Destarte, concorda aquele com o substantivo a que se refere o infinitivo e que é, em uma, o seu sujeito"1; em outras palavras, para tal autor a única forma correta seria: "Não se devem dizer tais coisas".

 

3) Anote-se, porém, que ambas as estruturas estão corretas, mas cada qual delas tem uma explicação própria2, devendo-se realçar, desde logo, que ambas estão na voz passiva.

 

4) No primeiro exemplo ("Não se deve dizer tais coisas"), o verbo da oração principal é deve, e o seu sujeito é oracional – dizer tais coisas - , aspecto esse que facilmente se percebe, quando se põe o período em ordem direta ("Dizer tais coisas não se deve"), ou mesmo quando se passa o exemplo, que está na voz passiva sintética, para a voz passiva analítica ("Dizer tais coisas não é devido"). Observa-se que, sendo fraseológico o sujeito, deixa ele o verbo no singular, e se acrescenta, apenas para complementar, que o se, no caso, é partícula apassivadora.

 

5) No segundo exemplo ("Não se devem dizer tais coisas"), a expressão devem dizer é uma locução verbal (sendo devem o verbo auxiliar e dizer o principal). O se aqui também funciona como partícula apassivadora, e tais coisas é o sujeito de uma voz passiva sintética, cuja voz passiva analítica assim se constrói: "Tais coisas não devem ser ditas". Em ambas as vozes passivas (sintética e analítica), o sujeito é tais coisas, e tal sujeito, por estar no plural, leva também o verbo para esse número, quer na passiva sintética, quer na passiva analítica.

 

6) Anote-se, todavia, para registro, a lição restritiva de Eduardo Carlos Pereira no sentido de que, em frases como a considerada, quando o verbo está no plural, as frases estão corretas, "manifestamente apassivadas pela partícula se", e tais coisas é o sujeito do verbo perifrástico.

 

7) Para tal autor, entretanto, muito embora ressalve que o emprego do verbo no singular se encontre, ainda que raramente, em alguns escritores, "tal concordância, todavia, não é segura", pois "só teria sua justificação no caso de ser o se sujeito".

 

8) Ultima ele suas observações com o lembrete de que, "em outras locuções do infinitivo, em que se vê claramente ser este o sujeito do verbo no modo finito, dá-se a concordância no singular", alinhando, dentre outros, dois exemplos de João Ribeiro: a) "Quer-se inverter leis"; b) "Intenta-se demolir aqueles muros".3

 

9) Ressalve-se, todavia, que o se jamais poderia ser sujeito em tal expressão, já que, como acentuado, em ambas as estruturas é ele partícula apassivadora.

 

10) Em continuação, o ensino de Júlio Nogueira se dá no sentido de que, muito embora se encontrem exemplos de construção no singular, é preferível, sobretudo por eufonia, a concordância no plural, além de mais habitual nos clássicos.4

 

11) Domingos Paschoal Cegalla, sem considerações teóricas acerca do assunto, considera, por um lado, "boa concordância dizer" Podem–se colher as frutas; por outro lado, refere que "também é lícito, em construções desse tipo, deixar o verbo auxiliar poder no singular: Pode-se colher as frutas".5

 

12) Em observações ao art. 52 do Código Civil – que registra: "Coisas divisíveis são as que se podem partir em porções reais e distintas, formando cada qual um todo perfeito" – Luciano Correia da Silva, atento aos aspectos até agora analisados, leciona que também se poderia dizer: "Coisas divisíveis são as que se pode partir em porções reais e distintas...".

 

13) Segundo tal autor, entretanto, a frase assim dita haveria de ficar "sem o mesmo vigor e propriedade".6

 

14) Reitere-se, por fim, ante a própria análise da divergência entre os gramáticos e as aceitáveis justificativas para as duas sintaxes, que o melhor parece ser validar, em tais casos, ambas as construções: ou com o verbo no singular, ou com o verbo no plural.

 

15) De todas essas observações vê-se que estão igualmente corretas ambas as construções: I) – "Note como se pode eliminar quatro palavras"; II) – "Note como se podem eliminar quatro palavras".

_________

1Cf. BERGO, Vitório. Erros e Dúvidas de Linguagem. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1944. Vol. H, p. 191.
2Cf. BUENO, Silveira. Português pelo Rádio. São Paulo: Saraiva & Cia., 1938. P. 123-124.
3Cf. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924. P. 220-221.
4Cf. NOGUEIRA, Júlio. A Linguagem Usual e a Composição. 13. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1959. P. 108.
5Cf. CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. P. 320.
6Cf. SILVA, Luciano Correia da. Manual de Linguagem Forense. São Paulo: EDIPRO, 1991. p. 34.

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.