Nas semanas passadas, a pedido de leitores, tratou-se, na coluna Gramatigalhas, da questão da "voz passiva" e se distinguiu, em termos bem práticos, o "se" quando empregado como "partícula apassivadora" daquele que funciona como "símbolo de indeterminação do sujeito". Alguns leitores, enquanto se publicavam tais verbetes, indagaram acerca da correção dos seguintes exemplos: a) - "Cite-se-o"; b) - "Intime-se-a"; c) - "Notifique-se-o"; d) - "Processe-se-o"; e) - "Recomende-se-o na prisão".
1) Quando se diz “Cite-se o réu”, percebe-se que, à semelhança de “Aluga-se uma casa”, o que se tem é uma frase reversível, que pode ser dita de outro modo: “O réu seja citado”; ou: “Que o réu seja citado”.
2) E, do mesmo modo como se dá na frase com que é comparada, podem-se extrair aqui as seguintes conclusões:
a) o exemplo está na voz passiva sintética;
b) o se é partícula apassivadora;
c) o sujeito é o réu.
3) Transposta a lição para o exemplo considerado, conclui-se que o pronome final o, que há na frase “Cite-se-o”, há de ser sujeito, sendo de forçosa ilação que só pode ser ele do caso reto (ele), jamais do caso oblíquo (o ou lhe).
4) A forma correta, assim, é “Cite-se ele”, jamais “Cite-se-o”.
5) Ante essas considerações, conclui-se, de igual modo, serem plenamente equivocadas outras expressões de uso corrente, tais como não se o diz, para se o conhecer, não se a vê, ouve-se-o com prazer, cortou-se-as.
6) Na lição de Eduardo Carlos Pereira, “o uso geral dos bons escritores antigos e modernos não autoriza a combinação destas formas (o, a, os, as) com o reflexivo se”.1
7) Lembra a respeito Evanildo Bechara que “a língua padrão rejeita a combinação se o, apesar de uns poucos exemplos na pena de literatos”.2
8) Recordando lição de Otoniel Mota, observa Pedro A. Pinto que à língua repugnam as formas se o e se a, porque não é possível, logicamente, “encaixar um acusativo ao lado de outro, que é o reflexo se”.3
9) Embora simples, também é firme a lição de Antenor Nascentes a respeito: “É incorreta a combinação de se com os pronomes o, a, os, as”.4
10) Não menos incisivo é o ensinamento de Júlio Nogueira: “Não se pospõem as variações o, a, os, as, ao pronome se. São solecismos grosseiros frases como: ‘Deve-se admirar aquele homem pelo cérebro; não se o deve admirar como político’ ... A correção é simples: basta suprimir as formas o, a, os, as, com o que nada perde a clareza da frase: ‘Deve-se admirar aquele homem pelo cérebro; não se deve admirar como político’... Pode-se igualmente adotar a forma determinada, pessoal: ‘Devemos admirar aquele homem pelo cérebro; não o devemos admirar como político’”.5
11) Domingos Paschoal Cegalla arrola diversos exemplos dessas seqüências pronominais condenadas (se o, se a, se os, se as). Exs.:
a) “O quadro ficou exposto muito tempo, mas não se o vendeu”;
b) “A vida fica mais leve, quando se a encara com fé e amor”;
c) “Se esses livros são medíocres, por que se os compram?”.
12) E ele próprio dá a solução para corrigi-las: “Para que essas frases fiquem corretas, basta eliminar os pronomes oblíquos o, a, os, as, e construir ‘mas não se vendeu’ ou ‘mas não foi vendido’...”6
13) Leciona Artur de Almeida Torres que “o pronome se nunca se combina na mesma frase com o pronome o, a, os, as. É erro dizer-se: ‘Ele apareceu quando menos se o esperava’. Corrija-se: ‘Ele apareceu quando menos se esperava’ ou ‘Ele apareceu quando menos o esperávamos’”.7
14) Para Edmundo Dantès Nascimento, a junção de se + o é erro “mais comum do que se pensa”.
15) E, insistindo na impossibilidade desse emprego, observa ele que “em tal caso ou o se seria sujeito, ou os pronomes o, a, os, as, o seriam, o que é um absurdo diante do espírito da língua”.
16) Asseverando configurar “impossibilidade à luz do Português”, manda ele que se corrija, “colocando em lugar dos pronomes o, a, os, as, uma palavra que possa ser sujeito”.8
17) Sousa e Silva, após reiterar a erronia de combinações dessa natureza, assevera que “há muitas maneiras vernáculas de redigir semelhantes frases”, especificando algumas delas:
a) empregar o verbo na voz ativa, na terceira pessoa do plural, e sem sujeito explícito: “não o fizeram” em vez de “não se o fez”;
b) usar o verbo na voz ativa, na primeira pessoa do plural (se o permitir o sentido): “não devemos fazê-lo” em lugar de “não se o deve fazer”;
c) passar o verbo para a voz passiva analítica com o auxiliar ser, vindo claro o sujeito: “ele não foi feito” por “não se o fez”;
d) flexionar o verbo na voz passiva com o auxiliar ser, ficando o sujeito oculto: não foi feito;
e) juntar ao verbo a partícula apassivadora e o pronome pessoal reto (se daí não resultar ambigüidade): não se fez ele;
f) utilizar o verbo com partícula apassivante e sem sujeito explícito (se a frase não se tornar obscura ou anfibológica): “Esperávamos a nova lei, mas não se decretou”.9
18) Ronaldo Caldeira Xavier insere a expressão “não se o viu” no rol dos galicismos sintáticos e aconselha sua substituição por “não foi visto”10
19) Eduardo Carlos Pereira insere construções em que se une o se e o o, como na frase considerada, no rol dos galicismos fraseológicos ou sintáticos, daqueles que “são verdadeiras deturpações da língua, contra os quais devemos estar premunidos”.11
20) Também Mário Barreto assevera que tal construção, por mais que se pretenda justificar, “é um grosseiro atentado contra a índole da língua”, uma incorreção que não acha amparo nos gramáticos.12
21) Em complementação feita em outra obra, lembra o mesmo autor que há determinadas frases francesas construídas com “on” que podem, em princípio, conduzir o usuário a uma tradução errada, por meio da junção que ora se repele: On la porte sur son lit, on le reconduisit chez lui, on l'appela pour diner, on la traitait avec bonté, on ne le trouva pas, on ne les voit pas comme ils sont. Nem por isso, todavia, o conhecido filólogo incide nas construções vitandas (leva-se-a para a cama, levou-se-o para casa...), já que manda traduzir assim tais frases: levam-na para a cama, levaram-no para casa, chamaram-na para jantar, tratavam-na com bondade, não o encontraram, não se vêem como eles são.13
22) E, quanto à construção cite-se ele – uma das correções viáveis da construção condenada – vale lembrar a lição de Vitório Bergo: “A muitos afigura-se errônea esta construção, em que o pronome reto ele parece estar em função de objeto direto. Tal não se dá, entretanto, pois ele é sujeito paciente, apenas colocado em ordem inversa”.14 Equivale tal frase a “(que) ele seja citado”.
23) De modo bem específico para o que normalmente ocorre na linguagem jurídica e forense, partindo da frase sacramental “Recomende-se-o na prisão”, encontradiça em sentenças criminais, Geraldo Amaral Arruda observa que “essa construção não suporta análise sintática”, alinhando, para refutá-la, os seguintes argumentos:
a) podem-se dizer duas frases completas nesses casos: “Recomende-se o réu na prisão” ou “Seja o réu recomendado na prisão”;
b) “nesses casos aparecem o sujeito (o réu) e o predicado formado com o verbo na passiva pronominal, ou na passiva analítica, formada pelo verbo de ligação e o predicativo, acrescido do adjunto adverbial”;
c) “se se pretender substituir o sujeito réu por um pronome, só poderá sê-lo por um pronome do caso reto”, até porque “a função de sujeito da oração somente pode ser exercida por um substantivo (no caso, réu), ou por um pronome reto (no caso, ele), ou por algum pronome demonstrativo”;
d) por isso, por uma de duas maneiras há de ser corretamente escrito o exemplo no caso concreto: “Recomende-se ele na prisão” ou “Seja ele recomendado na prisão”15
24) Da mesma forma, não é correta qualquer frase em que haja combinações semelhantes: “Intime-se-a”, “Notifiquem-se-os”, “Processem-se-as”.
25) Se pode parecer estranho dizer “Citem-se eles”, por se afigurar foneticamente repugnante a combinação, continua sendo inegável que, no campo sintático, o verbo está na voz passiva, e o sujeito tem que ser do caso reto; além disso, nada impede a utilização da forma analítica: “Sejam eles citados”.
26) Por argumento de autoridade, acresça-se o lembrete de Aires da Mata Machado Filho de que a questão ficou cabalmente elucidada no sentido exposto após memorável polêmica entre Mário Barreto e Melo Carvalho.16
27) E alhures aquele gramático – após reiterar que “erro grave é a combinação binária do pronome se aos oblíquos o, a, os, as (em função de acusativo), em frases de voz reflexo-passiva” – transcreve precisa lição do primeiro polemista: “sendo o pronome oblíquo o, a, os, as objeto direto dos verbos transitivos diretos supra; sendo passiva a voz verbal (se viu igual a foi vista; se esperava igual a era esperado, etc.), tais construções levariam à absurdeza de revestir o sujeito da oração o caso oblíquo (acusativo) o, a, os, as, perdendo a retilidade (sua principal característica) inerente ao nominativo”.17
28) Vale observar que os clássicos evitam tal construção errônea de dois modos:
I) Ou omitem simplesmente o pronome o, a, os, as. Ex.: “Ou não se busca o confessor, ou, se se busca...” (Padre Manuel Bernardes).
II) Não omitem o pronome, mas o levam, e corretamente, ao caso reto (ele, ela, eles, elas). Ex.: “Um crime, só um crime, pode unir-nos... E por que não se cometerá ele?” (Alexandre Herculano).
29) Sintetize-se tal processo de correção com o ensinamento de Gladstone Chaves de Melo: “Nos casos em que supostamente tivesse cabida a junção, ou se cala o pronome acusativo, ou emprega-se o pronome reto, construção essa mais rara, porém certa, porque se terá entendido a frase como passiva e, então, o ele ou ela serão sujeito da oração”18 Exs.:
a) “Venha esse pão e ponha-se na balança” (Padre Manuel Bernardes);
b) “Um crime, só um crime... e por que não se cometerá ele?” (Alexandre Herculano).
30) Adicione-se o resumo de Eduardo Carlos Pereira de que se e o “não se encontram jamais na mesma frase”, motivo por que “é incorreto dizer-se: Eles se o arrogam”.19
31) E ultime-se com Silveira Bueno, cuja contundência, a esse respeito, é perceptível a uma perfunctória análise: “A combinação do reflexivo se com as formas oblíquas o, a, os, as, é assunto completamente liquidado por Mário Barreto em duas das suas ótimas obras: Novos Estudos e De Gramática e de Linguagem. No primeiro livro aqui citado, provou exaustivamente que frases como esta – Onde se o encontra – são absolutamente contrárias ao cunho, à sintaxe portuguesa. Houve um tal snr. Melo Carvalho que saiu a campo, a fim de defender a vernaculidade, a correção de tal uso, citando em seu abono Rui Barbosa. Foi muito infeliz porque teve pela frente não só Mário Barreto, na segunda obra citada, não só o dr. Pedro Pinto, mas o próprio Rui Barbosa que, em carta dirigida a Mário Barreto, deserta da companhia de Melo Carvalho. Depois de tudo isto, quem vier ainda com a pretensão de defender tal erro, que dê com a cabeça na pedra para ver se a endireita”.20
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1 Cf. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924. p. 317.
2 Cf. BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 19. ed., segunda reimpressão. São Paulo: Companhia Editora nacional, 1974. p. 257.
3 Cf. PINTO, Pedro A. Termos e Locuções: Miudezas de Linguagem Luso-Brasileira. Rio de Janeiro: Tipografia Revista dos Tribunais, 1924. p. 56.
4 Cf. NASCENTES, Antenor. O Idioma Nacional. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. vol. II, p. 90.
5 Cf. NOGUEIRA, Júlio. A Linguagem Usual e a Composição. 13. ed. Rio de Janeiro: Livrarias Freitas Bastos, 1959. p. 85.
6 Cf. CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 366-367.
7 Cf. TORRES, Artur de Almeida. Moderna Gramática expositiva. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1966. p. 84.
8 Cf. NASCIMENTO, Edmundo Dantès. Linguagem Forense. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 19.
9 Cf. SILVA. A. M. de Sousa e. Dificuldades Sintáticas e Flexionais. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1958. p. 266-267.
10 Cf. XAVIER, Ronaldo Caldeira. Português no Direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 89.
11 Cf. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924. p. 260 e 262.
12 Cf. BARRETO, Mário. Fatos da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1954. p. 275.
13 Id. Através do Dicionário e da Gramática. 3. ed. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1954. p. 115-116.
14 Cf. BERGO, Vitório. Erros e Dúvidas de Linguagem. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1944. vol. II, p. 168.
15 Cf. ARRUDA, Geraldo Amaral. A Linguagem do Juiz. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 57.
16 Cf. MACHADO FILHO, Aires da Mata. “Principais Dificuldades”. In: Grande Coleção da Língua Portuguesa. 1. ed. São Paulo: co-edição Gráfica Urupês S/A e EDINAL – Editora e Distribuidora Nacional de Livros Ltda., 1969. vol. 1, p. 185.
17 Cf. MACHADO FILHO, Aires da Mata. “Português Fora das Gramáticas”. In: Grande Coleção da Língua Portuguesa. 1. ed. São Paulo: co-edição Gráfica Urupês S/A e EDINAL – Editora e Distribuidora Nacional de Livros Ltda., 1969. vol. 4, p. 1.361-1.362.
18 Cf. MELO, Gladstone Chaves de. Gramática Fundamental da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970. p. 266.
19 Cf. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924. p. 96.
20 Cf. BUENO, Silveira. Português pelo Rádio. São Paulo: Saraiva e Cia., 1938. p. 136-137.