Gramatigalhas

Aluga-se uma casa

A questão da voz passiva sintética e da formulação do plural em algumas circunstâncias.

11/8/2004

Um pedido de solução para o emprego do verbo assistir, formulado pelo leitor Jefferson Ribeiro, trouxe não apenas a solução específica de uso desse verbo, mas uma coluna adicional sobre o conceito e o emprego da voz passiva dos verbos em Português. Alguns leitores, todavia, pedem que se esmiúce a questão da voz passiva sintética e da formulação do plural em tais circunstâncias.

1) Diferentemente da frase Gosta-se de um bom vinho - com a qual esta deve sempre ser comparada em análise - uma frase como Aluga-se uma casa, em que há um se acoplado ao verbo, pode ser dita de outra forma: Uma casa é alugada.

2) E, por permitir essa transformação, pode-se dizer que é uma frase reversível, que serve de modelo para todas as outras, também reversíveis, que tenham o se unido ao verbo desse modo.

3) Em frases dessa natureza, podem-se extrair as seguintes conclusões:

a) o exemplo está na voz passiva sintética;

b) o se é partícula apassivadora;

c) o sujeito é uma casa (sujeito, e não objeto direto).

4) Por essas razões, se, em vez de uma casa, se diz casas, tem-se, por conseqüência, o sujeito no plural.

5) Exatamente por isso e por mera aplicação da regra de concordância verbal de sujeito simples, se o sujeito está no plural, o verbo também deve ir para o plural: “Alugam-se casas.

6) Atente-se a que essa é uma construção muito comum nos meios jurídicos, devendo-se zelar por sua concordância adequada, no plural, e não no singular: “Buscaram-se soluções para o conflito”; Citem-se os réus; Devolvam-se os autos; Entreguem-se os autos da carta precatória”; Intimem-se as testemunhas”; Processem-se os recursos”.

7) A essa altura, lembre-se o ensinamento de Mário Barreto: “Pondo de lado discussões teóricas, complicadas e difíceis, todos, na prática, estamos de acordo, sábios e leigos, em que viu-se muitas desgraças, aceita-se comensais, via-se lindas flores, aqui vende-se jornais, na passiva com se, são concordâncias absolutamente intoleráveis em português”.1

8) Pelas observações já feitas, tais frases devem ser assim corrigidas: viram-se muitas desgraças, aceitam-se comensais, viam-se lindas flores, aqui vendem-se jornais.

9) Vale registrar a observação de Júlio Nogueira, para quem, em situações dessa natureza, a índole de nossa língua exige que se concorde o verbo com o seu sujeito (Alugam-se casas), do mesmo modo como usaríamos o plural com outra forma passiva (Casas são alugadas).2

10) Atente-se, de igual modo, à admoestação de Eduardo Carlos Pereira de que “são, pois, solecismos”, que importa evitar, as expressões: Corta-se árvores, Vende-se queijos, Conserta-se relógios, Compra-se livros usados, Ferra-se cavalos”.3

11) A exemplo de ensino anterior, tais frases devem ser assim corrigidas: Cortam-se árvores, Vendem-se queijos, Consertam-se relógios, Compram-se livros usados, Ferram-se cavalos.

12) A um consulente que lhe indagava qual a forma correta – “Fez-se tentativas” ou “Fizeram-se tentativas” - Cândido de Figueiredo, asseverando que, “a este respeito, não pode haver duas opiniões fundamentadas”, observava ser “pecado grave contra a língua portuguesa” a primeira forma, que “é construção francesa, e portanto galicismo de frase, além de erro de gramática”.

13) E explicava o motivo de sua posição: “os ingênuos supõem que o on francês equivale ao pronome se português, e, ao verem ‘on achete des livres’, traduzem lampeiramente – ‘compra-se livros’... No citado exemplo francês, on é sujeito da proposição; em português o se nunca é sujeito”.4

14) Anote-se, ademais, que desses equívocos nem mesmo escapam os melhores escritores, como, só para ilustrar, se vê no caso de Mário Barreto, que estudava um erro de concordância verbal de Rui Barbosa e um outro de Alexandre Herculano, e exatamente no artigo em que o fazia, incidiu no mesmo solecismo (muito embora tenha corrigido de pronto tal descuido no artigo seguinte): “Na língua falada, faz-se quotidianamente freqüentes aplicações...5 Ante os ensinos anteriores, corrija-se para: “Na língua falada, fazem-se quotidianamente freqüentes aplicações...”

15) Também não estão imunes a equívocos desse jaez os próprios textos de lei, que, esquecidos da existência do se e da necessidade de flexão verbal, olvidam a concordância do verbo com o seu sujeito.

16) Assim o art. 273 do Código Civil de 1916, em redação conferida pela Lei 4.121, de 27/8/62, que instituiu o Estatuto da Mulher Casada: “No regime da comunhão de bens, presume-se adquiridos na constância do casamento os móveis, quando não se provar com documento autêntico, que o foram em data anterior”.

17) Sua correção há de ser: “... presumem-se adquiridos... os móveis” (porque os móveis são presumidos adquiridos).

18) De igual modo, o art. 33 do Decreto-lei 70, de 21/11/66, que instituiu a cédula hipotecária: “Compreende-se no montante do débito hipotecado, para os efeitos do art. 32, a qualquer momento de sua execução, as demais obrigações contratuais vencidas...

19) Corrija-se: “Compreendem-se... as demais obrigações contratuais vencidas...” (porque as obrigações contratuais vencidas são compreendidas).

20) E também o art. 113 da Lei 8.078, de 11/9/90, que dispôs sobre a proteção ao consumidor: “Acrescente-se os seguintes §§ 4°, 5° e 6° ao art. 5° da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985.

21) A correção há de ser: “Acrescentem-se os seguintes §§...” (porque os seguintes parágrafos sejam acrescentados).
___________

1 Cf. BARRETO, Mário. Através do Dicionário e da Gramática. 3. ed. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1954. p. 263.

2 Cf. NOGUEIRA, Júlio. A Linguagem Usual e a Composição. 13. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1959. p. 72.

3 Cf. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924. p. 321.

4 Cf. FIGUEIREDO, Cândido de. Falar e Escrever. 6. ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1946. vol. I, p. 13-14.

5 Cf. JUCÁ FILHO, Cândido. Índice Alfabético e Crítico da Obra de Mário Barreto. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1981. p. 54.

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.