Gramatigalhas

Intimem-se-as

Confira "Intimem-se-as"

15/8/2007

O leitor Elon Volpi envia a seguinte mensagem ao autor de Gramatigalhas:

 

"Intimem-se as partes, pode ser substituído por 'intimem-se-as', 'intimem-se-nas' ou apenas 'intimem-se'? Grato"

1) Se se diz "Intimem-se as partes", o que se tem é uma frase reversível, que também pode ser dita assim: "As partes sejam intimadas".

2) E, como na frase do modelo ("Aluga-se uma casa"), podem-se extrair as seguintes conclusões:

a) o exemplo está na voz passiva sintética;

b) o "se" é partícula apassivadora;

c) o sujeito é "as partes".

3) Por extensão, se houver a substituição do nome final (partes) por um pronome, este também haverá de ser sujeito e, portanto, do caso reto (elas), não do caso oblíquo (as, lhes).

4) A forma correta, assim, com a substituição pelo pronome, é "Intimem-se elas", jamais "Intimem-se-as" ou "Intimem-se-nas", ou qualquer forma semelhante.

5) Ante tais considerações, conclui-se, de igual modo, serem plenamente equivocadas expressões de uso corrente, como não se o diz, para se o conhecer, não se a vê, ouve-se-o com prazer, cortou-se-as.

6) Na lição de Eduardo Carlos Pereira, "o uso geral dos bons escritores antigos e modernos não autoriza a combinação destas formas (o, a, os, as) com o reflexivo se".1

7) A esse respeito, lembra Evanildo Bechara que "a língua padrão rejeita a combinação se o, apesar de uns poucos exemplos na pena de literatos".2

8) Lembrando lição de Otoniel Mota, observa P. A. Pinto que à língua repugnam as formas se o e se a, porque não é possível, logicamente, "encaixar um acusativo ao lado de outros, que é o reflexo se".3

9) Embora simples, também é firme a lição de Antenor Nascentes a respeito: "É incorreta a combinação de se com os pronomes o, a, os, as".4

10) Não menos incisivo é o ensinamento de Júlio Nogueira: "Não se pospõem as variações o, a, os, as, ao pronome se. São solecismos grosseiros frases como: 'Deve-se admirar aquele homem pelo cérebro; não se o deve admirar como político'... A correção é simples: basta suprimir as formas o, a, os, as, com o que nada perde a clareza da frase: 'Deve-se admirar aquele homem pelo cérebro; não se deve admirar como político'... Pode-se igualmente adotar a forma determinada, pessoal: 'Devemos admirar aquele homem pelo cérebro; não o devemos admirar como político'".5

11) Eduardo Carlos Pereira insere construções em que se une o se e o o, como na frase considerada, no rol dos galicismos fraseológicos ou sintáticos, daqueles que "são verdadeiras deturpações da língua, contra os quais devemos estar premunidos".6

12) Também Mário Barreto assevera que tal construção, por mais que se pretenda justificar, "é um grosseiro atentado contra a índole da língua", uma incorreção que não acha amparo nos gramáticos.7

13) Em complementação feita em outra obra, lembra o mesmo autor que há determinadas frases francesas construídas com "on" que podem, em princípio, conduzir o usuário a uma tradução errada, por meio da junção que ora se repele: On la porte sur son lit, on le reconduisit chez lui, on l’appela pour diner, on la traitait avec bonté, on ne le trouva pas, on ne les voit pas comme ils sont. Nem por isso, todavia, o conhecido filólogo incide nas construções vitandas (leva-se-a para a cama, levou-se-o para casa...), mas manda traduzir assim tais frases: levam-na para a cama, levaram-no para casa, chamaram-na para jantar, tratavam-na com bondade, não o encontraram, não se vêem como eles são".8

14) E, quanto à construção cite-se ele (modelo para "Intimem-se as partes"), vale lembrar a lição de Vittorio Bergo: "A muitos afigura-se errônea esta construção, em que o pronome reto ele parece estar em função de objeto indireto. Tal não se dá, entretanto, pois ele é sujeito paciente, apenas colocado em ordem inversa".9 Equivale a frase a "(que) ele seja citado".

15) Se pode parecer estranho dizer "Intimem-se elas", afigurando-se foneticamente repugnante a combinação, continua sendo inegável que, no campo sintático, o verbo está na voz passiva, e o sujeito tem que ser do caso reto; além disso, nada impede a utilização da forma analítica: "Sejam elas intimadas".

16) Por argumento de autoridade, acresça-se o lembrete de Aires da Mata Machado Filho de que a questão ficou cabalmente elucidada no sentido exposto após memorável polêmica entre Mário Barreto e Melo Carvalho.10

17) E alhures, o mesmo gramático - após reiterar que "erro grave é a combinação binária do pronome se aos oblíquos o, a, os as (em função de acusativo), em frases de voz reflexo-passiva" - transcreve precisa lição do primeiro polemista: "sendo o pronome oblíquo o, a, os, as objeto direto dos verbos transitivos diretos supra; sendo passiva a voz verbal (se viu igual a foi vista; se esperava, igual a era esperado, etc.), tais construções levariam à absurdeza de revestir o sujeito da oração o caso oblíquo (acusativo) o, a, os, as, perdendo a retilidade (sua principal característica) inerente ao nominativo".11

18) Vale observar que os clássicos evitam tal construção errônea de dois modos:

I) Ou omitem simplesmente o pronome o, a, os, as. Ex.: "Ou não se busca o confessor, ou, se se busca..." (Padre Manuel Bernardes);

II) Não omitem o pronome, mas o levam, e corretamente, ao caso reto (ele, ela, eles, elas). Ex.: "Um crime, só um crime, pode unir-nos... E por que não se cometerá ele?" (Alexandre Herculano).

19) Sintetize-se tal processo de correção com o ensinamento de Gladstone Chaves de Melo: "Nos casos em que supostamente tivesse cabida a junção, ou se cala o pronome acusativo, ou emprega-se o pronome reto, construção essa mais rara, porém certa, porque se terá entendido a frase como passiva e, então, o ele ou ela serão sujeito da oração".12 Exs.:

a) "Venha esse pão e ponha-se na balança" (Padre Manuel Bernardes);

b) "Um crime, só um crime... e por que não se cometerá ele?" (Alexandre Herculano).

20) Acresça-se a lição de Eduardo Carlos Pereira no sentido de que se e o "não se encontram jamais na mesma frase", motivo por que "é incorreto dizer-se: Eles se o arrogam".13

21) E ultime-se com Silveira Bueno, cuja contundência, a esse respeito, é perceptível em suas lições: "A combinação do reflexivo se com as formas oblíquas o, a, os, as, é assunto completamente liquidado por Mário Barreto em duas das suas ótimas obras: Novos Estudos e De Gramática e de Linguagem. No primeiro livro aqui citado, provou exaustivamente que frases como esta – Onde se o encontra – são absolutamente contrárias ao cunho, à sintaxe portuguesa. Houve um tal snr. Melo Carvalho que saiu a campo, a fim de defender a vernaculidade, a correção de tal uso, citando em seu abono Rui Barbosa. Foi muito infeliz porque teve pela frente não só Mário Barreto, na segunda obra acima citada, não só o dr. Pedro Pinto, mas o próprio Rui Barbosa que, em carta dirigida a Mário Barreto, deserta da companhia de Melo Carvalho. Depois de tudo isto, quem vier ainda com a pretensão de defender tal erro, que dê com a cabeça na pedra para ver se a endireita".14

22) Atentando, de modo específico, às formas propostas pela leitora, veja-se o que é correto e o que é errado:

I) - "Intimem-se as partes" (correto);

II) - "As partes sejam intimadas" (correto);

III) – "Intimem-se-as" (errado);

IV) – "Intimem-se-nas" (errado);

V) – "Intimem-se" (correto);

VI) – "Intimem-se elas" (correto).

________

1Cf. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924. p. 317.

2Cf. BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 19. ed., segunda reimpressão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974, p. 257.

3Cf. PINTO, Pedro A. Termos e Locuções: Miudezas de Linguagem Luso-Brasileira. Rio de Janeiro: Tipografia Revista dos Tribunais, 1924, p. 56.

4Cf. NASCENTES, Antenor. O Idioma Nacional. 3. ed. São Paulo: Companhia Editoras Nacional, 1942, vol. II, p. 90.

5Cf. NOGUEIRA, Júlio. A Linguagem Usual e a Composição. 13. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1959, p. 85.

6Cf. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924. p. 260 e 262.

7Cf. BARRETO, Mário. Fatos da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1954, p. 275.

8Id., Através do Dicionário e da Gramática. 3. ed. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1954, p. 115-116.

9Cf. BERGO, Vitório. Erros e Dúvidas de Linguagem. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1944. vol. II, p. 168.

10Cf. MACHADO FILHO, Aires da Mata. "Principais Dificuldades". In: Grande Coleção da Língua Portuguesa. 1. ed. São Paulo: co-edição Gráfica Urupês S.A. e EDINAL – Editora e Distribuidora Nacional de Livros Ltda., 1969. vol. 1, p. 185.

11Cf. MACHADO FILHO, Aires da Mata. "Português Fora das Gramáticas". In: Grande Coleção da Língua Portuguesa. 1. ed. São Paulo: co-edição Gráfica Urupês S.A. e EDINAL – Editora e Distribuidora Nacional de Livros Ltda., 1969. vol. 4, p. 1.361-1.362.

12Cf. MELO, Gladstone Chaves de. Gramática Fundamental da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970. p. 266.

13Cf. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924. p. 96.

14Cf. BUENO, Silveira. Português pelo Rádio. São Paulo: Saraiva e Cia., 1938. p. 136-137.

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.