Gramatigalhas

Tempos verbais – Uso de um pelo outro

Um professor de francês indaga se, em português, se pode dizer "eu precisava", ou se deve dizer "eu precisaria", ou "eu preciso" de uma tesoura. E lembra que a situação a que se refere é presente, de modo que não se desenrola no passado.

15/2/2023
O leitor Marcelo Baptistella envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:

"Sou professor de francês e estou com uma dúvida em português: posso dizer eu precisava de uma tesoura ou deveria dizer eu precisaria de uma tesoura ou eu preciso de uma tesoura? A situação é presente, e não passada, mas em francês é possível usar as três formas por educação, mas e em português? Obrigado!"

1) Um professor de francês indaga se, em português, se pode dizer "eu precisava", ou se deve dizer "eu precisaria", ou "eu preciso" de uma tesoura. E lembra que a situação a que se refere é presente, de modo que não se desenrola no passado. Observa, por fim, que, em francês, é possível usar as três formas.

2) Ora, a par de sua aplicação direta e normal, os tempos verbais, em português, se prestam a uma gama variada de possibilidades, enriquecendo o arsenal de que dispõe o usuário do idioma para montar um texto.

3) Assim, começando pelo presente do indicativo, vê-se que ele, num primeiro aspecto, pode também ser empregado em situações de fato pretéritas, sobretudo quando se quer dar ânimo e ênfase à narrativa. É o que se denomina presente histórico. Ex.: "Napoleão, então, vai ao encontro de seu destino em Waterloo" (vai = foi).

4) Também se emprega o presente do indicativo em lugar do futuro, para indicar com ênfase uma decisão. Ex.: "Vou a São Paulo hoje e volto amanhã" (volto = voltarei).

5) Também se usa o presente do indicativo em lugar do pretérito imperfeito do subjuntivo, sobretudo em uma linguagem mais coloquial. Ex.: "Se eu respondo mal, ela se zangaria" (respondo = respondesse).

6) De igual modo, o presente do indicativo pode substituir o futuro do subjuntivo. Ex.: "Se queres a paz, prepara-te para a guerra" (queres = quiseres).

7) Num segundo ponto, o pretérito imperfeito do indicativo pode substituir, sobretudo na linguagem mais informal, o futuro do pretérito. Ex.: "Se ela me desprezasse, eu me matava" (matava = mataria).

8) Num terceiro plano, o pretérito mais-que-perfeito do indicativo pode vir, respectivamente, em lugar do futuro do pretérito do indicativo e do futuro do subjuntivo. Como exemplo, veja-se o conhecido verso de Camões: "[...] mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida" (servira = serviria; fora = fosse).

9) Mas não é só: em quarto lugar, o futuro do presente pode ser empregado em lugar do presente do indicativo, para indicar incerteza ou ideia aproximada. Ex.: "Ela terá aproximadamente seus vinte anos" (terá = tem).

10) Além disso, o futuro do presente também pode ser empregado em lugar do imperativo. Ex.: "Não furtarás(furtarás = furtes).

11) Sem pretender exaurir o rol dessa utilização de uns tempos verbais em lugar de outros, vê-se que o infinitivo pode substituir o imperativo nas ordens. Ex.: "Não furtar" (furtar = furtarás).

12) Como é de fácil percepção, é enorme a possibilidade de variação dos tempos verbais para se substituírem mutuamente. E não há regras estritas nem proibições maiores a serem obedecidas em tais situações. Nem mesmo as hipóteses aqui levantadas esgotam o rol das combinações possíveis.

13) E calha com perfeição, a esta altura, a advertência de Evanildo Bechara: "os casos aqui lembrados estão longe de enquadrar a trama complexa do emprego de tempos e modos em português. São várias as situações que podem, ferindo os princípios aqui expostos, levar o falante ou escritor a buscar novos meios mais expressivos. São questões que fogem ao âmbito da Gramática e constituem preocupação da Estilística".1

14) De modo específico para as indagações do leitor, todas as possibilidades por ele aventadas encontram respaldo no uso que os melhores escritores fazem do idioma.

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1 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 19. ed., segunda reimpressão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974, p. 279.

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.