Gramatigalhas

Peticionamento - Existe?

Peticionamento - Existe? Veja o que o professor José Maria da Costa responde.

7/12/2022
O leitor João Guilherme Ponzoni Marcondes envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:

"Caro professor, em consulta ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa disponibilizado no sítio eletrônico da Academia Brasileira de Letras, descobri que lá não se registra a palavra 'peticionamento', a qual vem sendo amplamente empregada no meio jurídico e inclusive dá nome ao procedimento obrigatório para qualquer manifestação processual atualmente, por meio do assim chamado 'peticionamento eletrônico'. Como devemos resolver a questão de nos referir a tal procedimento, dada a nomenclatura utilizada pelos Tribunais?".

1) Um leitor anota que, em consulta ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa disponibilizado no sítio eletrônico da Academia Brasileira de Letras, descobriu que nele não se registra a palavra peticionamento, a qual vem sendo amplamente empregada no meio jurídico e até mesmo dá nome ao procedimento obrigatório para qualquer manifestação processual atualmente, por meio do assim chamado “peticionamento eletrônico”. E indaga como resolver a questão de referência a tal procedimento, dada a nomenclatura utilizada pelos Tribunais.

2) Num primeiro plano de premissas, pode-se dizer, em termos práticos, que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa é uma espécie de dicionário que lista as palavras reconhecidas oficialmente como pertencentes à língua portuguesa, bem como lhes fornece a grafia oficial.

3) Também conhecido pela sigla VOLP, seu objetivo é reconhecer a existência e consolidar a grafia dos vocábulos, além de classificá-los pelo gênero (masculino ou feminino) e categoria morfológica (substantivo, adjetivo...).

4) Difere dos dicionários convencionais, por não explicar usualmente o significado dos termos que registra.

5) É elaborado pela Academia Brasileira de Letras, que tem a delegação e a responsabilidade legal de editá-lo, desde a vetusta Lei Eduardo Ramos, de n. 726, de 8 de dezembro de 1900, delegação essa confirmada por diversos outros diplomas legais posteriores.

6) Finalizando as considerações quanto a essa primeira premissa, reitera-se que, incumbido por legislação específica para sua confecção, quem o elabora goza de autoridade para, nesse campo, dizer o Direito, motivo por que, ao consultá-lo, legem habemus e devemos prestar-lhe obediência, como é nossa obrigação também com respeito aos outros diplomas legais. E qualquer discussão ou divergência entre o VOLP e os dicionaristas há de ficar para o plano da ciência, não consistindo, todavia, em válvula que permita o descumprimento de suas determinações.

7) Dizendo de outro modo, é preciso realçar que os estudiosos da língua e os dicionaristas, sem sombra de dúvida, prestam relevantes serviços ao vernáculo. Não são eles, porém, as autoridades para dizer, com valor oficial, sobre a existência ou não de algum vocábulo em nosso idioma, bem como sobre sua grafia e suas peculiaridades, ou mesmo sobre sua correção no idioma. Essa atribuição cabe, com exclusividade, à Academia Brasileira de Letras, de modo que, na divergência entre os gramáticos, filólogos e dicionaristas de um lado, e o VOLP de outro, há de prevalecer, nesse campo, o que registra este último.

8) Num segundo plano no campo das premissas, é preciso atentar ao que seja um neologismo. Napoleão Mendes de Almeida o vê consistindo "no emprego de palavras novas, criadas pela ciência, por organizações modernas (telégrafo, autódromo, astronauta, telex, xerox) ou de palavras antigas tomadas em sentido novo (computador, satélite)".

9) A dupla exigência para formação do neologismo (estruturação adequada em nosso idioma + ausência de sinônimo perfeito em nossa língua) encontra-se em diversos estudiosos, além de expressa em lição do mesmo Napoleão Mendes de Almeida: "Para que se justifique, o neologismo deve, antes de tudo, ser necessário e, depois, formado de acordo com o gênio da língua. Não sendo conveniente nem corretamente formado, o neologismo passa a ser barbarismo".1

10) Exatamente por causa dessa dupla exigência para a formação de um neologismo – estruturação adequada no idioma + ausência de sinônimo – foi que, anos atrás, apesar da defesa de alguns gramáticos, acabou sendo condenado o emprego da palavra imexível, feito por um ex-ministro. Por um lado, sua formação estava integralmente de acordo com as regras de nossa língua, quer quanto ao prefixo, quer quanto ao sufixo utilizados. Deu-se, porém, que já havia no idioma sinônimos perfeitos para o vocábulo, representados pelas palavras intangível e intocável. A demora ou recusa, aliás, quanto à inserção de novos vocábulos em nosso idioma, com frequência esbarra exatamente nessa desnecessidade, quando há palavra que corresponda com perfeição a seu significado, o que parece acontecer atualmente com expertise (experiência, perícia, preparo) e performance (desempenho).

11) Quanto à excessiva aversão a que se incorporem palavras novas ao nosso léxico, é de se meditar nas palavras judiciosas de Júlio Nogueira, o qual, então, falava especificamente do francês: "Acaso a nossa língua pode apresentar palavras tiradas dos próprios celeiros para exprimirem todas as ideias concernentes à arte da navegação, da guerra, das modas, do esporte e tantas outras? Não sejamos, pois, intolerantes e, principalmente, parciais como nos temos revelado em desfavor das contribuições que recebemos desde tempos remotos de uma das mais cultas línguas do universo, senão a mais culta".2

12) Também não se olvide a lição de José Oiticica: "Se o neologismo necessário é bem feito, enriquece a língua, aumentando-lhe o poder de expressão e a maleabilidade; não assim o neologismo descabido, capaz de usurpar as funções de boas palavras ou construções clássicas. Pior ainda o vezo das novidades léxicas e sintáticas".3

13) Com base nessas duas premissas, passa-se ao raciocínio acerca da dúvida trazida pelo leitor: (i) é certo que o vocábulo peticionamento não é registrado pelo VOLP, o que, em princípio, demonstra que ele não existe oficialmente em nosso idioma; (ii) antes de condená-lo, porém, deve-se ver se ele se ajusta aos requisitos normalmente exigidos para permitir seu uso na condição de um neologismo; (iii) num primeiro aspecto, pode-se dizer que tem ele uma estruturação adequada em nosso idioma, já que, advindo de peticionar e tendo como cognato peticionário (vocábulos esses regularmente constantes do VOLP), é formado nos mesmos moldes de tantos outros substantivos de estruturação similar, como abafamento, branqueamento, descontentamento, enfrentamento, pronunciamento; (iv) num segundo aspecto, uma atenta análise faz concluir que ele preenche o requisito de ausência de sinônimo em nossa língua; (v) em realidade, para o fim do que se indaga na dúvida do leitor, peticionamento é o ato de peticionar, de apresentar formalmente uma petição em autos de processo judicial; (vi) e, para portar esse conteúdo semântico, não servem os vocábulos normalmente dados como sinônimos em tal situação, os quais têm sentido aproximado, mas não totalmente substitutivo; (vii) analisando apenas os verbos mais chegados com significação semelhante, vê-se que, por um lado, tecnicamente falando em termos processuais, peticionar é algo mais e/ou particularmente diverso de expor, expressar, exprimir ou manifestar; (viii) por outro lado, peticionar pode abranger outras funções além de exigir, pedir, reclamar, requerer, rogar, solicitar ou suplicar.

14) E, assim, voltando à consideração direta da dúvida do leitor, podem-se fazer as seguintes ponderações: (i) por um lado, é certo que o VOLP não registra o vocábulo peticionamento, e este, assim, não existe oficialmente em nosso idioma; (ii) por outro lado, preenche tal palavra claramente a dupla exigência para a formação do neologismo em nossa língua (estruturação adequada em nosso idioma + necessidade de seu emprego ante a ausência de sinônimo perfeito em nossa língua); (iii) sendo assim, pode perfeitamente ser empregado peticionamento em nosso idioma na condição de real neologismo e para os fins pretendidos na expressão técnica peticionamento eletrônico; (iv) e o leitor pode crer que, num futuro não distante, a ABL vai inserir tal palavra oficialmente em nosso idioma, registrando-a normalmente no VOLP.

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1 ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo: Editora Caminho Suave Ltda., 1981, p. 208.

2 NOGUEIRA, Júlio. A Linguagem Usual e a Composição. 13. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1959, p. 53.

3 OITICICA, José. Manual de Estilo. 7. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1954, 33-34.

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.