Kesley Barbosa envia a seguinte mensagem ao Gramatigalhas:
"Boa tarde! Com a devida vênia, apresento minha crítica ao uso recorrente da frase 'Quem viver, verá'. Nada contra o vaticínio, que considero costumeiramente pertinente, mas tudo contra a ofensa à última flor do Lácio, que não nos permite separar sujeito e predicado mediante uso de vírgulas, se não houver intercalações entre eles. Com votos cordiais de manterem sempre a excelência que lhes é peculiar, desejo boas festas a todos os migalheiros! Atenciosamente".
1) Um leitor indaga, em síntese, qual a forma correta de escrever, se com vírgula ou sem vírgula: a) Quem viver verá; ou b) Quem viver, verá? E desde logo se posiciona, dizendo que o emprego da vírgula estaria equivocado, já que é regra de Gramática que não se separa por vírgula o sujeito do predicado.
2) Ora, o exemplo trazido para a consulta costuma ser analisado sintaticamente de dois modos pelos gramáticos, e ambos têm sido aceitos como corretos.
3) Assim, para uma primeira corrente de gramáticos: (i) “Quem viver” seria o sujeito de “verá”; (ii) como tal sujeito está representado por uma oração, diz-se que é um sujeito oracional; (iii) e, como o pronome relativo quem não tem antecedente, ele é chamado de pronome relativo indefinido.1
4) Entendido o exemplo desse modo, pode-se aplicar ao caso exatamente a regra trazida pelo leitor: não se separa por vírgula o sujeito e o verbo (ou predicado).
5) Ocorre, todavia, que um outro grupo de gramáticos tem entendimento diverso: (i) em uma frase como essa, o pronome relativo “Quem” se desdobra, para efeito de análise sintática, na expressão “Aquele que”2; (ii) e o período todo, então, passa a ser, para tal análise, “Aquele que viver verá”; (iii) e, quando assim ocorre, tem-se, nesse período composto, uma oração principal (“Aquele [...] verá”) e uma oração subordinada (“que viver”).
6) Entendido o exemplo desse último modo, então se segue este raciocínio: (i) a oração subordinada (“que viver”), iniciada por um pronome relativo, é oração subordinada adjetiva; (ii) e as orações adjetivas se bipartem em adjetivas explicativas e adjetivas restritivas; (iii) a restritiva serve para “delimitar ou definir melhor o seu antecedente”; (iv) assim, no exemplo, “O homem que trabalha vence” (não se diz que todo homem vence, mas, de modo restritivo, quer-se dizer apenas daquele que trabalha); (v) já a adjetiva explicativa “encerra uma simples explicação ou pormenor do antecedente, uma informação adicional de um ser que se acha suficientemente definido, podendo ser omitida sem prejuízo”3 ; (vi) assim acontece no exemplo “O homem, que é mortal, pode imortalizar-se por seus feitos”; (vii) vale dizer, o atributo de mortal, que a oração subordinada confere ao termo homem, não o restringe em extensão alguma, mas apenas lhe dá uma explicação.
7) Com essas informações sobre o conteúdo e a natureza dessas orações adjetivas, segue-se em frente para dizer o que se dá com sua pontuação: (i) a oração subordinada adjetiva explicativa vem separada da oração principal por vírgulas; (ii) porque, no caso, ela se intercala na oração principal, acaba tendo vírgula antes e depois de si; (iii) reveja-se o exemplo dado (“O homem, que é mortal, pode imortalizar-se por seus feitos”; (iv) já a oração subordinada adjetiva restritiva não se separa por vírgulas da oração principal; (v) confira-se o exemplo dado (“O homem que trabalha vence”).
8) Obedecidas essas regras gerais, acrescem-se as seguintes ponderações: (i) com relação ao cerne da questão posta pelo leitor, embora seja obrigatório não haver vírgula no começo da oração adjetiva restritiva, acaba sendo optativo seu emprego ao final dela; (ii) desse modo, também estaria correto pontuar o exemplo por último referido obedecendo-se a essa observação (“O homem que trabalha, vence”); (iii) reiterando, porque o período contém uma oração subordinada adjetiva restritiva, tanto é correto não colocar vírgula alguma para separá-la da oração principal (“O homem que trabalha vence”), como também é correto empregar uma vírgula ao final da oração adjetiva restritiva (“O homem que trabalha, vence”).
9) Considerando o exemplo trazido pelo leitor (“Quem viver verá”), pode-se desenvolver o seguinte raciocínio completo: (i) numa primeira interpretação, pode-se considerar “Quem viver” como sujeito de “verá”; (ii) por ser formado por uma oração, diz-se que esse é um sujeito oracional; (iii) e, como o pronome relativo quem não tem antecedente, chama-se pronome relativo indefinido; (iv) e, uma vez feita tal análise, aplica-se a regra trazida pelo leitor, segundo a qual não se separa por vírgula o sujeito do verbo (ou do predicado); (v) quando, porém, se observa a lição de um outro grupo de gramáticos, então se desdobra o pronome relativo “Quem” na expressão “Aquele que”; (vi) tem-se, então, o período “Aquele que viver verá”; (vii) e, nesse novo período, tem-se uma oração principal (“Aquele [...] verá”) e uma subordinada (“que viver”); (viii) essa oração subordinada (“que viver”), por força do raciocínio anteriormente feito, é uma adjetiva restritiva; (ix) ora, quando se tem uma oração subordinada adjetiva restritiva, tanto é correto não colocar vírgula alguma para separá-la da oração principal (“O homem que trabalha vence”), como se pode empregar uma vírgula ao final da oração adjetiva restritiva (“O homem que trabalha, vence”); (x) essa mesma lição se aplica à oração estendida do exemplo do leitor (“Aquele que viver verá” ou “Aquele que viver, verá”; (x) e também essa mesma lição vale para o exemplo original trazido pelo leitor (“Quem viver verá” ou “Quem viver, verá”).
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1 CUNHA, Celso. Gramática Moderna. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1970, 2. ed., p. 163.
2 CUNHA, Celso. Gramática Moderna. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1970, 2. ed., p. 164.
3 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 19. ed., segunda reimpressão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974, p. 228.