Gramatigalhas

Compulsando-se-lhes – É correto?

Compulsando-se-lhes – É correto?

18/8/2021

O leitor Carlos Rodrigo Tanajura Barreto envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:

"Prezado dr. José Maria, está correto o início da frase abaixo (fazendo referência ao fato de ter examinado os autos): 'Compulsando-se-lhes'."

1) Um leitor indaga se, quando se está referindo aos autos de um processo, é correto dizer "Compulsando-se-lhes".

2) Por facilidade de análise, embora não pareça importante logo de início, o certo é que a indagação trazida pelo leitor torna necessárias algumas explicações técnicas, o que exige um raciocínio mais prolongado, motivo por que se pede paciência do leitor para acompanhar uma sequência de argumentos mais extensa, a começar por um primeiro bloco de premissas.

3) E, assim, num primeiro plano, como o próprio leitor diz que os autos são o alvo desse manuseio, então se vai substituir, por facilidade didática, o pronome final, e, desse modo, o exemplo a ser considerado será "Compulsando-se os autos", que bem poderá ser ainda formulado para compor um sentido completo: "Compulsando-se os autos, constata-se a razão do Autor".

3) Adicionalmente, pode-se ver que a oração "Compulsando-se os autos..." é uma oração reduzida de gerúndio, a qual pode ser estendida (fazendo-se desaparecer o gerúndio) do seguinte modo: "Quando se compulsam os autos...".

4) Feitos esses arranjos estruturais do exemplo esboçado pelo leitor, parte-se, num segundo plano, do princípio de que voz ativa e voz passiva são duas maneiras sintaticamente diversas de dizer a mesma realidade de fato, conforme o sujeito pratique ou receba a ação indicada pelo verbo: (i) "O magistrado proferiu a sentença" (voz ativa, porque o sujeito magistrado pratica a ação indicada pelo verbo proferir); (ii) "A sentença foi proferida pelo magistrado" (voz passiva, porque o sujeito sentença recebe a ação indicada pelo verbo proferir).

5) Embora se pretenda utilizar de modo mínimo as explicações técnicas, não se pode fugir aqui à afirmação de que, por um lado, o objeto direto da voz ativa (no caso, sentença) torna-se sujeito da voz passiva, enquanto, por outro lado, o sujeito da voz ativa (no exemplo, magistrado) passa a ser o agente da passiva.

6. Também como regra, pela própria estruturação apresentada (já que é necessário existir um objeto direto na ativa para haver voz passiva), só tem voz passiva um verbo que seja transitivo direto ou transitivo direto e indireto (também conhecido como bitransitivo).

7) Num segundo bloco de premissas, agora já de modo mais prático e diretamente relacionado com o exemplo do leitor, o certo é que, diferentemente da frase "Gosta-se de um bom vinho" – com a qual deve ser sempre comparada em análise – uma frase como "Aluga-se uma casa", em que há um se acoplado ao verbo, pode ser dita de outra forma: "Uma casa é alugada".

8) E, por permitir essa transformação, pode-se dizer que é uma frase reversível, que serve de modelo para todas as outras, também reversíveis, que tenham o se unido ao verbo desse modo.

9) Em frases reversíveis dessa natureza, podem-se extrair as seguintes conclusões: (i) se a frase é reversível, o exemplo está na voz passiva sintética; (ii) o se, nesse caso, é partícula apassivadora; (iii) o sujeito é uma casa (insista-se, sujeito e não objeto direto).

10) Por essas razões, se, em vez de uma casa, se diz casas, tem-se, por consequência, que o sujeito está no plural, de modo que o verbo também deve ir para o plural ("Alugam-se casas", e não "Aluga-se casas").

11) Por outro lado, na frase "Gosta-se de um bom vinho", não é possível dizê-la de outro modo, de modo que se pode afirmar que não é uma frase reversível, e nela o raciocínio que se faz é diferente do anteriormente realizado: (i) se não é reversível, uma frase assim tem um sujeito indeterminado (equivale a "Alguém gosta de um bom vinho"); (ii) nesse caso, o se se chama símbolo (ou índice) de indeterminação do sujeito; (iii) o termo "de um bom vinho" é objeto indireto; (iv) na prática, se esse termo é preposicionado (como no caso, em que é precedido pela preposição de), isso já é sinal de que a frase não é reversível; (v) como "um bom vinho" não é o sujeito, se ele é posto no plural, o verbo em nada é afetado ("Gosta-se de bons vinhos"), já que, afinal, a regra diz que o verbo concorda com o seu sujeito.

12) Com essas premissas, considera-se em seguida esse conjunto de observações, agora diretamente relacionadas com a dúvida do leitor (e aqui se consideram os termos da oração estendida, e não reduzida de gerúndio, o que nada altera a estrutura, tecnicamente falando): (i) sendo reversível a frase "Quando se compulsam os autos...", o exemplo está na voz passiva sintética; (ii) o se, nesse caso, é partícula apassivadora; (iii) o sujeito é os autos (insista-se, sujeito e não objeto direto); (iv) e, porque o sujeito é os autos (e o verbo concorda com seu sujeito), o verbo tem que ir para o plural, sendo gramaticalmente equivocado dizer ou escrever "Quando se compulsa os autos...".

13) Pois bem. Em continuação, ainda considerando o exemplo "Quando se compulsam os autos..." e partindo do princípio de que, nessa oração, os autos é o sujeito, não se pode esquecer que não pode o sujeito (que exige um pronome do caso reto) ser substituído por lhes (o que seria adequado, se o termo fosse um objeto indireto) nem por os (o que caberia, se ele fosse objeto direto). Veja-se: (i) "Quando se lhes compulsa..." (errado); (ii) "Quando se lhes compulsam..." (errado); (iii) "Quando se os compulsa..." (errado); (iv) "Quando se os compulsam..."; (v) "Quando se compulsa eles..." (errado); (vi) "Quando se compulsam eles..." (correto); (vii) e isso porque, sendo reversível essa frase, também pode ser ela dita como "Quando eles são compulsados...". Pode parecer feia a sonoridade, mas é o correto.

14) Por fim, voltando ao exemplo original do leitor, podem-se apontar, em síntese, os seguintes aspectos (sempre lembrando que aqui se fala de autos): (i) "Compulsando-se-lhes..." (errado); (ii) "Compulsando-se-os..." (errado); (iii) "Compulsando-se eles..." (correto). E se repete: o correto pode parecer feio, mas é assim que é o correto.

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.