O leitor Diego de A. S. Primo envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:
"Gostaria de saber se é admissível não flexionar a mesóclise, quando ela se refere a algo no plural. Explico. Em textos científicos, sempre escrevi, por exemplo, 'Analisar-se-ão os argumentos A, B e C'. Recentemente, porém, escutei de uma colega que seria igualmente correto não flexionar o verbo, isto é, escrever 'Analisar-se-á os argumentos A, B e C'. Procurei explicações no Google, mas não encontrei nada concreto. Agradeceria muito se me tirasse a dúvida!"
1) Um leitor indaga qual a forma correta de concordância do verbo acompanhado da partícula se, quando há mesóclise (que é a colocação do pronome pessoal oblíquo átono no meio do verbo): (i) Analisar-se-á os argumentos A, B e C; (ii) Analisar-se-ão os argumentos A, B e C.
2) Embora não pareça logo de início, o certo é que a indagação trazida pelo leitor é razoavelmente complexa e torna necessárias algumas explicações técnicas, o que exige um raciocínio mais prolongado, motivo por que se pede paciência ao leitor para acompanhar uma sequência de argumentos mais extensa, a começar por um primeiro bloco de premissas.
3) Parte-se, assim, do princípio de que voz ativa e voz passiva são duas maneiras sintaticamente diversas de dizer a mesma realidade de fato, conforme o sujeito pratique ou receba a ação indicada pelo verbo: (i) "O magistrado proferiu a sentença" (voz ativa, porque o sujeito magistrado pratica a ação indicada pelo verbo proferir); (ii) "A sentença foi proferida pelo magistrado" (voz passiva, porque o sujeito sentença recebe a ação indicada pelo verbo proferir).
4) Embora se pretenda utilizar no mínimo as explicações técnicas, não se pode fugir aqui à afirmação de que, por um lado, o objeto direto da voz ativa (no caso, sentença) torna-se sujeito da voz passiva, enquanto, por outro lado, o sujeito da voz ativa (no exemplo, magistrado) passa a ser o agente da passiva.
5) Também como regra, pela própria estruturação apresentada (já que é necessário existir um objeto direto na ativa para haver voz passiva), só tem voz passiva um verbo que seja transitivo direto ou transitivo direto e indireto (também conhecido como bitransitivo).
6) Num segundo bloco de premissas, vê-se que, diferentemente da frase "Gosta-se de um bom vinho" – com a qual deve ser sempre comparada em análise – uma frase como "Aluga-se uma casa", em que há um se acoplado ao verbo, pode ser dita de outra forma: "Uma casa é alugada".
7) E, por permitir essa transformação, pode-se dizer que ela é uma frase reversível, que serve de modelo para todas as outras, também reversíveis, que tenham o se unido ao verbo desse modo.
8) Em frases reversíveis dessa natureza, podem-se extrair as seguintes conclusões técnicas no plano da Gramática: (i) se a frase é reversível, o exemplo está na voz passiva sintética; (ii) o se, nesse caso, é partícula apassivadora; (iii) o sujeito – e essa é a afirmação central para o raciocínio – é uma casa (insista-se, sujeito e não objeto direto).
9) Por essas razões, se, em vez de uma casa, eu quero dizer casas, a consequência obrigatória é que o sujeito está no plural, de modo que o verbo também deve ir para o plural ("Alugam-se casas", e não "Aluga-se casas").
10) Por outro lado, na frase "Gosta-se de um bom vinho", não é possível dizê-la de outro modo como se procedeu com o exemplo anterior, de modo que se pode afirmar que não é uma frase reversível, e nela o raciocínio completo que se faz é o seguinte: (i) se não é reversível, uma frase assim tem um sujeito indeterminado (equivale a "Alguém gosta de um bom vinho"); (ii) nesse caso, o se se chama símbolo (ou índice) de indeterminação do sujeito; (iii) o termo "de um bom vinho" é objeto indireto; (iv) na prática, se esse termo é preposicionado (como no caso, em que é precedido pela preposição de), isso já é sinal de que a frase não é reversível; (v) como "um bom vinho" não é o sujeito, se ele é posto no plural, o verbo em nada é afetado ("Gosta-se de bons vinhos"), já que, afinal, a regra diz que o verbo concorda com o seu sujeito, e, no caso analisado, o termo que vai para o plural não é o sujeito.
11) Com essas premissas, podem-se extrair algumas conclusões para a primeira parte das dúvidas do leitor: (i) se a frase permite reversão, então deve ela ser tratada como efetiva frase reversível, não admitindo outro raciocínio; (ii) na prática, se "Analisar-se-ão os argumentos A, B e C" permite ser tornada em "Os argumentos A, B e C serão analisados", não se pode pretender raciocinar conferindo ao exemplo a conotação semântica de "Alguém analisará os argumentos A, B e C"; (iii) e isso quer dizer (a) que a frase está na voz passiva sintética, (b) que o se é partícula apassivadora (c) e que o sujeito é "os argumentos A, B e C", de modo que seu único modo de ir para o plural é "Analisar-se-ão os argumentos A, B e C"; (iv) vale dizer, ao revés, que não se pode pensar (a) como se o exemplo estivesse na voz ativa, (b) sendo o se um índice de indeterminação do sujeito, (c) e como se argumentos fosse um objeto direto; (v) insista-se em que a consideração do exemplo como frase reversível, em casos dessa natureza, é obrigatória, e não optativa, e também obrigatórias são as conclusões, tais como acima extraídas.
12) Nesse sentido, a essa altura, confirmando o raciocínio acima realizado, lembre-se o ensino de Mário Barreto: "Pondo de lado discussões teóricas, complicadas e difíceis, todos, na prática, estamos de acordo, sábios e leigos, em que viu-se muitas desgraças, aceita-se comensais, via-se lindas flores, aqui vende-se jornais [...] são concordâncias absolutamente intoleráveis em português".1
13) Ou seja: pelas observações já feitas, tais frases, exatamente por serem reversíveis, devem ser obrigatoriamente assim corrigidas: viram-se muitas desgraças, aceitam-se comensais, viam-se lindas flores, aqui vendem-se jornais.
14) Vale, em abono, registrar a observação de Júlio Nogueira2, para quem, em situações dessa natureza, a índole de nossa língua exige que se concorde o verbo com o seu sujeito (Alugam-se casas), do mesmo modo como usaríamos o plural com outra forma passiva (Casas são alugadas).
15) Atente-se, de igual modo, à admoestação de Eduardo Carlos Pereira no sentido de que "são, pois, solecismos, que importa evitar, as expressões: Corta-se árvores, Vende-se queijos, Conserta-se relógios, Compra-se livros usados, Ferra-se cavalos".3
16) A exemplo de ensino anterior, tais frases devem ser assim corrigidas: Cortam-se árvores, Vendem-se queijos, Consertam-se relógios, Compram-se livros usados, Ferram-se cavalos.
17) Ainda se deve lembrar que, a um consulente que lhe indagava qual a forma correta – Fez-se tentativas ou Fizeram-se tentativas – , Cândido de Figueiredo, asseverando que, "a este respeito, não pode haver duas opiniões fundamentadas", observava ser "pecado grave contra a língua portuguesa" a primeira forma, que "é construção francesa, e portanto galicismo de frase, além de erro de gramática".4
18) Centrando as preocupações na indagação feita pelo leitor, pode-se afirmar, em síntese e de modo objetivo, com base em todo o raciocínio feito até agora, o que segue: (i) "Analisar-se-á os argumentos A, B e C" (errado); (ii) "Analisar-se-ão os argumentos A, B e C" (correto).
19) E se complementa: o fato de estar o verbo no futuro do presente ou a circunstância de postar-se o pronome pessoal oblíquo átono em mesóclise (ou seja, no meio do verbo) não têm influência alguma em todo o raciocínio que aqui se realizou.
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1 BARRETO, Mário. Através do Dicionário e da Gramática. 3. ed. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1954, p. 263.
2 NOGUEIRA, Júlio. A Linguagem Usual e a Composição. 13. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1959, p. 72.
3 PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924, p. 321.
4 FIGUEIREDO, Cândido. Falar e Escrever. 6. ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1948, vol. I, p. 13-14.