A leitora Fernanda Gamba envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:
"Existe o feminino 'correspondente jurídica'? Só vejo sites no masculino: correspondente jurídico. Muito obrigada"
1) Uma leitora indaga se existe a expressão correspondente jurídica assim no feminino, ou se, mesmo exercida a função por uma mulher, deve ser ela identificada em seu cargo como correspondente jurídico.
2) Uma análise histórica mais aprofundada revela que essa questão percorre, nos dias de hoje, um caminho inverso ao que já teve ao longo dos tempos.
3) Explica-se: em meados do século passado, quando a mulher apenas iniciava o desempenho de funções profissionais fora do lar, os nomes designativos de profissões eram, em sua maioria, considerados comuns de dois gêneros, isto é, tinham a mesma forma, de modo que apenas se distinguiam pela flexão do artigo que os precedia. Dizendo de outro modo, não havia uma forma própria para o masculino e outra para o feminino, mas a flexão respectiva apenas era reconhecida pelo artigo ou outra palavra associada ao indigitado substantivo.
4) Por determinação legal, todavia, já àquela época, passou a ser "de lei, assim para o funcionalismo federal como estadual, e de acordo com o bom-senso gramatical, que nomes designativos de cargos e funções [tivessem] flexão: uma forma para o masculino, outra para o feminino"1.
5) Silveira Bueno, que, em obra de 1938, defendia a ideia de serem comuns de dois gêneros nomes dessa natureza2 (ou seja, que propunha a mesma forma do substantivo, com a distinção de gênero sendo feita apenas pelo artigo ou outra palavra associada ao indigitado substantivo), vinte anos mais tarde, passou a concordar com ensinamento de J. Silva Correia, diretor da Faculdade de Letras de Lisboa: "Nos últimos tempos têm surgido numerosas formas femininas, que a língua de épocas não distantes desconhecia, - e que são como que o reflexo filológico do progresso masculinístico da mulher, - hoje com franco acesso a carreiras liberais, donde outrora era sistematicamente excluída".
6) E ainda citava lição curiosa e conservadora de Lebierre, para ele então ultrapassada, que tal autor citado por ele também aduzia: "Os gramáticos preceituam que os substantivos designativos de certas profissões, a maior parte das vezes exercidas por homens, conservem a forma masculina para a maioria de tais substantivos".
7) Em confirmação, veja-se que, em seguida, concluía ele próprio, Silveira Bueno, alterando posição que esposara vinte anos antes: "Os gramáticos que defenderam a conservação, no masculino, dos nomes de cargos outrora exercidos por homens e já agora também por senhoras, não tinham razão, porque tais nomes são meros adjetivos, como escriturário, secretário, deputado, senador, prefeito, podendo concordar com o sexo da pessoa que tal cargo exerce, e não com o gênero dos nomes de tais profissões"3.
8) Pois bem. Após décadas de utilização adequada de concordância com o sexo da pessoa que desempenha tal função, seguindo o roldão da evolução dos tempos e dos estudos gramaticais, começa-se a ver hoje, novamente, em muitos casos, um retorno equivocado à posição de quase cem anos atrás: (i) "Ela é correspondente jurídico de muitos escritórios"; (ii) "Ela é diretor jurídico da empresa"; (iii) "Ela é mestre em Direito Processual Civil"; (iv) "Ela é supervisor de qualidade"; (v) "Ela é gestor de contratos"; (vi) "Ela é auditor interno".
9) Corrijam-se tais exemplos para uma real e efetiva concordância com o sexo da pessoa que desempenha o cargo respectivo, que é a maneira gramaticalmente correta de se dizer e escrever: (i) "Ela é correspondente jurídica de muitos escritórios"; (ii) "Ela é diretora jurídica da empresa"; (iii) "Ela é mestra em Direito Processual Civil"; (iv) "Ela é supervisora de qualidade"; (v) "Ela é gestora de contratos"; (vi) "Ela é auditora interna".
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1 OLIVEIRA, Cândido de. Revisão Gramatical. 10. ed. São Paulo: Ed. Luzir, 1961, p. 133.
2 BUENO, Francisco da Silveira. Português pelo Rádio. São Paulo: Saraiva & Cia., 1938, p. 94.
3 BUENO, Francisco da Silveira. Questões de Português. São Paulo: Saraiva, 1957. 2. vol., p. 382-383.