O leitor José Carlos Ficher envia-nos a seguinte indagação:
"Senhor Redator, No informativo de ontem (1.518 - 17/10/06) Migalhas escreveu no Editorial: 'Isso, entretanto, não nos tira o apanágio de sermos, como de fato somos, isentos de ânimo...'. O Prof. José Maria da Costa já discorreu sobre isso, aqui mesmo no Migalhas, e me parece que a flexão sermos não está correta. Ou está? Atenciosamente."
1) Indaga-se qual a forma correta:
a) – "Isso não nos tira o apanágio de ser...";
b) – "Isso não nos tira o apanágio de sermos...".
Em outras palavras, quer-se saber se o infinitivo (o próprio nome do verbo, como em amar, vender ou partir), no caso, vem flexionado ou não.
2) Lance-se aqui uma primeira lição genérica para emprego do infinitivo: "muitas vezes, a opção entre a forma flexionada ou não flexionada é estilística e não gramatical. Quando mais importa a ação, prefere-se a forma não flexionada; quando se realça o agente da ação, usa-se a forma flexionada".1
3) De modo específico para o caso da consulta, veja-se que o que há é um infinitivo ser (não flexionado) ou sermos (flexionado), precedido pela preposição de. E a questão é resolver qual empregar.
4) Ensina Artur de Almeida Torres que “o infinitivo poderá variar ou não, a critério da eufonia, se vier precedido das preposições sem, de, a, para ou em. Exs.:
a) "Vamos com ele, sem nos apartar um ponto" (Padre Antônio Vieira);
b) "... os levavam à pia batismal sem crerem no batismo" (Alexandre Herculano);
c) "Careciam de obstar a que se escrevesse o que faltava do livro" (Alexandre Herculano);
d) "Os manuscritos de Silvestre careciam de serem adulterados" (Camilo Castelo Branco);
e) "Obrigá-los a voltar o rosto contra os árabes" (Alexandre Herculano);
f) "... obrigava a trabalharem gratuitamente" (Alexandre Herculano);
g) "... fanatizados que aparecem sempre para justificar o bom quilate da novidade" (Camilo Castelo Branco);
h) "... tantos que nasceram para viverem uma vida toda material" (Alexandre Herculano).
5) Respondendo, de modo específico, à indagação feita, como nenhuma das formas propostas parece contrariar a eufonia, pode-se afirmar que estão gramaticalmente corretas ambas as formas:
I) "Isso não nos tira o apanágio de ser";
II) "Isso não nos tira o apanágio de sermos".
No primeiro caso (infinitivo não flexionado), realça-se a ação; no segundo (infinitivo flexionado), o que se põe em relevo é o agente dessa ação.
6) Vale uma observação final: se o leitor teve dúvidas no caso concreto e se tem dificuldade para diferenciar as situações e de proceder à opção adequada, saiba que não está sozinho nessa questão e console-se com a precisa e preciosa observação de Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante, quando lecionam que "o infinitivo constitui um dos casos mais discutidos da língua portuguesa", de modo que "estabelecer regras para o uso de sua forma flexionada, por exemplo, é tarefa difícil", e, "em muitos casos, a opção é meramente estilística".2
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1Cf. NADÓLSKIS, Hêndricas; TOLEDO, Marleine Paula Marcondes Ferreira de. Comunicação Jurídica. 2. ed. São Paulo: Edição dos Autores, 1998, p. 125.
2Cf. CIPRO NETO, Pasquale; INFANTE, Ulisses. Gramática da Língua Portuguesa. 1. ed. São Paulo: Editora Scipione, 1999, p. 491.