O leitor Antonio Clarét Maciel Santos envia ao autor de Gramatigalhas a seguinte mensagem:
"Sr. Diretor 'vanitas vanitatis' x 'vanitas vanitatem'. A Revista VEJA (edição nº 1.948 de 18/3/06 na matéria intitulada 'FHC explica FHC'), reproduz trechos do livro de memórias de Fernando Henrique Cardoso 'A Arte da Política: a História que Vivi', Editora Civilização Brasileira. A certa altura FHC cita a seguinte expressão latina 'vanitas vanitatem'. Teria se enganado FHC? O Pequeno Dicionário Latino Português de autoria do Padre H. Koehler, SJ em sua 10ª edição, Editora Globo, Porto Alegre, na pagina 466 define a expressão como 'vanitas vanitatis', vaidade das vaidades. Com a palavra o Professor José Maria da Costa."
Poucos dias depois, Antônio Carlos de Martins Mello, de Fortaleza, que se intitulou ex-futuro OFM (Ordem dos Frades Menores), também enviou o seguinte texto:
"Venerável Diretor de Migalhas. Referência: Migalhas 1.379, 23/3/06. Peço para meter meu rotundo bedelho na dúvida do migalheiro Maciel, e esclareço, 'his verbis': o correto é 'Vanitas Vanitatum' (vaidade das vaidades), porque 'Vanitatis' estaria no genitivo singular. Se Fernando Henrique, sobrinho e afilhado de meu saudoso amigo Joaquim Ignácio Cardoso, disse mesmo 'Vanitas Vanitatem' não disse coisa alguma, pois Vanitatem seria o acusativo singular, sem cabimento na frase inteira que é, cf. o Eclesiastes: 'vanitas vanitatum et omnia vanitas' (vaidade das vaidades e tudo (é) vaidade). Sem razão igualmente o citado padre H. Koehler que, como sugere seu apelido tedesco, é mesmo mais carvoeiro que jesuíta ou latinista. Para dar ensanchas aos helenistas, que venham!, a proclamação vem de 'mataiota mataiotéta kai panta mataiotes', se a transliteração e a memória não me traem e se bem está o conectivo. Não é mesmo, professor Maciel Santos?"
E o leitor Jonas Sampaio Ratti também se manifestou:
"Venerável Diretor de Migalhas. Lendo o que li, vendo o que vi, não pude deixar de me intrometer no bedelho de Antonio Carlos de Martins Mello, ex-futuro OFM e observando o que foi delineado por Antonio Clarét Maciel dos Santos (Migalhas 1.379 – 23/3/06 – "Migalhas dos leitores – Latinório"), tenho a ponderar que o primeiro escrito latino foi o da 'fíbola praestina', onde se lia: 'Manius me fefaque Nimasio', fui buscar inspiração nos Mestres José Cretella Júnior e Geraldo de Ulhôa Cintra, no Dicionário Latino-Português, 3a. Edição, Companhia Editora Nacional, onde, na página 1.316 diz: 'vanitas vanitatis', dizendo ainda que Tácito sua como jactância. É o que se tinha a dizer, para se restabelecer a verdade ou a vaidade."
1) A consulta específica busca saber qual a forma correta: "vanitas vanitatis" ou "vanitas vanitatem".
2) Na Bíblia, há um livro denominado Eclesiastes, palavra de significado incerto, normalmente traduzida como 'o pregador', de autoria também incerta, mas normalmente atribuída ao rei Salomão, em razão de que as experiências nele referidas se parecem muito com as dessa figura bíblica.
3) Principia do seguinte modo, no capítulo 1, versículos 1-3: "Palavras do pregador, filho de Davi, rei em Jerusalém. Vaidade de vaidades, diz o pregador; vaidade de vaidades, tudo é vaidade. Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol?"
4) O trecho a ser considerado é "vaidade de vaidades, tudo é vaidade", ou, mais especificamente, a expressão "vaidade de vaidades" ou, ainda, "vaidade das vaidades".
5) Ora, o latim é uma língua declinada, o que significa que a terminação de uma palavra varia conforme a função sintática que ela exerce na oração: sujeito é nominativo; complemento restritivo (alguns casos de adjunto adnominal) é genitivo; objeto indireto é dativo; complemento circunstancial (casos de adjunto adverbial) é ablativo; objeto direto é acusativo.
6) E se anote que os diversos casos têm terminações diferentes. Só para exemplificar com a palavra rosa: rosa é nominativo; rosae (pronuncia-se róse) é genitivo; rosam é acusativo; rosarum é genitivo plural; rosis é dativo plural; rosas é acusativo plural.
7) De modo específico para o caso da consulta, em que não se pôs dúvida sobre a primeira palavra – "vanitas" (pronuncia-se vânitas), vamos ater-nos ao efetivo foco do problema. Imaginem-se duas formas da expressão: "vaidade de vaidade" e "vaidade das vaidades". Em ambos os casos, "de vaidade" ou "das vaidades" ("de vaidades" é variação que não se altera em latim, onde não havia os artigos o, a, os, as) são um complemento restritivo (em português, adjunto adnominal), o que significa que o vocábulo, em latim, vai para o genitivo (singular ou plural, conforme o caso).
8) Assim, verificado o fato de que vanitas pertence à terceira declinação, se se quer o singular da expressão, tem-se "vanitas vanitatis"; se o plural, "vanitas vanitatum".
9) Viu-se, porém, que o sentido do texto de Eclesiastes 1:2 é "vaidade de vaidades" ou "vaidade das vaidades", de modo que a citação correta do latim, no caso, não é "vanitas vanitatem" nem "vanitas vanitatis", mas "vanitas vanitatum". Aliás a Vulgata de São Jerônimo (342 [?] / 420) – versão da Bíblia para o latim vulgar no século IV – assim traduziu o mencionado trecho: "vanitas vanitatum omnia vanitas" (em português, "vaidade das vaidades, tudo é vaidade").
10) Acrescente-se, ademais, que, tecnicamente, assim como em português é correto dizer tanto "vaidade de vaidade" como "vaidade de (das) vaidades", em latim se pode dizer "vanitas vanitatis" ou "vanitas vanitatum". Jamais, porém, "vanitas vanitatem", que não quer dizer coisa alguma.
11) Nunca se canse de repetir que citar latim é algo perigoso e complicado, sobretudo em tempos como o nosso, em que de há muito não é ele ensinado nas escolas, a não ser em pequena dose e em um ou outro curso universitário de línguas. Quer pela falta de estudo, quer pela complexidade de uma língua declinada, se não se tem certeza do que se está citando, melhor não citar. Referir a expressão em português não é desdouro para ninguém e evita os aborrecimentos de uma citação mal feita.