O leitor Douglas Dias dos Santos envia-nos esta mensagem :
"Esta é para o Gramatigalhas: Na justificação à proposta de Emenda Constitucional, o nobre Deputado Ney Lopes referiu-se à Constituição Federal de 1988 como 'Carta Magna' (Migalhas quentes - "Fábio Konder Comparato e Fernando Neves criticam projeto que sugere mudanças no artigo 16 da CF" – clique aqui). Do alto de minha pretensão, indago: Tal expressão não é exclusiva das Constituições outorgadas, sendo portanto utilizada de maneira incorreta em sua justificação?"
1) Historicamente, Magna Carta (ou Carta Magna) foi um documento imposto em junho de 1215 pelos nobres ingleses rebelados contra o rei João Sem Terra, com o intuito de dar um basta aos atos arbitrários reais, mediante a edição de um corpo de leis a que o rei deveria prestar obediência. Tinha por alvo distinguir entre realeza e tirania. Significou um símbolo da soberania e foi de fundamental importância para o progresso constitucional da Inglaterra e de outros países cujo sistema de lei e de governo tem base nas convenções inglesas.
2) Por significar a base legal de sustentação do ordenamento de um país, a expressão passou a abranger, por extensão, o modo como são conhecidas as diversas constituições em todo o mundo.
3) Em si mesma, a expressão Carta Magna quer apenas dizer diploma maior ou suprema legislação. Por não se tratar de expressão técnica, seu uso não se restringe necessariamente às constituições outorgadas, nem se vincula com exclusividade à lei federal, de modo que não há problema algum em se dizer, por exemplo, a Carta Magna do Estado de São Paulo, querendo referir-se à Constituição do Estado de São Paulo.
4) Em termos gramaticais, denominar uma Constituição Federal de Carta Magna é uma figura de linguagem, mais especificamente uma antonomásia (espécie de metonímia, que consiste em designar um ser por um seu atributo notório ou acontecimento a que se ligue).
5) Em razão da precisão técnica que deve ter a linguagem jurídica (Direito é ciência, não arte), alguns autores criticam o que reputam emprego desnecessário de figuras de linguagem, apontando que adornos dessa natureza não significam correção do texto jurídico, mas apenas uma quebra da rigidez do intelectivo dessa linguagem pelo emocional.
6) Assim, no entender desses autores, seria inconveniente substituir os termos e as locuções técnicas e precisas de um texto dessa espécie por sinônimos, a pretexto de evitar repetições. Mais precisamente, um uso assim incorreria no risco da impropriedade de expressão e mesmo de descambar para o pernosticismo.
7) Dessa mesma modalidade de equívoco, por exemplo, seria substituir as expressões técnicas petição inicial (ou inicial) e denúncia por peça inaugural, exordial, exordial acusatória, vestibular, peça depositária da pretensão punitiva, peça denunciatória, requisitório ministerial, petição de intróito, peça preambular, peça incoativa, peça increpatória, peça-ovo, etc.
8) Em termos bem práticos, parecem aconselháveis quatro aspectos:
a) lembrar que o Direito é uma ciência e tem uma linguagem técnica, à qual sempre se deve procurar ater o usuário, de modo que os termos técnicos devem ter preferência;
b) lembrar que muitas dessas expressões são de mau-gosto (ou não o é peça-ovo?) e que a maioria delas não expressa efetivamente o que se quer dizer;
c) observar que um texto cheio de penduricalhos dessa ordem faz lembrar determinadas mulheres preparadas para eventos, as quais estão longe de ser consideradas bonitas, de bom-gosto e bem produzidas;
d) ter a certeza de que um projeto de simplificação da linguagem jurídica, com o afastamento excessivo de determinadas expressões e construções, é um objetivo que todo usuário deve ter para a vida toda.
9) Com essas observações, de modo específico para a expressão da consulta, não parece ela de mau-gosto; o que se deve evitar é o excesso. Aconselha-se ao usuário da linguagem jurídica, todavia, fixar, como meta de vida, um projeto de simplificação de seu texto jurídico e de gradativa obediência à terminologia técnica.