Em uma das edições anteriores, a seção Gramatigalhas publicou considerações sobre como se deve escrever na linguagem formal e delineou o papel que representa a Academia Brasileira de Letras na fixação do léxico e na grafia dos vocábulos ("A questão da norma culta" - clique aqui).
A leitora Miriam Soares, estudante de letras da Universidade de São Paulo, a respeito de tais comentários, enviou a seguinte mensagem:
"Ao Dr. José Maria da Costa. De acordo com suas palavras, devo acreditar que a ABL é dona da verdade, e que as leis existem para ser cumpridas cegamente? Onde é que fica o respeito à individualidade de cada falante? E, acima de tudo, onde é que fica o já tão conhecido fenômeno da evolução dos idiomas? Seria o senhor um fascista? Boa noite."
É certo que o leitor Alexandre de Macedo Marques assim se pôs em defesa do nosso professor de Gramática:
"A absurda e agressiva bobagem perpetrada pela migalheira Miriam Soares contra o Dr. José Maria da Costa levam-me a crer que, como o personagem do Monteiro Lobato, está sofrendo de uma 'indigestão de letras' após tomar uma canja de letrinhas. Espero que a estudante continue estudando. É um voto e uma esperança. A anarquista das letras faz-me lembrar as palavras de ordem de um partido da ultra-esquerda portuguesa, durante a Revolução dos Cravos, pichada num cemitério de Lisboa, incitando a um levante no campo santo: 'Mortos das campas rasas! Aos túmulos!'. Nelson Rodrigues, uma vez mais, tem razão. Eles são a maioria."
1) A par da linguagem mais descuidada que se permite no plano coloquial, na correspondência mais íntima e na conversa familiar entre as pessoas, existe um modo de escrever e falar próprio dos profissionais de qualquer área, em suas manifestações oficiais e formais, onde se deve manter um nível mínimo e comum de fala e escrita, submetido às normas de Gramática, a que se dá o nome de linguagem formal ou norma culta.
2) De modo específico no que tange à existência, à grafia e ao gênero das palavras em nosso idioma, a autoridade fica com a Academia Brasileira de Letras, que edita regularmente o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, uma espécie de dicionário que lista as palavras reconhecidas oficialmente como pertencentes ao nosso léxico, bem como lhes fornece a grafia oficial, muito embora normalmente não lhes comente o significado.
3) Ao agir assim, a ABL desincumbe-se de uma delegação legal, já que a vetusta Lei Eduardo Ramos, de nº 726, de 8 de dezembro de 1900, incumbiu-a de editar regularmente essa lista oficial dos vocábulos de nosso idioma.
4) Essa é a regra, e a ela se tem prestado obediência. Basta ver que, em época mais recente, para abolir o trema sobre os hiatos átonos, o acento circunflexo diferencial de timbre (com a única exceção de pôde) e os acentos circunflexo e grave nas palavras com sufixo mente ou iniciado por z, tal se fez por via da Lei 5.765, de 18.12.71. Exatamente em obediência à lei, assim, não se admite, por exemplo, extensão de seus dizeres para abarcar a manutenção do diferencial em palavras como forma (ô) – como pretende Aurélio Buarque de Holanda Ferreira em seu famoso dicionário – a pretexto de confusão nos casos concretos. Mas isso é assunto para uma outra vez.
5) Esse proceder de haver uma autoridade e uma regra a que todos prestam obediência, entretanto, não torna o idioma necessariamente fossilizado ou estagnado. Os contínuos estudos e as sugestões fundamentadas são alvo de análise pelas comissões da ABL, e, conforme a necessidade, são feitas alterações nas novas edições do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Só para se ter uma idéia da atuação dinâmica nesse campo, em sua edição de setembro de 1998, às mais de 300.000 palavras já reconhecidas no Português, foram adicionados aproximadamente 6.000 novos termos, em geral relativos ao desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo inovações de Informática.
6) Dizer que, nesse campo, a ABL age por delegação legal significa que sua palavra é lei, que obriga a todos os usuários da linguagem formal. Isso, todavia, não a exonera de cometer equívocos. Exemplifica-se: em sua 4ª edição (2004), o VOLP diz que superávit (assim, com acento gráfico) é um substantivo masculino já regularmente incorporado ao vernáculo; todavia, embora faça constar deficitariedade e deficitário, não registra déficit como palavra pertencente a nosso léxico, mas, apenas e tão-somente, a forma aportuguesada défice.
7) Ante esse quadro, o usuário do idioma poderá escrever normalmente superávit, que é vocábulo pertencente a nosso léxico. Todavia, quanto a seu antônimo, deverá ou empregar a forma aportuguesada défice, ou então usar a forma latina "deficit", com duas observações: a) entre aspas, ou em itálico, negrito ou com sublinha, como se deve grafar, em nossos textos de linguagem formal, todo e qualquer vocábulo pertencente a outro idioma; b) sem acento gráfico, que não existia em Latim.
8) Além disso, a ABL não é dona da verdade, nem é imune a equívocos nesse trabalho, nem se posta como tal. Constata-se, a uma rápida consulta à introdução do VOLP, que a edição de 2004 foi dedicada exatamente "aos que usam da língua portuguesa como bem comum – aqui chamados a colaborar no aperfeiçoamento desta coleta, com achegas, sugestões, críticas, correções". Nesse campo, como todos das carreiras jurídicas em relação ao ordenamento jurídico, somos chamados a seu aperfeiçoamento.
9) E não se pense que, quando escrevia minhas decisões na Magistratura, e hoje, quando escrevo minhas petições, arrazoados e pareceres na Advocacia, eu esteja sempre de acordo com o que vejo nas determinações da ABL e na listagem de vocábulos do VOLP. Tenho minhas divergências (basta ver a questão do superávit e do "deficit"). Todavia, como é de praxe no ordenamento jurídico, na vigência da lei, devemos prestar-lhe obediência. Não posso escolher quais leis sigo e quais ignoro. Posso não concordar com a placa de contramão naquele local; mesmo assim, vou prestar-lhe obediência. Posso não concordar com o limite de velocidade num determinado local; mesmo assim continuarei obrigado a respeitá-lo. De modo mais específico para o caso concreto, enquanto não vier nova edição do VOLP, dizendo que, assim como superávit, também integra nosso léxico o vocábulo déficit (assim, com acento gráfico, como toda proparoxítona), deverei empregar défice ou "deficit".
10) E mais: não se pode dizer que a obediência a tais parâmetros signifique cerceamento à liberdade do falante. É difícil encontrar alguém que defenda a tese de que Padre Vieira ou Rui Barbosa tenham sido cerceados ou feridos em sua liberdade de expressão, por terem que obedecer às normas da Gramática. As regras estão aí, e a arte de escrever está em encontrar a adequada forma de expressão em seus moldes e limites. Mesmo grandes escritores que têm um modo peculiar de escrever não ignoram tais regras. Guimarães Rosa, que desconstruiu como raros o idioma em seu modo peculiar de expressão, conhecia como poucos os meandros do vernáculo.
11) Por fim, ante a indagação da leitora (seria eu um fascista?), acredito seja oportuno lembrar que o vocábulo fascista vem do Latim, "fascis", que significa feixe. Nesse contexto, quero, apesar de não me julgar mais do que um caniço, poder juntar-me a muitos outros caniços e compor robusto feixe na defesa do que há de fundamental nessa questão da linguagem formal, sobretudo no campo profissional e, mais especificamente, do Direito, despindo-a, ademais, dos adereços desnecessários e das superfluidades. Creio que, se houver uma atuação adequada nesse campo, talvez a palavra, sobretudo nos meios jurídicos e forenses, deixe de ser um esconderijo e um empecilho para a expressão e possa efetivamente tornar-se veículo do pensamento.