Gramatigalhas

Habeas corpus

Habeas corpus - Qual é o plural? O professor explica.

14/9/2005

Normalmente, as dúvidas que constituem a matéria da coluna Gramatigalhas vêm dos leitores. Desta vez, a indagação vem da própria Redação de Migalhas 1.251:

"A propósito dos HCs em favor de Maluf, qual seria o plural de 'habeas corpus'?"

1) Trata-se de expressão latina, composta pela segunda pessoa do singular do presente do subjuntivo do verbo "habere" ("habeas") e do substantivo "corpus", com o sentido etimológico de ande com o corpo, ou tenha o corpo. Ex.: "O mais triste das prisões políticas é que quando o advogado consegue o 'habeas corpus' para o seu cliente, já não há mais corpo".

2) Historicamente, são as primeiras palavras de uma lei inglesa, editada logo após a outorga da Magna Carta, em 1215, por João Sem Terra, a qual concedia a qualquer vassalo inglês o direito de aguardar o julgamento em liberdade, sob fiança.

3) Configura, atualmente, instituto jurídico consagrado entre nós pelo art. 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal de 1988, o qual tem por precípua finalidade a defesa da liberdade de locomoção, "quando a esta não se oponha a justeza da privação da liberdade, como medida de punição disciplinar ou para cumprimento de sanção penal".1

4) Ensina Vitorino Prata Castelo Branco que essa medida, tal como prevista na Constituição de 1891, "tinha sentido mais amplo, não tutelando apenas o direito de locomoção, como ocorre com o art. 5º, LXVIII, do texto constitucional de 1988".2

5) Apenas para ilustração histórica, a restrição atual talvez possa ser justificada com a explicação de que outros direitos que escaparam ao regramento desse instituto passaram a ser tutelados pelo mandado de segurança, instituído entre nós no início do século XX.

6) Por se tratar de expressão latina, obrigatório é o uso das aspas, negrito, itálico, sublinha ou grifo indicador de tal circunstância, além de proibida a utilização de acentos gráficos e de hífen, que não existiam no idioma original.

7) Não se olvide, nesse sentido, a lição de Edmundo Dantès Nascimento de que expressões como essa não eram hifenizadas em latim, razão pela qual "não o podem ser em língua nenhuma", acrescentando tal autor que, "para quem pretende grafar escorreitamente não é permitido o hífen em expressões do latim clássico".3

8) Diversa, estranha e equivocadamente, todavia, José de Nicola e Ernani Terra, a par de asseverarem a ausência de acento, por se tratar de uma expressão latina, pela mesma razão observam que "deve ser sempre grafada com hífen".4

9) Com a mesma estranheza deve ser recebido o registro do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, órgão incumbido oficialmente de determinar a existência dos vocábulos em nosso idioma, além de sua grafia oficial, o qual, muito embora registre a expressão como pertencente ao idioma latino e a escreva sem acentos gráficos, apresenta seus termos unidos por hífen.5

10) Pela simples razão de que se trata de expressão latina e de que não havia hífen na língua originária, o melhor é seguir o ensino de Domingos Paschoal Cegalla, o qual, após observar que "não há consenso quanto ao uso do hífen nesta expressão latina", realça que "é preferível dispensá-lo".6

11) Acrescente-se que, nas palavras e expressões latinas, as vogais, mesmo no fim das palavras, hão de ser pronunciadas claramente, até para se evitarem confusões quanto à flexão das declinações; assim, diga-se ábeas, e não ábias, e córpus, e não corpos.

12) As mesmas observações valem para expressões similares, como "habeas data".

13) Para levar para o plural, em português, a mencionada expressão, basta pluralizar o artigo ou palavra que a ela se refere:

a) os "habeas corpus";

b) "habeas corpus" preventivos. Pelo próprio significado da referida expressão (que tenhas o corpo), vê-se que não faria sentido pluralizar no vernáculo os termos da expressão (que tenhais corpos). Reafirme-se, portanto, o plural: os "habeas corpus", e não os "habeatis corpora".

----------

1 Cf. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 1. ed, 1. tiragem. Rio: Forense, 1989. vol. II (letras D a I), p. 370.

2 Apud DAMIÃO, Regina Toledo; HENRIQUES, Antonio. Curso de Português Jurídico. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 189.

3 Cf. NASCIMENTO, Edmundo Dantès. Linguagem Forense. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 145.

4 Cf. NICOLA, José de; TERRA, Ernani. 1.001 Dúvidas de Português. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 122.

5 Cf. Academia Brasileira de Letras. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1999. reimpressão de 1998. p. 383.

6 Cf. CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 188.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.